Acabara de chegar um telegrama de Portugal informando que o patriarca da família, senhor Manoel Joaquim da Silva e Silva, de noventa e sete anos, havia falecido. Os telegramas naquele tempo demoravam muito dias para chegar, portanto o senhor Manoel já tinha falecido há quase um mês. Dois meses depois chegava uma carta relatando os detalhes do falecimento do venerando pai, avô, bisavô e tetravô, na qual a viúva, Joaquina, informava que o mesmo tinha sido cremado,  como havia lhe pedido. Mas por decisão dela, sua terceira mulher, a qual sempre morrera de ciúmes da primeira esposa do marido, que nunca deixara de falar na falecida, segundo ela, seria muito justo que as cinzas fossem enviadas para o Brasil, aonde há muito anos residiam filhos, netos e bisnetos do marido, todos descendentes do primeiro casamento dele, que com ela não tivera filhos. Aproveitando o despacho da encomenda, ela também enviou alguns objetos tradicionais da família.

 O abastado velho fora proprietário de muitas terras, inclusive de uma enorme plantação da melhor pimenta preta portuguesa, conhecida no Brasil como pimenta do reino. Por isso, entre outras coisas também mandou um vidro grande dessa preciosa especiaria, fabricada nos moinhos de propriedade dele, que ela há muito tempo administrava.

 Meses depois chegava ao porto brasileiro o vapor, como eram chamados os navios na época, e a encomenda foi entregue a um dos filhos do falecido lusitano.

 Depois de distribuídos os objetos de estimação entre os parentes, foi combinado reunir toda a família na igreja para celebração de uma missa em memória, tendo simbolicamente como corpo presente as cinzas do patriarca, dentro de um vaso lacrado colocado diante do altar, numa mesa coberta com uma toalha de renda branca. E assim foi feito. Missa celebrada em latim, como se fazia naquele tempo, com o sacristão espalhando fumacinha, enquanto ecoava o som de uma Ave Maria, no melhor estilo das missas portuguesas.

 Tempos depois, durante um almoço alguém teve a idéia de comercializar no Brasil a maravilhosa pimenta preta moída, que continuava sendo fabricada nos moinhos da família nas terras de além mar e tinha a fama de ser uma das melhores pimentas da Europa. Só que uma das antigas empregadas, que servia a mesa, ouvindo a conversa falou:

-      o senhor me desculpe seu Quinzimho, mas eu até deixei de usar essa pimenta. Só botei hoje porque o senhor faz tanta questão... Mas ela não arde e não tem gosto é de nada. Tem é um cheiro muito esquisito, parece até areia de cemitério.

-      Foi aí que a nora do bisneto do patriarca Manoel Joaquim, barriguda e cheia de enjoo, gritou:

 -      O que, parece o que? Areia de...   Se levantou da mesa e saiu correndo pro banheiro, vomitando horrores.

 -      É verdade. Eu adoro pimenta, falou a sogra, mas aquela eu já até deixei de usar. Tá lá no armário da cozinha mofando. Se a Joana não jogou fora...

 -      Quero mais comer essa carne não, mãe, falou o Manoelzinho, tetraneto do seu Manoel Joaquim. Ela tá ruim, tem areia. Tem gosto de mofo, de coisa queimada, fede!

 -      A  carne não tá queimada não, menino, deixa de inventar história!

 -      Pode num tá, mas tem gosto.

 A nora foi parar no hospital, vomitando sem parar, em tempo de perder o menino.

 Mas foi o que? Perguntou o médico.

 -      Picadinho apimentado, doutor; quer dizer, a pimenta não era pimenta, não ardia, mas quando a empregada falou que ela até parecia areia de cemitério, aí eu comecei a enojar e quase já botei os bofes pra fora! Só de imaginar, no meu estado... E será que em vez de pimenta era... Não, nãaao! Ai meu Deus! Minha Nossa Senhora!

 E precisou ficar internada quase em estado de choque.

 Alguns dias depois, conversa vai conversa vem...

 Melhor será se encerrar o assunto pra não cair na boca do povo e a gente virar motivo de piada, falou Joaquim Manoel, o filho mais velho de seu Manoel Joaquim. E pediu a todos que lhe devolvessem o que ainda restava do pó, que fora usado ao invés da pimenta.

 Só que a cozinheira Joana, julgando que o pó fosse a pimenta preta que não ardia, tinha jogado tudo na pia e aberto a torneira, que levou tudo pelo ralo abaixo.

 -      E agora o que é que eu faço com essa pimenta nesse garrafão rodeado de flor em cima do piano, perguntou a Joana. Tanta vela acesa pra nada, junto desse vidro de pimenta, meu Deus! E todo mundo comendo o pó do finado seu.... Cruzes! E se benzeu fazendo pelo sinal. Teve até missa com todo mundo chorando  na igreja pela pimenta, pensando que era o do pó home... V `Maria, meu Deus do Céu.

 -      Ah, quer saber? Joga fora, falou a nora. Não aguento mais nem ouvir falar desse pó nem dessa pimenta. Continuo é enjoada que só. Não posso nem me lembrar.

 -      Jogar fora ? Nada disso dona Maria, eu quero pra mim. Eu vou é vender. Isso aqui é pimenta preta do reino, e da boa! 

 Só então o patriarca da família, depois de ter sido engolido, vomitado e até descido pelo ralo, conseguiu ter paz, depois de por decisão de toda a família as cinzas do pobre velho forem levadas de volta à terra lusitana, para serem misturadas às areias do imenso jardim da sua casa, como havia pedido à Joaquina, e aonde estava enterrada a sua primeira mulher.

Se a ciumenta viúva atendeu ao pedido ou jogou fora o pó, nunca se soube.

 Autora: Junia

Rio, 10/5/2015