Resumo do texto “A trajetória anarquista no Brasil na Primeira República”, de Edilene Toledo

 

A autora inicia o texto informando sobre a importância do anarquismo – bem como do socialismo e sindicalismo revolucionário – enquanto importante instrumento no processo de auto-organização da classe trabalhadora, o qual alterou as dinâmicas de relação não apenas politico-ideológicas, mas também as formas de agregação social – recreativas, culturais, educacionais etc. – dos proletários. Os anarquistas utilizavam-se da comunicação como principal ferramenta de fomento de seu ideário e da politização das relações sociais, incentivando sempre estas se sustentassem em formas autônomas de organização popular. A circulação das ideias tanto anarquistas quanto socialistas e sindicalistas se dava, majoritariamente pela mídia impressa – jornais, panfletos, informativos, livros, dentre outros –, mas também oralmente em comícios, campanhas e debates que eram levantados em todos os espaços onde havia a oportunidade.

            A proposta era se criar um ambiente de reflexão sobre os valores, comportamentos e símbolos que mantinham as hierarquias sociais consolidadas, o status quo de uma mentalidade elitista que condenava o trabalhador e o excluía da discussão política, tanto dentro quanto fora das instituições. Neste sentido, conforme afirma Toledo (2007), as reivindicações influenciadas por correntes como o anarquismo no contexto do Brasil da Primeira República eram, na verdade, um esforço pela democratização social. Se configuravam enquanto lutas que iam além de questões trabalhistas e buscavam “assegurar o direito à própria existência, ou seja, a garantir condições de democracia e de civilidade, em que o movimento e a organização dos trabalhadores pudessem ser reconhecidos como um elemento legítimo na sociedade”. (TOLEDO, 2007, p.55)

           

Histórico do Anarquismo enquanto movimento internacional e sua influência no contexto brasileiro entre o fim do século XIX e início do XX

            Conforme esclarece Edilene Toledo (2007), o anarquismo desde seu nascimento desenvolve-se enquanto movimento internacional, sendo posteriormente desmembrado e impresso às realidades nacionais enquanto movimento político. Os simpatizantes do anarquismo se reconheciam, antes de tudo, como atuantes de um projeto internacional comum, utilizando-se da linguagem e ação anarquistas como estratégia de resolução de seus problemas locais. Deste movimento desdobram-se ações práticas importantes, discutidas em congressos internacionais anarquistas como o de Amsterdã, em 1907, onde se decidiu pela criação de um bureau para manter fortes as relações internacionais entre grupos anarquistas, bem como a troca de informações.

Este tipo de organização foi fundamental para união das partes e manutenção do ideário, visto que os grupos, apesar de unânimes em relação aos objetivos comuns – necessidade de abolição do Estado, recusa à tática eleitoral, parlamentar e oposição a partidos centralizados, defesa da ação direta e valorização da individualidade – apresentavam diferentes orientações e formas de ação prática. Neste sentido, a manutenção das boas relações de comunicação foram outro ponto chave de sustentação do movimento, não apenas como forma de expressão mas também forma de não deixar os grupos se esquecerem dos princípios comuns que os une.

Deste modo, por se tratar de uma corrente que utilizou amplamente a imprensa como meio de propagação ideológica, era principalmente através destes materiais que a palavra anarquista alcançava terras além-mar. No Brasil não foi diferente. As primeiras ideias anarquistas advindas da Europa atracaram nos portos de Santos ou Rio de Janeiro através de jornais, livros e folhetos que circulavam dos grandes centros às pequenas cidades. A literatura anarquista ganhava corpo através de grandes nomes do anarquismo europeu como Bakunin e Kropotkin, Errico Malatesta, dentre outros, tendo suas ideias traduzidas para diversas línguas a fim de possibilitar o intercambio reflexivo e das propagandas.

A ideia da concepção de uma sociedade livre e igualitária, onde não existissem mais Estado, igrejas e o capitalismo ecoou nos corações de muitos brasileiros, que viram no anarquismo uma forma de transformarem a si e à sociedade em que viviam, no final do século XIX e início do século XX. A partir daí, mesmo perdendo força a partir de 1920, o movimento anarquista nunca mais desapareceu no Brasil. A autora evidencia que este período, conhecido como anarquismo histórico, teve seu ciclo fechado a partir do surgimento dos partidos comunistas, com consequente aumento da presença do Estado, e também a partir de fracassos na experiência libertaria internacional como a Guerra Civil Espanhola, que fez arrefecer o sonho anarquista de muitos. Seria apenas mais tarde, a partir dos anos 1960, que o anarquismo ganharia novo pulso e roupagem a partir do surgimento de movimentos sociais identitários, fortalecendo sua voz principalmente em ambientes universitários.

 

O início do anarquismo brasileiro

Há indícios de que as primeiras experiências anarquistas no Brasil começaram a partir de 1890, pela via da vida comunitária, com a criação de pequenas colônias coletivistas formadas por imigrantes e militantes do movimento anarquista. Com o fracasso de algumas destas colônias, dado à dificuldade no trabalho e conflitos nas relações entre os próprios colonos, seus membros foram se pulverizando por São Paulo e pela imprensa libertária.

Em 1892 foi fundado o primeiro jornal libertário do Brasil, Gli Schiavi Bianchi (Os Escravos Brancos). Seu nome fazia referencia às duras condições trabalhistas e de vida que enfrentavam muitos trabalhadores imigrantes no país, especialmente nas fazendas de café do estado. A criação do jornal permitiu a organização de manifestações. A data do Primeiro de Maio[1] foi uma das ocasiões escolhidas para o protesto, e desencadeou um histórico de muitas lutas violentas e repressão. A polícia culpava os ativistas por atentados e os perseguia, muitos sendo presos arbitrariamente, por motivos duvidosos e tendo retirados seus direitos de justiça. Em 1983, os anarquistas são noticiados pela grande imprensa paulistana e taxados como “imigrantes anarquistas”, indivíduos perigosos que objetivavam implementar a desordem e o caos no país.

Neste período entre o fim do século XIX e início do século XX, surge uma série de jornais anarquistas em língua estrangeira – especialmente o italiano, como o La Bestia Umana, La Battaglia, La Nuova Gente etc. – e em português, mas majoritariamente escritos por italianos – Germinal, O Amigo do Povo, A Terra Livre e muitos outros. (TOLEDO, 2007) Seguindo os passos dos militantes anarquistas de outros países, a criação destes jornais significou a criação de uma experiência alternativa de informação que visava não apenas trazer conteúdo aos trabalhadores, mas também opor-se às ideias impostas pela grande imprensa. Além disso, estes jornais proporcionavam um espaço que ia além da propaganda, mas sim se concretizando enquanto plataformas propulsoras e coordenadoras de grupos nos planos local, estadual e até mesmo nacional.

Alguns exemplares como O Amigo do Povo possuía publicações regulares que eram vendidas ou distribuídas gratuitamente na cidade, sendo mantidas por meio de apoio de camaradas e simpatizantes do movimento. Jornais como La Battaglia (posteriormente chamado de La Barricata), considerado o jornal anarquista mais fortemente anti-sindicalista, teve grande difusão em São Paulo, chegando a ter tiragens de 5 mil exemplares semanais, equiparando-se à época aos maiores jornais do país. Já no Rio de Janeiro, apesar de haver registro de atividades anarquistas na cidade desde 1892, os primeiros jornais anarquistas aparecem mais tarde, em 1898, com O Despertar e O Protesto. Outros exemplares vão aparecendo, ao longo do tempo, em outras regiões do país: A Luta, no Rio Grande do Sul, surge como o primeiro jornal anarquista em 1906; em Curitiba, Il Diritto é fundado em 1900; A Nova Era circula em Minas Gerais entre 1906 e 1907, dentre outros.

Seja dentro dos espaços dos jornais, sindicatos ou grupos libertários, o que não faltou foram exemplos de grandes militantes que atuaram pela causa anarquista no Brasil. Jovens como o brasileiro Benjamim Mota, jovem advogado que defendia judicialmente militantes anarquistas, sindicalistas e socialistas presos e ameaçados de deportação foi não apenas um exemplo de luta, mas também deixou suas próprias contribuições literárias por meio da escrita de livros anarquistas. Luigi Damiani também fez história dentro do anarquismo nacional, seja na direção dos diversos jornais anarquistas em que atuou, seja na defesa de transformar os sindicatos espaços para a propaganda libertaria. Estes e outros nomes contribuíram para a difusão do ideário revolucionário entre os trabalhadores, denunciando as condições exploratórias do trabalho, mas tinham em seu discurso falas endereçadas à toda sociedade, de forma a cumprir com o intuito anarquista de conscientizar e emancipar toda a humanidade, e não apenas os operários. (TOLEDO, 2007)

 

O papel desempenhado pelo anarquismo na Primeira República

            Apesar de inegável a contribuição das teorias anarquistas para a história do pensamento e ação política da esquerda no Brasil, principalmente nos primórdios do século XX, não é possível validar completamente certas análises que fazem uma associação exclusiva desta corrente com o movimento operário brasileiro deste período, uma vez que a experiência vivida pelo operariado e militantes era bastante complexa, sendo o anarquismo apenas uma dentre muitas correntes de um diverso cenário político da época.

            Toledo (2007) afirma que a forma como se deu a organização do operariado, seja por meio de participação nos congressos, jornais e ligas operárias, demonstra que o movimento, em verdade, foi na maior parte do tempo muito mais sindicalista revolucionário que anarquista. A atuação de anarquistas e sindicalistas pela propaganda política em jornais e conferências, ligas, sindicatos, intermediação de greves etc., bem como nas associações de socorro mútuo, somou muito ao movimento e ao incentivo às formas de auto-organização do proletariado, contudo, na foram o suficiente para que se criasse um pensamento que fugisse à lógica sindicalista do operariado.

Mas isto não significou um afastamento dos membros do movimento anarquista à luta dos proletários, muito pelo contrário. Toledo revela em seu texto que, apesar serem minoria entre os trabalhadores, os militantes anarquistas eram muito ativos e bastante visíveis. Iniciativas como I Congresso Operário Brasileiro (Rio de Janeiro, 1906) configurou-se enquanto o primeiro grande esforço de construção de uma identidade entre o movimento operário do país. Apesar da ampla participação dos anarquistas nos debates, a influência do sindicalismo revolucionário[2] continuava mais expressiva nas resoluções, tal qual ocorria nas realidades da organização operária de muitos estados.

Correntes como o sindicalismo revolucionário continha traços de seu pensamento que em muito dialogavam com as ideias anarquistas. No entanto, tratavam-se de ideologias diferentes, especialmente no tocante às opiniões a respeito da instituição dos sindicatos. O sindicalismo revolucionário entendia o sindicato enquanto órgão necessário para as conquistas imediatas e para a transformação da sociedade que, futuramente, seria gerida pelos trabalhadores através destes organismos. Os anarquistas, do contrário, apesar de utilizar dos espaços sindicais como plataforma para difusão das ideias libertarias, entendiam que o sindicato desapareceria no projeto futuro de sociedade que buscavam construir. A importância da figura dos sindicatos ao movimento operário brasileiro, todavia, fez com que vários anarquistas aderissem, na prática, ao sindicalismo revolucionário, mesmo que contradizendo as doutrinas anarquistas. (TOLEDO, 2007)

O sindicalismo revolucionário tinha como um de seus objetivos centrais atenuar os conflitos no interior do operariado. A questão da neutralidade política das ligas e sindicatos surgiu como forma de tentar desfocar as discussões das divergências político-ideológicas, conectando-as à base sólida comum de defesa aos interesses econômicos comuns a todo proletariado. Os anarquistas acusavam os sindicalistas de buscar uma solidariedade econômica ilusória em vez de uma efetiva solidariedade moral. Este pensamento partia da negação aos preceitos marxistas de luta de classes que, de acordo com os libertários, trazia a ideia de supremacia de uma classe – que, ao seu entender, não era hegemônica – sobre as outras. Os anarquistas criam que uma investida contra o Estado e o capital deveria ser movida por uma  concepção comum de justiça, igualdade e liberdade, e não pela visão da posição que uma classe econômica ocupa.

 

A força da ideia anarquista

            Toledo (2007) afirma que, em um período onde forças oligárquicas detinham o poder político institucional e, consequentemente, o poder de decisão sobre as massas, o Estado era sentido pelos trabalhadores como uma eterna fonte de opressão. Deste modo, as ideias anarquistas se tornavam atrativas ao proletariado, surgindo como uma alternativa viável ao Estado, ao propor uma organização social voluntária, onde prevaleceria a livre experimentação com o máximo de liberdade, solidariedade e fraternidade. A política institucional, via de regra, mostrava-se um meio impenetrável ao proletário, onde era difícil se manter a conquista e garantia de seus direitos.

Além da exclusão política, outro impulsionador que favoreceu no fortalecimento das ideias anarquistas eram as limitações das conquistas obtidas na área social com a experiência do socialismo reformista. Desiludidos, os trabalhadores passaram a rejeitar o jogo político dos mecanismos “democráticos” dos Estados liberais e aderir cada vez mais às ideias libertárias. Ao contrário do que dizia o Estado e a classe dominante da época, as ideias anarquistas e sindicalistas revolucionárias não foram simples importação de um ideário político descontextualizado, com ideias “exóticas” e fora do lugar, mas sim ferramentas que permitiram incorporação de uma linguagem, ideias e práticas novas à resolução de problemas concretos do proletariado nacional. O fato dos grupos anarquistas serem compostos de maioria imigrante mostra apenas que estes eram então maioria entre os trabalhadores.

O movimento anarquista surgiu em um contexto especifico de crítica à expansão do capitalismo e presença do Estado. A filosofia libertária sugeria em muitos casos uma espécie de democracia direta, onde os indivíduos participariam regularmente das decisões que os afetava, assumindo responsabilidades comunitárias. Neste esquema, de acordo com Toledo (2007), o mundo se configuraria enquanto uma grande federação de federações formadas por comunidades autogeridas. O Estado e os proprietários temiam as ações anarquistas e os efeitos de sua propaganda, reprimindo-os constantemente com prisões e deportações, havendo nestes casos íntima colaboração entre poder público e privado – não apenas no Brasil, mas na maior parte do mundo.

Para alguns autores, além deste ponto de fragilidade, outro desafio a se enfrentado pelo movimento anarquista eram as diferenças étnicas e de nacionalidade no interior da classe operária – especialmente entre brasileiros e estrangeiros como os portugueses, em alguns estados – provocavam conflitos que se sobrepunham aos interesses gerais e à organização do grupo. Por outro lado, o que definia um dos sucessos da ideologia entre os trabalhadores, de acordo com algumas bibliografias, era o estabelecimento dos laços com a terra natal mantidos com a adesão ao anarquismo, provendo a estes trabalhadores uma percepção de si mesmos enquanto “integrantes de uma classe universal e um movimento internacional contra a exploração” (TOLEDO, 2007, p.67).

 

Anarquismo e imigração

            Os imigrantes – sobretudo para atender às necessidades de mão de obra nas fazendas de café –, deslocaram-se para os centros urbanos e inseriram-se no mercado como operários e trabalhadores manuais, levando consigo também seu histórico de lutas políticas em seus países de origem. Nas cidades, encontravam outros companheiros de luta, em sua maioria refugiados de seus países, perseguidos por conta de sua atuação política. Traziam, especialmente os italianos, influências de autores clássicos anarquistas como Bakunin e Malatesta.

Eis uma das grandes forças motrizes da rede de comunicações forte que se estabelecia entre os anarquistas: era comum que militantes do movimento fossem perseguidos e precisassem exilar-se temporariamente ou pra sempre, por conta de suas manifestações políticas. Sendo assim, os grupos anarquistas acabavam constantemente hospedando militantes estrangeiros fugidos, fortalecendo assim laços de luta e amizade, ao ouvirem suas opiniões e compartilharem experiências vividas por meio da militância. Conforme bem pontua Edilene Toledo (2007), o anarquismo, deste modo, era internacional em teoria e também na pratica.

 

Os Grupos de Propaganda

Considerada a célula organizativa do movimento anarquista, os grupos de propaganda eram espaços abertos a todos, onde qualquer pessoa poderia entrar e sair sem obrigações, sanções ou algo que os fizesse permanecer além de seu próprio desejo – ações que estavam em harmonia com a vida social futura que o anarquismo concebe. Graças a esta flexibilidade que não exigia uniformidade ideológica, havia grande heterogeneidade na formação destes grupos.

A base central de cooperação voluntária também era desprendida de uma preocupação com a coerência doutrinaria e com as implicações teóricas gerais das afirmações particulares. Estes órgãos não dotavam de aparente estrutura fixa, sendo os novos membros – em sua maioria trabalhadores manuais, que provavelmente aderiram ao movimento inspirados pela leitura de algum jornal anarquista – geralmente recomendados por algum antigo, e assim permaneciam até que houvesse desentendimentos ou o núcleo sofresse algum tipo de repressão que o forçasse a se desagregar.

No tocante aos desentendimentos entre membros, estes comumente aconteciam em decorrência de divergências ideológicas dentro da própria teoria anarquista. As diferenças entre tolstoianos, malatestianos, stirtenianos, dentre outros, traziam inconvenientes ao movimento. Certas tentativas de união do grupo eram engendradas por meio de campanhas homogeneizadoras que criticavam o individualismo exagerado, acusando a seus adeptos de se aproximarem em partes ao pensamento liberal. (TOLEDO, 2007, p.69) Alguns grupos se especializavam em atividades não apenas teóricas mas também concretas, como a criação de escolas, publicação de livros e folhetos, criação de centros de estudo e bibliotecas, atividades teatrais, organização de debates e conferencias, piqueniques, viagens de propaganda etc. Muitas vezes um mesmo militantes participava de vários grupos.

O exercício da discussão teórica, contudo, mostrava-se essencial aos militantes anarquistas, que viam com muita seriedade o exercício da fala e escrita em jornais, comícios, campanhas e conferências. O sonho de cada ativista era ter seu próprio jornal, e depois transformá-lo em seminário, tamanha a importância que a imprensa tinha enquanto fomentadora de sua identidade política. Era este mecanismo o principal conector entre estes pequenos grupos, que dialogavam entre si através de seus escritos, sejam em diferentes partes do Brasil ou do mundo.

 

Anarquismo, arte e educação

De acordo com a autora, “para os anarquistas, só a educação, ao criar novas mentalidades, despertando vontades e trazendo o homem mais próximo do que desejou a natureza é que garantiria o êxito da revolução social” (TOLEDO, 2007, p.71) Era este caminho, de acordo com o movimento, que garantiria o acesso a uma consciência revolucionária, sendo, assim, o esforço pela democratização da educação uma bandeira anarquista.

Eram grandes incentivadores do avanço intelectual, e buscavam fazê-lo através de seus escritos, desencadeando no proletariado amplo desenvolvimento da instrução e autodidatismo populares. Por este motivo, tornava-se uma corrente atrativa à classe trabalhadora, que se sentia mais autônoma e detentora de seu próprio saber. A ideia da vertente anarquista era não apenas propagar seu ideário político, mas também uma moral não contaminada por dogmas religiosos, do Estado e da moral burguesa, a fim de se produzir uma nova humanidade. Neste esforço pela educação, a imprensa era o principal meio de expressão.

Logo, o movimento buscava não apenas criticar, mas também quebrar com a lógica que uma educação controladora e disciplinadora proporcionava, criando indivíduos sem autonomia, sem iniciativa e submissos. Propunham uma educação com novos princípios, objetivos e métodos, que visasse estimular a originalidade, iniciativa, responsabilidade e autonomia. Com o aumento da aderência ao anarquismo, a educação brasileira foi, passo a passo, sendo fortemente influenciada por um amplo movimento de renovação pedagógica, tal qual ocorreu na Europa no fim do século XIX. Inspirados pelas ideias de Francisco Ferrer, da Escola Moderna, os anarquistas abriram escolas que seguiam esta experiência pedagógica no Brasil, onde filhos de anarquistas e operários frequentavam.

As experiências educativas se davam também além do plano formal das escolas, com centros de estudos, sindicatos, através da literatura, teatro, jornais, dentre outros meios de manifestação que eram amplamente incentivados. A ideia era mostrar ao trabalhador que ele mesmo é fonte de seu próprio saber, sendo, portanto, plenamente capaz de seu autor de suas próprias referencias bibliográficas. Projetos ousados como a Universidade Popular – que tinha como objetivo instrução e educação superior do proletariado – foram criados e, mesmo tendo curta duração, despertou grande entusiasmo na classe. A imprensa anarquista registrava frequentemente apresentações de peças de teatro escritas pelos próprios militantes, encenados nos teatros populares das cidades. A literatura também foi explorada enquanto importante obra educativa, com romances e histórias que faziam parte da literatura “útil” anarquista.

 

Os anarquistas e os sindicatos: reforma e revolução

Apesar deste desenvolvimento educacional proposto pelo ideário anarquista, ainda assim, os trabalhadores se mantinham atrelados às questões práticas da luta, não adentrando muito às teorias libertárias e se atendo às pautas urgentes. Em 1890, o sindicalismo revolucionário começa a se construir enquanto projeto internacional, nascendo enquanto movimento dentro dos sindicatos e ganhando forma posteriormente enquanto doutrina política. No Brasil, este movimento se estabelece enquanto prática sindical, envolvendo militantes de diferentes vertentes.

Apesar de muitos anarquistas considerarem organizações sindicais importantes para a defesa dos interesses dos trabalhadores, visualizando nestes órgãos um espaço para que o proletário alcance uma consciência de sua situação e sua auto-organização, defendiam a necessidade de se terem organizações estritamente anarquistas, de forma a impedir a degeneração do ideário e também que a luta caísse no reformismo. Para os anarquistas, as reformas sociais eram vistas como um desvio de energia, pois não combatiam as estruturas capitalistas vigentes.

A relação entre anarquistas e sindicatos, em sua maioria, era estritamente tática: participavam destes meios como forma de fazer a propaganda anarquista e deter os avanços do socialismo, sindicalismo revolucionário e outras vertentes. Havia uma grande polêmica entre os anarquistas sobre esta questão de se deveriam atuar ou não nos sindicatos e como fazê-lo. Toledo (2007) indica que as fontes documentais apontam a existência de três tendências principais no movimento: 1) os anarquistas que eram totalmente contrários aos sindicatos, por considerá-los irremediavelmente reformistas; 2) aqueles que, inspirados nos ideias de Ericco Malatesta, reconheciam os sindicatos como espaço privilegiado de propaganda, mas recusavam-se à neutralidade política (defendiam a adesão à greve geral, desde que esta endereçasse à insurreição, contra o reformismo); 3) aqueles que conseguiam fazer um recorte do Brasil da época e entender que a revolução não estava próxima o bastante do que o ideário anarquista pregava, preocupando-se mais com as reivindicações concretas do que em sustentar o discurso anarquista em si (muitos destes, mais tarde, acabaram inclusive adotando os preceitos do sindicalismo revolucionário).

Uma fala que marca bem a opinião de muitos anarquistas a respeito dos sindicatos, ligas e federações operárias é este trecho do artigo de Luigi Damiani (1912):

“No sindicato tem lugar pra todo mundo: quem paga as quotas e faz greve quando há ordem é sempre um bom companheiro, mesmo se é nacionalista e católico. No sindicato, a propaganda idealista é uma ofensa, uma violação aos direitos da barriga e à liberdade daqueles que não estão nem aí com a abolição do Estado e da propriedade capitalizada. Tudo o que não se refere às oito horas e aos dez centavos a mais deve ser recusado”. (DAMIANI, L. 1912 apud TOLEDO, 2007, p.76)

 

Greves e insurreição

Os grupos anarquistas tiveram papel importante em vários momentos da luta dos trabalhadores, especialmente através de seus jornais, comícios e manifestações. Toledo (2007) cita três momentos importantes da atuação anarquista nas manifestações populares do Brasil: a luta pelas oito horas de 1907, as greves e manifestações de 1917 e a insurreição de 1918. A primeira delas – a luta pelas oito horas – foi marcada por diversos movimentos grevistas, desencadeados nos grandes centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife e Santos, visando a diminuição da jornada de trabalho a operários de diferentes setores, grandes e pequenos, em diferentes categorias. Apesar de não ser comandada diretamente pelos anarquistas, a polícia atribuía as lideranças das greves a estes. Se tratou de um movimento em cadeia, iniciado pela greve geral dos construtores de veículos, e durou cerca de um mês. A greve foi vitoriosa, e desencadeou movimentos grevistas em outros setores, em sua maioria gerais e simultâneos. Algumas áreas conseguiram atendimento de todas as pautas, outras diminuição da jornada, mas não para 8 horas, e outras tantas conquistaram poucas garantias, sem que esta questão honorária fosse citada. Houve forte repressão armada dos policiais, com prisões e confisco de itens que não foram mais devolvidos.

Em 1917, o jornal anarquista Fanfulla anunciou o desaparecimento e prisão de Giulio Sorelli, líder das manifestações de 1907. As greves de 1917-19 ocorreram por organização dos próprios trabalhadores, contando com participação de líderes de várias vertentes. Manifestações quase diárias ocorriam no Rio de Janeiro e em São Paulo contra o alto custo de vida, o trabalho de mulheres e crianças e outros problemas que afligiam o movimento. As reivindicações exigiam ações tanto do Estado quanto dos empregadores, o que demonstrou o caráter de greve operária, visto que era o movimento sindical quem realizava as negociações com o Estado. A repressão policial foi brutal, mas não o bastante para parar o movimento, que mobilizou uma parcela sem precedente de trabalhadores. O Estado continuou apostando na repressão em vez de negociação, aumentando o numero de prisões e deportações (TOLEDO, 2007).

Em uma conjuntura caótica marcada pela repressão e por uma grande recessão econômica, uma onda de greves se instaura no Rio de Janeiro, em 1918, atingindo principalmente operários da fábrica de tecidos, e se alastrando às cidades próximas. Os intensos conflitos geraram coragem nos anarquistas, que propõem uma insurreição, ou seja, um levante que tinha como meta tomar o Palácio do Governo. De acordo com alguns estudiosos, no entanto, o motim não teve apoio do movimento operário, que à época haviam se mobilizado apenas para sustentar as greves, e não uma tomada real do poder. Utilizando-se desta justificativa para responsabilizar o movimento grevista, o Estado aumenta a repressão contra o movimento operário, que acaba pondo o fim às greves após intensa ação policial, pressão patronal e dificuldades financeiras, sem conquistar nenhuma das pautas de reivindicações.

Entre 1919 e 1920, o movimento operário entra em uma fase intensa de manifestações e de grandes greves. As reivindicações, de acordo com Toledo (2007), eram praticamente as mesmas dos anos anteriores, e mesmo com a forte repressão que o grupo sofreu, o sindicalismo se fortalece, especialmente devido às atividades dos anos anteriores. Contudo, mesmo com o exercício da luta se mantendo empenhado, as greves não atingem mais a dimensão colossal que obteve entre 1917 e 1919. De acordo com a autora, devido a isto muitos estudiosos atribuem a este fato o fim da fase histórica do movimento operário no Brasil.

 

Anos 1920 e 1930: Continuidades e Rupturas

Toledo afirma que, a partir de 1920, inicia-se o declínio do movimento anarquista no Brasil. Este evento teve como grande fomentador algumas questões como a ampliação dos debates sobre os acontecimentos na União Soviética, que fez surgir uma separação mais declarada, dentro do movimento operário, entre comunistas e anarquistas. Em outras palavras, parte das lideranças operárias começou a negar os ideais libertários e, inclusive, conforme revela a autora, o surgimento do Partido Comunista no Brasil, em 1922, teve envolvimento de ex-anarquistas em sua fundamentação.

As ondas de repressão também atingem as atividades propagandísticas da esquerda e, consequentemente, da imprensa anarquista, que sofre perdas com a criação da lei de repressão e controle da imprensa, promulgada em 1921. O fluxo opressivo segue e, em 1924, o movimento operário é duramente atacado, com envio de diversos militantes, anarquistas e demais simpatizantes ao campo de concentração da Clevelândia, no Oiapoque, onde muitos acabariam por falecer.

Mesmo com a repressão, no entanto, o sindicalismo revolucionário continua a desempenhar um papel importante no meio sindical e movimento operário, mesmo nas décadas de 1920-30, atuando em defesa da unidade e autonomia da classe. Em contrapartida, os grupos anarquistas vão, gradativamente, perdendo apoiadores, até mesmo apoio de líderes expressivos como Oreste Ristori, um dos nomes mais combativos do anarquismo brasileiro. Ainda assim, conforme afirma Toledo (2007), é inegável o quanto o sindicalismo revolucionário e anarquismo foram elementos fundamentais na história política do movimento operário brasileiro, sendo reconhecidos até pelos mais opositores enquanto elemento crítico importante na construção de pensamento e identidade dos trabalhadores do Brasil.

 

Referências bibliográficas:

 

TOLEDO, Edilene. “A trajetória anarquista no Brasil da Primeira República”. In: FERREIRA, Jorge; REIS, d. Aarão. As esquerdas no Brasil. A formação das tradições (1889- 1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

 

 

 

[1]A data possui um simbolismo de luta e se tornou um marco desde que instituída pelos socialistas franceses, em 1890. Marcava o fechamento do ano dos trabalhadores, onde era possível fazer um balanço do ano de lutas que passou, criando-se novas estratégias de abordagem, bem como renovar as expectativas para o próximo ano através de grandes manifestações e agitações. Era um momento aproveitado pelos anarquistas para intensificar suas manifestações e sua propaganda.  (TOLEDO, 2007, p.60)

[2] “O sindicalismo revolucionário reunia algumas ideias anarquistas – como a negação do Estado centralizado e do partido -, mas também ideias marxistas – como a luta de classes, recusada pelos anarquistas como base de sua doutrina”. (TOLEDO, 2007, p.64)