A Única Constante


Não sei exatamente a data do naufrágio, pois quando o barco começou a afundar, bati com a cabeça no convés. Também não sei quanto tempo fiquei desacordado. Tão logo despertei, no entanto, teve início esse diário. Como um naufrágio é um acidente de percurso, o que normalmente se constata é estranheza face as novas feições que se apresentam. Para uma melhor compreensão do presente, resolvi anotar os fatos relevantes de cada dia, com o intuito de, quem sabe, alcançar alguma perspectiva.


Dia 1 – Fome e sonolência. Na árvore mais próxima se destaca uma saliência marrom, bulbosa, presa ao tronco. Com a ajuda de um graveto consigo abrir um buraco na saliência, e dali saem 15 ou 20 cupins. Mais tarde voltarão para fechar o corte, com fragmentos de cimento fecal e saliva, pois há milhões de anos cupins-operários assim procedem.  Numa ilha próxima vivem 3 eremitas.

Dia 2 – Tento ativar minha matriz energética com doses excessivas de café.  “As Escrituras védicas declaram que o mundo físico opera sob uma lei fundamental, a de maya, ou princípio da relatividade e da dualidade”.  Os 3 eremitas são simples, como convém a alguém rotulado por essa palavra e nessas condições. Ainda não nos encontramos.

Dia 3 – O mico na copa da árvore, que no primeiro dia fugira, hoje retorna, com mais de 40 de sua espécie. Alguns são filhotes.  “A lei do movimento, de Newton, é uma lei de maya. Ação e reação são exatamente iguais. Existir uma força ímpar é impossível. Deve haver, e sempre há, um par de forças iguais e contrárias”. Os micos adultos começam a gritar, e seus gritos se tornam violentos. Depois se afastam. Não vejo, há princípio, uma maneira de sair daqui.

Dia 4 – As provisões escasseiam. Tenho uma luneta e uso-a regularmente. “A ilusão do mundo manifesta-se como não conhecimento e ou ignorância. A ilusão não pode ser destruída por convicção intelectual ou análise, mas somente alcançando o estado interno”. 

Dia 5 – Poupando energia. Poucos livros estão comigo. Schelling apresenta a seguinte idéia: ”No sono lúcido, se produz uma elevação e uma liberação relativa da alma em relação ao corpo. Não é certo que nossa personalidade espiritual, que nos segue na morte, esteja já presente em nós, que ela não nasça conosco, que seja simplesmente liberta e se mostre logo que não está mais ligada ao mundo exterior pelos sentidos?  O estado após a morte, é, portanto, mais real que o estado terrestre”.

Dia 6 – Febre. É necessário caminhar muito para se obter algum alimento. Acordo com o arquejo de um nadador solitário, nalgum lugar próximo às árvores. Aproximo-me da água e vislumbro a criatura aflorando a superfície, soprando um ar vaporoso e depois tornando a mergulhar. Após um instante de reflexão, vou para a luneta observar os eremitas. Rezam várias vezes ao dia.

Dia 7- “A ciência física não pode formular leis fora de maya. Todas as atividades naturais básicas denunciam sua origem. A eletricidade, por exemplo, é um fenômeno de atração e repulsão. A própria natureza é maya. Cientistas só podem sondar um aspecto após outro de sua variada infinitude.” Descobri um vilarejo próximo daqui. Estão em alvoroço. Comentam que um bispo irá até a ilha dos eremitas, para adverti-los. Através de gestos e alguns monossílabos, conseguimos nos comunicar. Tomam-me de ante-mão como um explorador ou naturalista. Alguns pedem esmolas. Adquiri pão e aveia. Antes de partir, perguntei-lhes a razão da advertência. É por causa da oração, disseram.

Dia 8 – Não sei o que houve com o resto da tripulação. Observo que a posição do sol muda dia a dia em relação às árvores que cercam minha cabana. “Nós somos 3, tu és 3, tem piedade de nós”, exclamam os eremitas, sempre à mesma hora.

Dia 9 – Já me acostumei com o enorme peixe cujo respirar pleno me acorda todas as manhãs. Aves de cor cáqui atacam caranguejos que se deslocam pelos galhos. “Em meio aos trilhões de mistérios do cosmos, o mais fenomenal é a luz. Ao contrário das ondas sonoras, cuja transmissão exige ar, ou outro meio material, as ondas de luz transpõem livremente o vácuo do espaço interestelar. Se levarmos em conta a teoria de Einstein, a luz permanece como a  mais sutil, mais livre de dependência material”.

Dia 10 – Nova investida ao vilarejo. Necessito de repelente para insetos, sabonete e açúcar. Estão em polvorosa. O bispo chegou, exclamam,  e advertiu os eremitas que a oração que faziam era indigna, que deviam aprender novas invocações.

Dia 11 – Pouco a relatar, leitura e contemplação até o crepúsculo.
Uma pequena embarcação sai da ilha dos eremitas. Pensei em usar a luneta, mas depois percebi que, fosse para onde fosse, aproximava-se daqui. Atrás da embarcação,  uma luz radiante a seguia.  Na luz estavam envoltos os eremitas, que corriam sobre as ondas para alcançar o bispo.

“Esquecemos a prece que nos ensinou – gritaram, quando alcançaram o bispo – e corremos para pedir que ensine de novo. O bispo, assombrado, sacudiu a cabeça.

- Meus queridos – respondeu humildemente – continuem a viver com a antiga oração”.

Dia 12 – No chão, um ninho de passarinho. Uma borboleta azul, do gênero Morpho, pousa nele por vários minutos. “Transcender a ilusão/maya, foi a tarefa dada à raça humana. Elevar-se acima da dualidade da criação e perceber a unidade do Criador.”

Dia 13 – Pensei em voltar à aldeia, mas os tornozelos doíam. Talvez amanhã. Nada como um dia depois do outro. “Nas vastas concepções de Einstein, a velocidade da luz – 300.000 km/s, domina toda a teoria da relatividade. Ele prova matematicamente que a velocidade da luz é a única constante de um universo em fluxo”.