A trilha perdida de La Guardia a Finsterre

AloízioMonteiro
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No ano 58 EC, o apóstolo Paulo foi preso em Jerusalém e levado a Cesareia, província romana da Galileia. Sem êxito de defesa, ele apelou a César e, no ano 59 EC, foi levado a ferros para ser julgado em Roma; a viagem durou cerca de um ano. No ano 62 EC, o acusador Anan se tornou pontífice de Jerusalém, mas, no mesmo ano, ele perdeu o posto e o prazo legal para reiterar a denúncia no tribunal de Roma. Então, o imperador Nero soltou Paulo e ele foi à Espanha.

Paulo deve ter desembarcado no porto de Tarragona, que era a entrada usual na Espanha para quem vinha do Oriente; ele deve ter ficado muitos dias por lá. Daí, Paulo deve ter partido para os "confins do mundo" e montado tenda ou erguido casa de pedra no cume do cabo de La Guardia, entre o oceano Atlântico e o norte da foz do rio Minho; lá, há ruínas de um forte estranho e um curioso abrigo de pedra, em forma cilíndrica, com teto em forma cônica, ideal para duas pessoas castas. Observe-se que, desde muito tempo, a padroeira de Tarragona é Santa Tecla e o cume do cabo de La Guardia se chama Monte de Santa Tecla.

Por que Santa Tecla é a padroeira da cidade de Tarragona, no leste da Espanha, e deu nome ao relvado cabo de La Guardia, no oeste da Espanha, que são locais tão antípodas?

Paulo sempre viajava com convertidos ao cristianismo. Na época em que Nero o libertou, ele já tinha mais de 60 anos de idade. Logo, Paulo não foi sozinho à Espanha, mas, muito provavelmente, na companhia da devota Tecla.

Vejam, a seguir, outras circunstâncias que também apontam para esta hipótese.

Jesus instruiu os apóstolos a pregar os Evangelhos "a todas as nações" (Mt 28, 19; Lc 24, 47). Na Carta aos Romanos , Paulo falou, por duas vezes, do desejo de ir à Espanha e de "ser por vós conduzido até lá" (Rm 15, 24; 28). Se Paulo e Tecla estiveram em La Guardia, eles podem ter ido de Roma a Tarragona por mar, e, daí, ao oeste da Espanha, a pé, passando no lugar chamado, hoje, León, no centro-norte, onde ficava estacionada a VII Legião Romana Gemina Pia Felix. Não há provas arqueológicas de Paulo ter ido à Espanha, mas, pelos topônimos vistos, é possível que Tecla tenha estado lá. Seria perigoso para Tecla ir sozinha à La Guardia; era melhor ir com quem tivesse cidadania romana. Paulo trocou 14 cartas com Sêneca, o rico poeta espanhol que foi tutor de Nero e vivia em Roma. Por intermédio dele, Paulo deve ter obtido outra certidão de cidadania, pois a antiga foi perdida no naufrágio da ilha de Malta. Sem o título, Paulo não atravessaria em paz a Espanha; sem Paulo, Tecla não chegaria a La Guardia.

Ao narrar a viagem de Paulo a Roma, o livro Atos dos Apóstolos refere-se aos pontos cardeais e a aspectos da chuva e dos ventos (At 27, 12-14; 27, 20; 28, 13). Assim, naquele tempo já era bem conhecido nas terras da Europa, sobretudo na bacia do Mediterrâneo, o método clássico de orientação geográfica por pontos cardeais, criado séculos antes pelos chineses. Do monte de La Guardia, Paulo deve ter captado o ocaso do Atlântico e notado uma réstia de terra ao longe, no lado setentrional do horizonte. Usando, por certo, uma "agulha de marear", ele deve ter deduzido que ainda não havia chegado aos "confins do mundo" -- e, para chegar àquela península, vista a noroeste, ele precisaria andar na direção norte por mais uma semana; tal península chama-se, desde tempos imemoriais, "Finsterre". Um ditado lusitano diz que Finsterre é "o lugar onde o Diabo perdeu as botas". Ao chegar a Finsterre, os peregrinos costumam deixar as botas sobre as pedras do monte, queimar as roupas usadas na caminhada e devolver ao mar a vieira (concha) conduzida no trajeto; com outras vestes, eles trazem de lá só o cajado -- e saem convictos de terem renascido para a vida.

O Caminho Português para Compostela parte do porto velho de Tui (norte da ponte do rio Minho), próximo à La Guardia. Não há provas de o apóstolo Tiago ter rumado à Finsterre, que é considerada o término natural do Caminho de Santiago. Mas, fico a imaginar que a rota que parte do cabo de La Guardia para Finsterre, passando por Compostela, pode ser o. . . "Caminho de Paulo e Tecla"! Por isso, eu também penso que o peregrino que caminha por essa trilha sente tripla emoção espiritual, enlevada de Santo Iago, de São Paulo e de Santa Tecla.

Fontes:

1. Anan, o quinto filho de Anás, foi o sumo sacerdote do Templo, no ano 62 EC. Ele incitou a turba dos judeus de Jerusalém a atacar Tiago, o irmão do Senhor, que findou morto por apedrejamento; em seguida, Anan foi destituído do cargo e substituído por Jesus ben Damne (62-63); o cargo foi depois ocupado por Yoshua ben Gamaliel (63-65). "Um ?edictum sobre o prazo da acusação? prevê para causas capitais o prazo de um ano e meio, quando uma das partes reside fora da Itália". (Rinaldo Fabris, in "Paulo, apóstolo dos gentios", S. Paulo: Ed. Paulinas, 2008, p. 647).
2. A ida de Paulo à Espanha foi confirmada por nove fontes antigas: Clemente, Jerônimo, João Crisóstomo, Epifânio de Salamina, Atanásio de Alexandria, Euzébio, Cirilo de Jerusalém, Atos de Pedro (apócrifo) e Cânon de Muratori. Certamente desiludido pela Espanha pouco habitada, Paulo voltou à populosa Roma no ano 64 EC e foi martirizado.
3. A colônia romana de Tarragona foi proclamada "o melhor lugar de lazer" pelo poeta romano Virgílio (70-19 AEC). Situada em um penhasco de terra firme, à beira-mar, o porto de Tarragona é o que tem as águas mais profundas da Espanha; elas atingem mais de cem metros de profundidade, a uma distância igual do litoral. (Ao invadir a Itália, Aníbal aportou em Tarragona com cem elefantes). Acima do nordeste de Tarragona se situa a cidade de Barcelona, onde havia grande probabilidade de encalhe de navios, por conta dos bancos de areia e dos fortes ventos que assolam o litoral, na primavera e no verão; por isso, essa região ainda hoje se chama Costa Brava. (Além do mais, quem adentrasse na Espanha por Barcelona teria sérias dificuldades para vencer as serras altas da Catalunha).
4. Em face das escavações feitas em La Guardia, os arqueólogos concluíram que o castro foi construído no século III AEC e é de origem celta; mas, lá eles também encontraram restos de utensílios domésticos de origem romana.
5. Monte de "Santa Tegra", no idioma galego (da Galicia, autonomia histórica da região setentrional da Espanha).
6. Paulo conheceu Tecla em Icônio e a converteu ao cristianismo, conforme está nos Atos de Paulo e Tecla (apócrifo venerado na Igreja Oriental). Tecla seguiu Paulo na missão de Antioquia da Pisídia. O nome de Tecla não consta do Novo Testamento, mas, para as Igrejas Católica e Grega, ela é a Santa dos Agonizantes. Paulo e Tecla estão representados juntos no afresco da Gruta de São Paulo, em Éfeso. (Os locais aqui citados ficam na atual Turquia).
7. A Carta aos Romanos foi escrita por Paulo, a partir da Grécia ou da Macedônia, entre os anos 57 e 58 EC.
8. Quem fosse do Oriente ao Atlântico, por terra, levaria um ano para cruzar o sul da Ásia, os Alpes e os Pirineus, em jornada de mais de quatro mil quilômetros, a pé. Quem levou os despojos de Tiago à Espanha e por onde passou? Quem andava por lugares virgens precisava de água potável e, por isso, sempre buscava seguir os cursos dos rios.
9. León é corruptela castelhana da palavra latina Legio, que significa Legião.
10. Para se orientar nas noites claras os antigos também se valiam da lua e das estrelas. A navegação noturna ficava perigosa e praticamente impossível quando as nuvens carregadas impediam de se ver as estrelas do céu.
11. A "agulha de marear" é a parte principal da bússola. [A palavra "bússola" vem do latim e significa "pequena caixa" (octogonal), a identificar o objeto onde a agulha de marear era colocada sobre um pivô ou a flutuar sobre óleo].
12. No idioma galego, a palavra "Finsterre" (ou "Finisterre") é uma síncope gramatical da locução latina "fim da terra".