Resumo

O objetivo do autor nesse texto é fazer uma reflexão dialética entre a teologia e psicanálise mostrando a importância da fé como matriz simbólica, para a preservação da saúde psíquica diante dos traumas, procura entender como a fé pode ajudar na elaboração de sentido, para a preservação da saúde psíquica diante dos traumas da vida. Sem um ideal, algo que esteja para além de si, o  salmista poderia ter sofrido uma ruptura no psiquismo, criar uma realidade paralela, para fugir da realidade através de uma paranóia ou esquizofrenia. 

 A perda da liberdade como angustia da vida desejada, mas não vivida

O Salmos 129 na bíblia hebraica é chamado de “Salmos de Peregrinação”, ou “Cânticos das Subidas”, em algumas traduções é “Cânticos de Degraus”. A expressão “das subidas” tem a raiz verbal na palavra ‘Alah’ que significa “subir”, também pode ser interpretada por “salmos de romaria ou romagem”. Esse cântico era usado no período pós-exílico pelos judeus que peregrinavam em direção as festas cultuais no reconstruído Templo em Israel, entoavam cânticos que relembravam sua história. 

O personagem não identificado relata suas experiências traumáticas causadas quando foi levado como escravo para outra nação. Não ha referências sobre sua história, apenas o registro das angustias que o acompanham “desde a mocidade”. A palavra “mocidade” nesse contexto, também pode ser interpretada em relação à nação de Israel que foi levada para cativeiros por outras nações, durante a sua existência, contudo, os pronomes pessoais “me” são referências a pessoa. 

O Salmista faz uma síntese histórica da sua vida:

Muitas vezes me oprimiram desde a minha juventude; que Israel o repita: muitas vezes me oprimiram desde a minha juventude, mas jamais conseguiram vencer-me. Passaram o arado em minhas costas e fizeram longos sulcos. Mas o SENHOR é justo; cortou as cordas dos ímpios. Sejam envergonhados e repelidos todos os que aborrecem a Sião! Sejam como a erva dos telhados, que seca antes de florescer, com a qual não enche a mão o ceifeiro, nem os braços, o que ata os feixes! E também os que passam não dizem: A bênção do SENHOR seja convosco! Nós vos abençoamos em nome do SENHOR!” (Salmos 129.1-8).

O Salmista fala 3 vezes que foi oprimido, perdeu algo valioso e não conseguia elaborar sua perda, dar sentido, nesse estágio, a pessoa sente-se vitima, e só consegue se lamentar. No relato ele usa verbos no tempo passado, “me oprimiram, jamais conseguiram, passaram, fizeram”, contudo, em seu psiquismo o tempo é presente, não linear, ou seja, quanto maior o trauma, mais nítidas serão as lembranças, o sofrimento psíquico é sempre atual. 

Queixar-se do passado é algo comum, quando as pessoas procuram ajuda para resolver seus conflitos, normalmente à recomendação que ouve é: "esquece o passado", “deixa para trás”, “já passou”! Essas frases ignoram a realidade de que um “esquecer” não é uma questão racional, volitiva, é preciso rememorar, para então elaborar, dar sentido a experiência do trauma, vivenciar, para então se lembrar e não mais sofrer com as lembranças. 

Esse estado em que se encontra o Salmista colocando tudo sobre o Eu (me) foi descrito por Freud (1914-1916) “o que se vê é auto-acusação e uma acentuada baixa na autoestima, pois há um empobrecimento do ego”, para dimensionar o seu sofrimento,  o salmista usa uma metáfora, “passaram o arado em minhas costas e fizeram longos sulcos” (Salmos 129.3), ele tenta trazer para si os olhares de comiseração, evoca a figura de um animal abrindo buracos nas suas costas, como os agricultores o faziam para lançar a semente no solo, ele queria  dimensionar o seu sofrimento, criar uma imagem virtual de como seria se os ferimentos fossem no seu corpo.

A ideologia como recurso psíquico nos momentos de crises

O mundo contemporâneo é carente de ideais, falta de ter uma causa que aponte para além si, que transcenda os limites do humano. O salmista tinha enraizado no seu psiquismo uma matriz simbólica que o ajudou suportar suas angustias, “O Senhor é justo! Ele libertou-me das algemas dos ímpios” (Salmos 129.4), não está em questão a “existência ou não de Deus”, essa não é uma dimensão empírica, cientifica que pode ser provada, ou seja, é uma realidade psíquica, “Deus existe para quem crê”, essa se concretiza na experiência do salmista, que apesar do extremo sofrimento, tinha esperança de que sua situação iria mudar, a fé é produtora de sentido, ajuda na elaboração do sofrimento. 

O salmista era Judeu, tinha enraizado desde sua infância a fé num Deus transcendente, que está no controle, e que tudo o que acontece, tem um propósito, assim, certamente nos momentos mais críticos, lembrava-se do Shema: “Ouve, Israel, o SENHOR, nosso Deus, é o único SENHOR. Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força. Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração” (Deuteronômio 6.4-7).

Freud (1914-1916) diz que na melancolia, “a sombra do objeto recai sobre o Eu”, se o Eu for resistente o suficiente poderá simbolizar a experiência, redirecionar a libido para outro objeto, percebe-se que embora melancólico, o salmista tinha estrutura psíquica, isso porque, seu Ego projetava para além si, tinha um ideal: sua fé em Deus! No inicio da sua narrativa percebe-se uma forte pressão sobre o Ego, usando em sua fala a primeira pessoa do singular, “me oprimiram, minha juventude, me oprimiram desde, jamais conseguiram, passaram o arado, minhas costas, fizeram longos sulcos” (Salmos 129.1-3). 

Na depressão o investimento libidinal é retirado do objeto e se volta contra o Eu, a pessoa se coloca como vitima, não consegue elaborar a perda, pois uma parte do seu Eu vai junto com a o objeto perdido, sofre a perda, mas nem sempre sabe qual é o objeto perdido. Qual teria o objeto perdido do Salmista? Uma das maiores perdas que o ser humano pode ter, a liberdade! A liberdade que não desfrutou na sua mocidade, um ressentimento, por ter perdido os melhores anos da sua vida. Quem não ficaria ressentido?

A fé como recurso psíquico para a mudança do narcisismo para o amor objetal  

O que teria acontecido com o salmista se não tivesse a fé? Se não tivesse uma matriz simbólica que o ajudasse a suportar essa perda? O personagem do Salmo poderia ter tido um surto psicótico, rompido com realidade, desenvolvido uma paranóia ou esquizofrenia, contudo, seu psiquismo conseguia simbolizar, projetando nos inimigos sentido suficiente para manter o principio da realidade, “sejam envergonhados e repelidos todos os que aborrecem a Sião”! (Salmos 129.5). Percebe-se uma mudança na sua narrativa, quando o Salmista tira o investimento libidinal do Eu e o coloca num objeto que estava para além de sí, “Sião” (Salmos 129.5), um ideal, desejo internalizado, um lugar, ao mesmo tempo, uma causa. Pessoas que tem esperança, ideais, conseguem ter maior resistência em momentos trágicos, tem mais força para lidar com as perdas, pois não deixam a sombra do objeto perdido recair sobre seu Ego.

O salmista consegue sobreviver a suas angustias, porque vislumbra através da sua experiência, que pessoas que tem prazer em fazer o mal, “secam”, a energia da libido projetada no outro com sentimento de ódio, tem seu retorno, em que deseja, é como “a erva dos telhados, que seca antes de florescer” (Salmos 129.6). Ele acredita que pessoas que semeiam o mal são vazias, não produzem frutos, frustram quem espera deles o mínimo que poderia oferecer (Salmos 129. 6-7). 

O Salmista diz, “e também os que passam não dizem: A bênção do SENHOR seja convosco” (Salmos 129.8), ou seja, acreditava que as energias negativas voltam contra quem às emite, seria preciso quebrar esse ciclo, mas quem poderia quebrar? Como vencer o desejo instintual de vingança, como não desejar que o outro sofra o que nos fez sofrer? Ele percebe que para quebrar esse ciclo é preciso inverter a energia, “nós vos abençoamos em nome do SENHOR”! (Salmos 129.8), não é uma questão de sentir para verbalizar, mas verbalizar para sentir.

O Salmista inicialmente desejava o sofrimento dos que o fizeram sofrer, “sejam envergonhados, repelidos, sejam como a erva dos telhados, que seca antes de florescer” (Salmos 129.5,6), mas superou, conseguiu atribuir sentido ao que sofreu e, aos que o fizeram sofrer, conseguiu elaborar seu sofrimento, dar sentido, assim ele sai da passividade, do lugar de vitima, “Muitas vezes ME oprimiram desde a MINHA juventude; muitas vezes ME oprimiram desde a MINHA juventude, jamais conseguiram vencer-ME. Passaram o arado em MINHAS costas” (Sl 129.1-3).

O Salmista assume seu lugar naquilo que se queixa, assume seu lugar de sujeito do desejo, passa a fazer parte do seu sofrimento e torna-se ativo, “nós vos abençoamos em nome do SENHOR”! (Salmos 129.8), conseguiu fazer o bem para os que lhe haviam feito tanto mal, elaborou sua perda, ao olhar para os que viveram a sua semelhança, a mercê da repetição, e percebeu que ainda havia tempo de dar sentido aos seus traumas e seguir em frente.

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FREUD, S. Obras completas volume 12. Introdução ao Narcisismo, Ensaios de Metapsicologia e Outros textos (1914-1916). Cia da Letras.

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