Resumo

Falar da sociedade contemporânea, isto é, a do século XXI, é dar referência a uma sociedade globalizada pelo ecrã digital. Diferentemente de várias outras geradas pela humanidade, a sociedade contemporânea é marcada pelo desaparecimento do diferente e pela confissão de algo privado na esfera pública, graças a proliferação do ecrã digital rumo a ecranização da mente do homem contemporâneo. Assim, neste artigo intitulado: A Sociedade Contemporânea e a Globalização: a questão do Ecrã Digital, pretendemos compreender a sociedade contemporânea globalizada pelo ecrã digital, procurando a causa última escondida por detrás da alienação do homem pelo ecrã digital. Recorremos a Lipovetsky pelo facto de fundamentar que a era digital se desencadeou numa dialéctica digital, congregando o cinema como a tese, a televisão como a antítese e o ecrã digital como a síntese. A síntese da dialéctica digital de Lipovetsky, assemelha-se da dialéctica hegeliana concebida como um Bem em Si. Porém, nos afastamos de Lipovetsky, pois quando analisado o ecrã digital sem correrias, entendemos que, o ecrã digital, isto é, a síntese da dialéctica digital de Lipovetsky transformou-se em um objecto não só de adoração e também de pura vigilância que leva o homem à alienação. Portanto, defendemos a tese segundo a qual, o ecrã digital (a síntese da dialéctica digital em Lipovetsky) não é um Bem em Si, mas um mal ao serviço do capital parasitário de Bauman. A síntese da dialéctica digital é uma tese, a sua antítese é Megabyte e a sua síntese é Facebook, a igreja, a sinagoga digital e o confessionário móvel.

Palavras-chave: Sociedade Contemporânea, Globalização, Ecrã digital, Alienação e Vigilância.

A Sociedade Contemporânea e a Globalização: A Questão do Ecrã Digital

1. Introdução

Neste artigo subordinado ao tema: A Sociedade Contemporânea e a Globalização: A Questão do Ecrã Digital, pretendemos compreender a sociedade contemporânea globalizada pelo ecrã digital. Ousamos questionar aquilo que o ecrã digital pede ao homem (dados pessoais) e não aquilo que ele proporciona ao homem (o mundo em si). Daí que, nos reportamos levantar a seguinte questão: Que causa última se esconde por detrás da alienação do homem pelo ecrã digital? Diante dessa questão, defendemos a tese segundo a qual, o ecrã digital é um objecto de vigilância virtual e que por ser leve e liso é adorado e glorificado, logo, aliena o homem contemporâneo. Em apologia dessa tese, obramos argumentos que serão sustentados na lição da unificação planetária pelo ecrã digital à alienação do homem pelo ecrã digital, lição que será desenvolvida na noção ligada a competição de Likes e visualização nas redes sociais, que por sua vez, encontrará sua síntese na lição da vigilância virtual como o lado escondido do ecrã digital, lição essa que será retomada na noção que reflectirá a questão do poder do dedo. Portanto, como será fundamentado neste artigo, falar da sociedade contemporânea é dar referência a uma pequena aldeia onde a técnica e tecnologia estão no epicentro, e como já dissera Samora Machel o homem que não dominar a técnica e a tecnologia será por elas dominadoˮ. Assim, a tecnologia afigura-se numa ferramenta indeclinável neste mundo ou aldeia global onde estamos mergulhados.

2. A Sociedade Contemporânea globalizada pelo Ecrã Digital

Quando se analisa a sociedade contemporânea sob horizonte filosófico, torna-se impreterível recorrer aos filósofos frankfurtianos como Adorno, Marcuse e Habermas por um lado e franceses como Baudrillard, Lyotard e Lipovetsky por outro lado, pois, a ideia de que, a sociedade contemporânea por forças das ideologias do capitalismo quer Artista de Lipovetsky ou Parasitário de Bauman, transformou-se em sociedade unidimensional rumo ao consumismo, foi iniciada pelos filósofos da escola de Frankfurt e mais tarde foi retomada por Baudrillard e actualmente está sendo desenvolvida por Lipovetsky, quiçá por nós também.

Assim, as análises feitas por Lyotard lhe permitiram concluir que, a partir dos anos vinte do século XX, ocorreram transformações em quase todas esferas da vida. A partir daí, Lyotard compreendeu de que, estava-se em um período pós-moderno, porque havia uma ruptura total com as meta-narrativas que na modernidade sólida foram fundamentos da vida humana.

Lyotard usou a expressão Condição Pós-moderna, (que ficou como título de seu livro publicado em 1979), para descrever as transformações ocorridas na altura e não como um período histórico. Assim, em Lyotard (1979), percebemos que, a palavra pós-moderno foi usada no continente americano, por sociólogos e críticos que pretendiam descrever a cultura e as transformações que influenciaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do final do século XIX. Basicamente, os teóricos que cunharam a expressão pós-modernidade aspiravam mostrar que havia uma ruptura com modernidade. 

Ainda lendo Lyotard, entendemos que, nos anos de 1960 a 1970 registou-se o primeiro movimento de arquitectos anglo-americanos que usou a expressão para designar uma nova arquitectura que se desenvolvia na altura, embora reservasse os traços da modernidade.

Bauman citado em um artigo de fronteiras de pensamento, defendeu que a revolução pós-moderna aconteceu quando houve pela primeira vez, a confissão pública de assuntos até então privado. Ainda no mesmo artigo, lê-se: Alain Ehrenberrg escolheu uma tarde outonal da quarta-feira nos anos 1980, quando uma certa vivienne, uma mulher francesa comum declarou em um programa de entrevistas na televisão, diante de alguns milhões de espectadores que seu marido Michel sofria de ejaculação precoce, razão pela qual ela jamais havia experimentado um orgasmo durante toda a sua vida de casada.

O que há de revolucionário neste episódio insólito que esteve por detrás da passagem da sociedade moderna sólida à sociedade moderna líquida, é o facto de, pela primeira vez na história, algo etnologicamente privado, isto é, ejaculação precoce, ser comunicado diante de todos que assistiam a televisão naquele instante. Isso significa que, a esfera pública (onde os clássicos discutiam a saúda da polis grega) foi afeita para discutir e dar vazão a um conteúdo de veneração, afinco e sensação intimamente da esfera privada.

Assim, torna-se evidente que, a sociedade contemporânea resultante da sociedade capitalista avançada banalizou todos os conceitos que os clássicos concebiam como absolutos que comunicá-los publicamente não era aceitável. No entanto, o que torna a sociedade contemporânea de sociedade pós-moderna como demonstrado por Lyotard por um lado e, modernidade líquida como evidenciado por Bauman por outro lado, ou mesmo hiper-moderna como Lipovetsky prefere, é sem dúvida o esforço empreendido pela ideologia do capitalismo artista de convencer os indivíduos a confessar algo privado num espaço público o quefoi precipitado pela proliferação dos ecrãs desde o cinema ao digital.

Em Giddens (2005), há claras evidências de uma possível diferenciação do pós-modernismo com a pós-modernidade, porque segundo o teórico da modernidade reflexiva:

O pós-modernismo se é que significa alguma coisa, esse termo é mais indicado para se referir os estilos ou movimentos no âmbito da literatura, pintura, artes plástica e arquitectura. Ao passo que a pós-modernidade para além de significar um sentimento geral de se estar a viver numa época de disparidades expressas relativamente no passado, esse termo significa três coisas: 1ª. Significa que descobriu-se que nada se pode saber com qualquer certeza absoluta. Uma vez que todos os fundamentos preexistentes na epistemologia revelaram-se falíveis; 2ª. Que a história é destituída de teleologia, isto é, a história carece de um fim, e consequentemente nenhuma visão de progresso deve ser defendida plausivelmente e; 3ª. Que nasceu uma nova agenda social e política com crescente importância para as questões ecológicas, e novos movimentos sociais em geral, como: democracia líquida ou participativa e outros. (GIDDENS, 2005, p. 160).

Para CRUZ, (2015, p. 16), o conceito pós-moderno foi igualmente usado em outras áreas como as artes e a literatura como forma de mostrar a descrença com a modernidade.

Particularmente em filosofia, o termo foi usado para demonstrar o fracasso do projecto moderno. Um projecto que esgaravatava o progresso material e cultural da humanidade sem demandar fundamentos da época medieval. Com isso, percebemos que, se a modernidade sólida buscava emancipar a humanidade promovendo a liberdade, igualdade e fraternidade (ideal iluminista), a pós-modernidade em Lyotard, não passava de um núcleo de incredulidades em relação as metas narrativas. Meta narrativa aqui é a razão fomentadora do homem livre, igual e fraterno. Na sociedade contemporânea, o homem livre, igual e fraterno existe mas de forma individual, daí que, nesta sociedade, o homem é livre quando possui o capital (dinheiro) que é individual, é um homem igual somente perante a Constituição dos Estados mas desiguais socialmente e é fraterno para com o outro de modo individual, o que faz com que, a imagem do homem fraterno seja mais saliente em relação a acção fraterna em si. Dito de outro modo: a sociedade contemporânea não se preocupa com a vontade kantiana nem da consequência utilitarista, mas sim, com a imagem de quem executa a acção. Logo, a sociedade individualista, como fundamentado a seguir por Lipovetsky:

A partir de 1970 estava claro que se passavam novos tempos da modernidade e anuncia algumas dessas transformações, como a rápida expansão do consumo e da comunicação de massa, o enfraquecimento das normas autoritárias e disciplinares, o surto do individualismo, a consagração do hedonismo, perda da fé no futuro revolucionário, descontentamento com as paixões políticas e as militâncias. (LIPOVETSKY, 2004, p. 54).

Portanto, era inadiável conformar-se dando nome a toda essa conjuntura que se apresentava. Entretanto, ao mesmo tempo que se mostrava necessário dar uma nova designação às mudanças ocorridas, por um lado, por outro lado, era na visão de Lipovetsky de que, o que estava a acontecer não era necessariamente um novo modernismo mas, simplesmente uma superação do período antecedente, ou seja, a modernidade exacerbada isto é, hiper-modernidade. Diz ainda Lipovetsky:

O que devemos compreender é que a pós modernidade não é uma ruptura, mas como um parêntese, bastante agradável, na verdade, que perdurou dos anos 1960 aos anos 1980 e marcou a decadência dos grandes discursos tradicionais contra os quais a modernidade em parte se construiu, a fim de libertar o indivíduo de qualquer sujeição. (Idem, 2004, p. 55).

Compreende-se claramente a partir das fundamentações de Lipovetsky que, a pós-modernidade, transforma-se numa e perfaz um conjunto de transformações próprias, mas com referência a modernidade. É na mesma linha de pensamento de Lipovetsky que, autores como Giddens, Augé e Bauman empregaram os conceitos de modernidade reflexiva, super-modernidade e modernidade líquida respectivamente para qualificar as mudanças que decorriam. Igualmente Giddens, entende que:

A desorientação manifesta na sensação dos indivíduos em não encontrarem mais um conhecimento sistemático sobre a organização social resulta do facto de muitos deles terem sido encontrados de surpresa com eventos que pouco compreendiam e por isso, se apresentavam fora do seu controlo. (GIDDENS, 2005, p. 161).

Nota-se aqui que, a desorientação das sociedades é a prova da perda de controlo da ciência e da técnica que era até então o fundamento da modernidade. O homem moderno que se tinha engajado para ter o controlo da humanidade através da ciência e da técnica estava desprovido de seus instrumentos.

Portanto, apresentavam-se novas características que não eram mais da modernidade. Isto fica mais claro quando LIPOVETSKY (2004, p. 70) afirma que, na hiper-modernidade, a fé no progresso foi substituída não pela desesperança nem pelo niilismo, mas por uma confiança instável, oscilante, variável em função dos acontecimentos e das circunstâncias. Acrescenta Lipovetsky de que, o nosso tempo instaurou uma revolução permanente do quotidiano e do indivíduo com a privatização acelerada das identidades sociais, desgaste ideológico e político, desestabilização acelerada das personalidades. Daí que, vive-se uma segunda revolução do individualismo. No entanto, enquanto Lipovetsky, concebe a sociedade contemporânea com um certo optimismo, teóricos como Hayek, Friedman, Foucault e Byung-Chul, preferem associar a sociedade contemporânea à noção do Neoliberalismo, porque como escreve CASTIANO:

O Neoliberalismo caracteriza-se pelo surgimento dum novo espaço público onde o cidadão já não é mais aquele que emite o seu juízo e age publicamente no sentido clássico, se não cada vez mais um internauta que se limita apenas a uma liberdade de opinião vigiada e controlada. (2018, p. 2018).

Portanto, o novo espaço descrito por Castiano, é sem dúvida, o mercado (economia) com um modo de produção já não baseado na terra (feudalismo) senão baseado no dinheiro (capitalismo), que gere não somente o corpo (Foucault) como também a mente, por via das emoções aparentemente livres de coerções e coações (Byung-Chul) e esse novo espaço é basicamente a sociedade contemporânea. Assim, o pensamento de Castiano (2018) em relação ao Neoliberalismo parece retomar o entendimento começado por MBEMBE (2014), visto que este autor da Crítica da Razão Negra entende que:

O neoliberalismo é uma fase da história da Humanidade dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais. O neoliberalismo é a época ao longo da qual o tempo (curto) se presta a ser convertido em força reprodutiva da forma-dinheiro. O neoliberalismo baseia-se na visão segundo a qual todos os acontecimentos e todas as situações do mundo vivo (podem) de ter um valor no mercado. Este movimento caracteriza-se também pela produção da indiferença, a codificação paranóica da vida social em normas, categorias e números, assim como por diversas operações de abstracção que pretendem racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais. (MBEMBE, 2014, p. 11).

Portanto, a sociedade contemporânea, é essencialmente marcada pelo desaparecimento gradual do respeito da esfera privada, pela substituição do espaço público como a ágora da polis com o mercado como a nova instância reguladora da vida o que de grosso modo, acelera a livre circulação do capital artista. A partir da visão de Mbembe, percebemos que na sociedade contemporânea todos somos iguais, como diz Lipovetsky, com os mesmos problemas éticos planetários. Chegamos portanto, a este nível graças a globalização do ecrã digital.

2.1. Globalização

Num artigo publicado sob autoria de fronteiras do pensamento, Edgar Morin, entende que, a globalização é a hegemonia dos valores do Norte sobre o Sul global. É a continuação, por meios económicos, da colonização que era política. Insiste Morin que, o sul global deve reguardar o que conseguir como os modos de viver como resistência a hiper-força da técnica, do lucro, do sucesso e deve conservar a noção de poesia na vida, essa é a missão do sul global. Eis o seu diagnóstico. Mas então, como será possível o sul global fazer isso, quando a sua mente vive dia à pós dia cheia de ideologias do capitalismo artista de Lipovetsky rumo ao consumismo de Baudrillard? Que nos responda Edgar Morin.

Por globalização portanto, entendemos a utopia planetária com vista a tornar o mundo numa pequena aldeia, com o fim de controlar os seus habitantes.

Assim, aliado a este entendimento, MAZULA (2012), escreve:

A globalização diz-nos que, ao mesmo tempo que somos singulares como indivíduos e colectivamente soberanos como Nação, estamos “num mundo marcado por relações de interdependência” e “Moçambique faz parte desse mundo globalizado” com os seus defeitos e ameaças, a globalização está aí, atinge a toda gente onde quer que esteja, na cidade ou no campo, mesmo contra a vontade. A máquina globalizadora tende a reduzir os países pobres a objectos de acção, não lhes dando ouvido, inclusive, nos assuntos internos, negando-lhes, desta forma, a qualidade de sujeitos de acção. (MAZULA, 2012, p. 77).

Basicamente, a globalização (a utopia do capitalismo artista) aparece como via adequada para uniformizar a vida dos homens com os mesmos valores éticos instaurando-se portanto, o pensamento único como temia Herbert Marcuse. Assim, podemos dizer que, a globalização é uma ideologia com a clara intenção de eliminar as diferenças, tornando no entanto imperioso viver como todo o mundo vive. Portanto, como alertado por Mazula, ninguém foge da globalização, porque ela está aí feito um Daiser, isto é, um ser-aí de Heidegger. As armas da globalização são as novas tecnologias do ecrã digital. Eis, o porque da estantaniedade dos ecrãs digitais dos Smartkikas à Huawei, levando cada vez mais o indivíduo contemporâneo a produção com vista a reprodução do capital astucioso rumo ao consumismo personificado no mercado.

No entanto, embora a globalização seja inevitável como alertado em Mazula, vários teóricos conseguem encontrar no interior dela (globalização) uma ameaça rumo a extinção das culturas do sul global e isso ficou evidenciado pelo BANCO MUNDIAL (2003) ao fundamentar que:

Embora uns países em desenvolvimento tenham, como vantagem da globalização, entrado nos mercados mundiais, outros países vêm ficando cada vez à margem da economia mundial e sofrem com a renda em declínio e com o aumento da pobreza. (BANCO MUNDIAL, 2003, p. 55).

Fica evidente a partir da fundamentação do Banco de Mundial (embora o Banco Mundo seja uma das criações do capitalismo artista de Lipovetsky) em relação a noção da globalização, que, tornado o planeta terra numa pequena aldeia, não tardou a instauração dos Estados Unidos da América como o autentico dominador desta pequena aldeia globalizada, com o seu dólar a moeda imperativa da vida livre, embora os críticos neoliberais nos provem o contrário.

Portanto, MAZULA (2012), conclui dizendo que:

Esta globalização neoliberal caracteriza-se, por um lado, pelo individualismo exacerbado, corporativismos económicos e arrogância dos poderes económicos e financeiros internacionais que despoletaram a crise financeira mundial, agravaram a pobreza dos países pobres e, ao fim ao cabo, acabaram afectando os próprios autores e sistemas globalizadores, deixando-os atordoados. Ultimamente, estamos assistindo a luta não declarada entre o dólar e o euro, afectando drasticamente as economias débeis. (Idem, 2012, p. 78).

Se, a sociedade contemporânea como deduzimos é essencialmente globalizada, então fica convincente que, a globalização da sociedade contemporânea desencadeou-se mediante o processo dialéctico e que a progressivamente chegamos a dialéctica digital.

2.2. Dialéctica Digital

A dialéctica digital, é o entendimento que traduz a introdução no desdobramento da realidade mediante a lógica triádica, de elementos tecno-digitais, que vai desde o cinema como tese, televisão enquanto antítese e, o ecrã digital sendo a síntese. Assim, a semelhança da dialéctica hegeliana que concebe a síntese isto é, espírito absoluto, como um Bem em Si, Lipovetsky concebe o ecrã digital como um Bem em si, e se não o concebe assim, pelo menos não o encarou com um certo cepticismo, o que nos leva ao entendimento segundo o qual, a síntese (ecrã digital) da dialéctica digital de Lipovetsky transformou-se não só em um objecto de adoração que facilita a existência humana como também de pura vigilância que aliena homem.

2.3. Ecrã Digital

Por ecrã digital ou mesmo global como prefere LIPOVETSKY (2010, p. 155), entendemos todo e qualquer dispositivo electrónico cujo funcionamento respeita a impressão digitalˮ. E, neste artigo, por questão de foco, nos limitamos a analisar apenas dois ecrãs digitais, a saber: os Smartphones e os ATM. A respeito dos ATM, NGOENHA (2017, p. 104), escreve: os parceiros em Moçambique, já abriram ATM em quase todos os distritos, não para favorecerem o trabalho, a produção, a agricultura, a economia, mas por temerem que se lhes escapem as quinhentas dos pobresˮ.

Assim, se por um lado, Nietzsche em Assim falava Zaratustra, profetiza que chegaria o tempo em que todos gritarão: tudo é falso!ˮ, por outro lado, analisando os espíritos hegelianos na sociedade contemporânea, fica claro que, a profecia nietzscheana, tornou-se em uma realidade, pois, como nos fez crer GIDDENS (2005), descobriu-se na sociedade contemporânea que, todos os fundamentos preexistentes na epistemologia moderna revelaram-se falíveis e que, nada pode ser sabido com qualquer certeza absolutaˮ, porque o capitalismo sendo artista, renovou-se em direcção ao neoliberalismo, explorando já não o corpo como em Foucault, senão a mente como diagnosticado por Byung Han. Portanto, o espaço de actuação do homem contemporâneo não é mais o público no sentido clássico, senão o mercado, daí que, deposita-se hiper-confiança (confiança exagerada) no ecrã digital por ser liso (Byung Han), líquido (Zygmunt Bauman) e leve (Lipovetsky), se escondendo nessa estética líquida do ecrã digital a astúcia do capitalismo que sendo artista renova os ecrãs digitais desde Smartkikas quer da Vodacom ou quer da Movitel, passando pelos Samsung e desaguando nos Huawei. Daí, não será sem fundamento a nossa máxima: numa sociedade contemporânea onde a mente está ecranizada, quem tem um só Huawei é reiˮ.

Portanto, devido a genialidade do capitalismo astucioso, por um lado parasita esfomeado como o definia Bauman, por outro lado, artista como o chama Lipovetsky, homem contemporâneo concebe o ecrã digital como parte essencial da sua existência e isso, acelera a alienação do homem pelo ecrã digital, porque como veremos, quando um objecto criado (ecrã digital) tem mais valor do que o criador (homem), o criador não tem mais valor do que o criado (ecrã digital).

3. A Alienação do Homem pelo Ecrã Digital

A sociedade contemporânea, das várias que a humanidade gerou, é única privilegiada por um lado, por ser a mãe da revolução tecnológica (a efectivação da utopia do capitalismo artista de Lipovetsky) com a idealização do computador em 1945 por Von Neuman, por outro lado, assistiu o aparecimento do primeiro ecrã (ecrã esse que na sua síntese viria a se tornar a essência da existência do homem contemporâneo). Assim, a sociedade contemporânea sobrevive de cruzar dados que o big data fornece diariamente. Como teoriza CASTIANO (2018, p: 176), é a idade do registo totalˮ. E nós acrescentaríamos, é a idade do poder do dedo. Trata-se na verdade da segunda revolução que por meio do dataísmo, o homem contemporâneo é arrastado para uma ideologia totalitária digital, facto que precipita a instauração desta vez não somente do niilismo (esvaziamento moral) como pensara Nietzsche, como também do pan-digitalismo, pois, na sociedade contemporânea, em nome da ideologia da minimização de abate de árvores, tende-se a transformar tudo em digital, desde a vida à mente.

O conceito alienação, foi cunhado na Filosofia por Feurbach, como resposta à questão da origem da religião. Assim, a alienação, Feurbach a teria concebido como a dependência de um ser criador (o homem) a uma realidade externa (Deus). Ou seja, o homem cria um Deus e depois sente-se inferior diante Dele. O mesmo entendimento perseguido por Marx, Nietzsche e Freud em relação a religião. No entanto, a alienação aqui defendida, é em relação a dependência do homem (criador) a um objecto criado por ele (o ecrã digital).

Assim, de acordo com CRUZ (2015, p. 41), a ideia do progresso científico como forma de emancipar a humanidade foi um pensamento dominante no século XIX e XX. Por isso, os pensadores modernos depositavam muitas expectativas na ciência e na sua capacidade de tornar a vida do homem melhorˮ. LIPOVESTKY (2011, p. 45), acrescenta que, diferentes autores afirmam que a Internet constitui um perigo para os laços sociais, uma vez que, no ciberespaço, os indivíduos se comunicam permanentemente, mas se encontram cada vez menosˮ, facto que conduz o homem a um isolamento rumo as ilhas habitadas pelas monadas de Liebniz.

Vários são os apologistas da Internet, claro, porque estão ao serviço do capitalismo artista. Se a Internet é ou não necessária, não nos importa. O que nos importa aqui é que ela (Internet) não é suficiente. Os apologistas se esquecendo que a Internet é mais uma das criações do capitalismo astucioso, não chegam de compreender de que, para o acesso da Internet em particular nos países ditos da epistemologia do sul, é necessário ter megabytes e mesmo que disponibilizem a Internet grátis (na versão de facebook Lite, por exemplo), a questão toma outra roupagem: a da vigilância. Assim, a semelhança do demiurgo platónico (que liga o mundo sensível do mundo inteligível, que purifica a alma e a dá passaporte para o encontro com Sumo Bem), o ecrã digital é um aparelho electrónico que liga o homem do mundo actual do mundo virtual, claro, desde que tenha megabytes. É nesse contexto que  CRUZ (2015), defende que:

Assim como, nas relações sociais o indivíduo desenvolve laços virtuais com o outro, na era digital, os indivíduos levam uma vida abstracta e digitalizada em vez de partilhar experiências juntos, na participação política, o indivíduo tem tampouco, a necessidade de pertencer as comunidades e frequentar organizações para cessar as informações e compartilhar opiniões (…) A orientação do indivíduo na hiper-modernidade é individual, recebida de maneira fragmentada oriunda de diferentes fontes através dos diferentes meios de comunicação, com a utilização de diversas tecnologias de redes sociais, e em uma visão mais de curto prazo. (CRUZ, 2015, pp. 42-43).

 

Ou seja, estamos todos naquela cidade descrita por Echevearria: cidade sem longe nem perto, circula-se a velocidade de luz, movimento coincide com repouso, ruas são canais de fibra óptica, montras e pontos de encontros são sites e página Web, ágora (praça pública) são fóruns de debate virtual onde cada um pode estar sem estar e forjar várias identidadesˮ. Igualmente defendeu Dominique Wolton, citado por KARNAL (2018, p. 27), que, “podemos passar horas, dias na internet e sermos incapazes de ter uma verdadeira relação humana com que quer que seja”. De facto, vivemos naquela cidade cujos cidadãos dependem do ecrã digital para aquisição de conhecimento, onde o conhecimento se confunde com informações.  

Semelhante a isso, Castiano, chama a sociedade contemporânea de A facebook Societyˮ, e a respeito dos Smartphones, o teórico sustenta a convicção segundo a qual:

O Facebook, WattsApp, o Instagram e outras redes sociais, transformaram a nossa sociedade de tal sorte que tudo se pode expor, melhor se deve expor livremente. Hoje é possível, deslocarmo-nos para todos lugares estando sentados num lugar, por via digital. Podemos encontrar-nos virtualmente seja com pessoas nos Estados Unidos, seja com amigos e parentes que estejam na Ásia. (CASTIANO, 2018, p. 164).

Assim, o filósofo questiona uma dada realidade quando esta não parece tão óbvia. Porém, o ecrã digital é digno de questionamento porque esconde a noção da vigilância virtual. Portanto, o facto de o ecrã digital ser liso, líquido e leve, faz com que o interesse do homem contemporâneo seja colocar (desprovido de reflexão) dados no Facebook, no WattsApp, na Internet, mas não se interessa saber quem vai ler, onde vai ser lido e a que hora vai ser lido. E isso nos preocupa, porque fornecer dados pessoais a um desconhecido é dar poder (no sentido Weber). Diante do ecrã digital somos todos camelos nietzscheanos que se submetem por vontade da ideologia da indústria cultural a um sistema de vigilância virtual. Ou seja, quem vai ler, onde, quando será lido e porque submetemos os nossos dados pessoais ao ecrã digital? Eis a questão! Assim, devido a astúcia do capitalismo artista, o homem contemporâneo quer estar a actualizado sempre, não quer perder tudo o que acontece nas redes sociais, daí sente-se obrigado a estar sempre presente em dois mundos ao mesmo tempo, (o que era impossível para Newton). Isso, faz o homem viver no mundo virtual feito um caçador de Likes e visualizações nas redes sociais, noção que desenvolveremos na lição que se segue.

3.1. Por uma Competição de Likes e Visualizações nas Redes Sociais

A genialidade do capitalismo artista de Lipovetsky baseia-se no facto de que, conseguiu quebrar todas as fronteiras efectivando assim, a livre circulação do capital, não só, como também, o capitalismo parasitário de Bauman conseguiu converter a sociedade contemporânea em simples palco de espectáculos entendimento iniciado por Guy Debord em A sociedade do espectáculo. Portanto, KARNAL, começa a descrever a situação virtual da sociedade contemporânea de seguinte modo:

Estou sozinho em casa. Pego no meu Smartphone depois de uma hora sem tê-lo visto. Uma hora inteira sem acessar o Smartphone? Pura fantasia. Os ícones demonstram que tenho muitas mensagens. São de todos os tipos e de todos os apps do celular. A caixa de e-mail está lotada, a maioria é de propaganda. O WattsApp está inundado por mensagens de grupos familiares, de amigos, de trabalho. Muita bobagem, santo dia, bons dias e boas noites e meio a mensagens afectivas e que requerem real atenção. Em pouco tempo, vários mundos, afectivo, anónimo e comercial, estabeleceram pontes comigo. Muitas imagens, produtos exóticos: tudo veio a mim. (KARNAL, 2018, p. 23).

Assim, a partir de Karnal, fica claro de que, o ecrã digital constitui a essência do homo digitalle, pois, não é fácil para não dizermos impossível ficar um minuto sem o ecrã digital, visto que, o salário, os amigos, sexo, a religião, em fim, tudo está no ecrã digital e tudo isso vêm a nossa habitação por via on-line com um simples clique no ecrã digital. Daí que, com auxílio de KARNAL (2018, pp. 24-25), entendemos que, o imperativo absoluto do Século XXI seja: ‟seja feliz. Se não for, pelo menos, pareça nas fotos das redes sociaisˮ. Isso encontra o seu sustento racional em CASTIANO (2018, p. 165), ao afirmar que ‟há uma competição de likes e visualizações, menos nos interessa quem está a ver, para que é que serve e como é que vai ser usadoˮ. Relativo a isso Castiano se questiona: ‟o que é um chip senão um concentrado de dados pessoaisˮ?

Continua CASTIANO:

O Smartphone é um objecto digital de devoção, não de pura necessidade. Essa devoção transforma-se num objecto de dominação. A dominação aumenta a sua eficácia ao delegar a própria vigilância a cada um que possui o Smartphone. Todos nós temos no bolso um ou dois ou mesmo três instrumentos da nossa própria vigilância e trazemos todos os dias por vontade própria, nos bolsos ou carteiras. (CASTIANO, 2018, p. 166).

Mas, se o ecrã digital (Smartphone) é um objecto de adoração e de pura vigilância, então, o Like digital teria um significado existencial? Eis questão! Para satisfazê-la, vamos partir da crença de que, o Like digital é a essência da Era Facebook como observado por Lipovetsky. Ora, se por essência, os gregos clássicos concebiam aquilo que faz com que o Ser seja o que realmente ele é, então, a essência da Facebook Society é o Like. Por isso, não é por acaso que quando publicamos seja o que for nas redes sociais, esperamos dos internautas apenas um Like, porque o Like é o ámen, o aleluia, o hossana, o credo e acima de tudo o dizimo digital. Porém, o que não percebemos nisso é que, quando clicamos Like no post de alguém, (por exemplo, na Página Oficial do Sapo: Esse Espírito Apanham Onde? ou quer seja, na Página Oficial do Sapo Morri Mortalmente) submetemo-nos a uma estrutura virtual de dominação, e de pura vigilância virtual, porque, o facebook irá notificar à nossa submissão ao Sapo Morri Mortalmente logo que acessar a sua página oficial. Portanto, o ecrã digital é não só um aparelho de vigilância eficaz, mas também, um confessionário móvel, porque permite-nos confessar nossos pecados e esperar os Likes (absolvição e a penitência) dos outros internautas virtuais e isso gera paradoxo, visto que, quando os seus internautas não clicam Like (não cantam Hossana nas Alturas), ou seja, não comentam na página, nasce um certo ressentimento que vai se reflectir no mundo actual. Uma questão apenas: quantas vezes não nos sentimos inúteis nas redes sociais (no facebook, no WattsApp e no Instagram), quando os nossos internautas não clicam Like, não comentam, não adoram os meus posts? Ou ainda, quantas vezes não nos perguntamos por que as páginas oficiais dos Sapos nas redes sociais são as mais adoradas, comentadas e até visualizadas, que a página da Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Universidade Rovuma, Extensão de Niassa? Estas questões reflectem a angústia colhida do mundo virtual e que é vivida na vida actual.

É disso que Byung Han, se refere quando sentencia o neoliberalismo, (isto é, a renovação do capitalismo astucioso) pois segundo o autor, o neoliberalismo, encontrou um terreno fértil de exploração que já não é o corpo como pensava Foucault, senão a mente, porque o capitalismo astucioso conseguiu transformar o indivíduo contemporâneo em simples servo dotempo que está sempre a matar o tempo pelo trabalho, tornando-se num homem genérico activo que segundo Nietzsche, não tem uma função superior, pois não tem tempo para a contemplação.

Por isso, o facebook, como escreve Han citado por CASTIANO (2018, pp. 166-167), ‟é a igreja, a sinagoga, a congregação digital de hojeˮ. E acrescentamos: o facebook é a igreja, o seu Deus é o ecrã digital e os seus anjos e arcanjos são megabytes. Ainda continuamos na dialéctica digital lipovetskyiana, claro com nova tese (ecrã digital), antítese (Megabyte) e síntese (facebook). Trata-se portanto, de uma síntese (facebook) que aliena o homem para vigia-lo, não para puni-lo como em Foucault, mas para aliciar a sua mente rumo ao consumismo de Baudrillard. Contudo, se o cinema (tese) e a televisão (antítese) como sustenta WOONDROM (1996, p. 33), ‟tinham a função primária de mostrar a realidade em directoˮ, o ecrã digital, mostra a realidade já passada, por meio de fotos publicados. Logo, a ‟Era do poder do Dedoˮ, concepção essa iniciada por Karnal, ao entender como sustentamos na lição que se segue, que, o século XXI é a invisibilidade dos quatro sentidos (visão, paladar, olfacto, audição) e é ascensão do tacto.

3.2. A Vigilância Virtual: o Lado Escondido do Ecrã Digital

Muitos são os debates que reflectem a sociedade contemporânea. E vários são seus teóricos. Embora haja teóricos diferentes, todos estão unânimes de que, a Internet é o ponto de partida para as suas fundamentações. Assim, vários teóricos da sociedade contemporânea são notabilizados pela sua genialidade de defender não só o capitalismo astucioso genial, como também as criações do capitalismo artista, (aquilo que deram o nome de Internet e suas criações menores), aquilo que chamamos de ecrã digital. Defende-se a Internet porque ela permite a aquisição de informações, pois, como diz LIPOVETSKY (2010) "tudo vem a nossa habitação por via on-line por um simples cliqueˮ. A Internet, permite viajar para Amesterdão (cidade natal de Baruch Espinosa) sem nunca ter se deslocado do Niassa (terra natal de Brazão Mazula). No entanto, o que nos preocupa não é a genialidade do ecrã digital, senão o que está por detrás dessa genialidade. Ou seja, o que nos preocupa não é aquilo que o ecrã digital nos proporciona (mundo melhor, informações em primeira mão, pornografia no dont break me, ou no XVídeos, Bibliotecas virtuais, e mais), senão, aquilo que o ecrã digital nos pede quando pela primeira vez apertamos o Power do ecrã digital.

O ecrã digital nos pede dados pessoais (desde o Nome Completo claro, verdadeiros, Nacionalidade, Naturalidade, Data de Nascimento, até a formação académica). A questão fica: porque o ecrã digital nos pede nossos dados pessoais? Não precisamos de ser apóstolo João (autor do livro de Apocalipse) para profetizar a resposta desta questão.

A resposta é óbvia. O ecrã digital pede nossos dados porque o capitalismo astucioso quer nos manter sob sua vigilância, ou seja, quer controlar seus habitantes e isso se explicou na lição anterior quando sustentava-se a noção da utopia da unificação planetária. A vigilância virtual consiste no controlo virtual por meio do ecrã digital e isso acontece porque o ecrã digital é liso, leve, líquido e amável (passível a adoração e glorificação), visto que não impera, mas dialoga com o seu dono.

O ecrã digital é democrático visto que não obriga a ninguém que submeta seus dados pessoais, mas em nome de uma vida moderna, o homem contemporâneo e sem coação submete por vontade própria os seus dados ao sistema de vigilância virtual.

Portanto, a vigilância virtual é o lado escondido (o não explorado) do ecrã digital, porque devido a astúcia do capitalismo não conseguimos nos dar atenção, antes de fornecermos dados pessoais a um desconhecido, (que é o meu grande irmão, o big brother) o que nos leva a ceder poder sem saber. Isso foi observado também por CASTIANO (2018, p. 166), ao suspirar de seguinte maneira: "Todos nós temos no bolso um ou dois ou mesmo três instrumentos da nossa própria vigilância e trazemos todos os dias por vontade própria, nos bolsos ou carteiras".

De facto, o suspiro de Castiano traduz também a inquietação que nos conduziu até neste nível e que também moveu Byung Han (2015) a ponto de eternizar as suas ideias em: A sociedade de cansaço, inquietação essa, retomada por Lipovetsky em: Da leveza: rumo a uma civilização sem peso, onde a partir deste entende-se que, o luxo contemporâneo já não é o pesado como acontecia com o segundo protótipo do ecrã, (a televisão), senão o leve, neste caso o ecrã digital.

Por isso, ao CASTIANO (2018), questionaríamos: como não trazermos um, ou dois ou mesmo três ecrãs digitais da nossa própria vigilância por vontade própria, se esses ecrãs digitais são leves, (não pesam) e acima de tudo são lisos como os rostos repletos nas fotos das redes sociais?. Se para LIPOVETSKY (2015, p. 9) ‟o capitalismo não goza da melhor das imagens e é o mínimo que se pode dizerˮ, então, será o ecrã digital a gozar da melhor das imagens? Que nos responda Lipovetsky.

"Cuidado! Alguém está observando você através do seu Smartphone! Disse o historiador brasileiro Leandro Karnal". Mas que alguém é esse? Não se sabe ao certo e o mínimo que se pode dizer! Mas, Byung Han na boca de CASTIANO (2018), responderia: é o big brother.

Sim, aquele a quem nós confiamos os nossos dados pessoais para nos vigiar, aquele que vê ao meu encontro por via on-line (aliás, os últimos dados fornecidos ao fronteiras de pensamento no Brasil por Pierre Lévy numa entrevista em 2019, indicam que a cerca de 60%da população mundial está conectada).

Se for verdade, significa que, o big brother (o grande olho de Geoges Orwell) está vigiando a maior parte da sociedade contemporânea, e isso foi como lamenta HAN, (2014, p: 59), graças a renovação do capitalismo astucioso para neoliberalismo, daí que, deixou-se de explorar o corpo, a vida como pensava Foucault e passou-se a explorar as emoções coagindo-as internamente, ou seja, o poder deixou de ser disciplinador como em Foucault e passou a ser o gestor de emoções internas, por isso, CASTIANO, (2018, p: 191), parafraseando Han conclui que, o século XXI, vive a governação Psicopoíltica, cuja base são dados, a nova arte de governar.

Ou seja, para governar na sociedade contemporânea globalizada pelo ecrã digital não precisas de ir ao povo para saber o que ele precisa e nem quem é opositor. De facto, actualmente não precisas perseguir os anti-cidadãos. Basta apenas publicar algo nas redes sociais, as moscas virão, os opositores discordarão, os camaradas darão Likes e os cépticos irão pular portanto graças a um simples clique por meio do dedo.

Portanto, por ser leve, liso e líquido o ecrã digital leva o homem a alienação, isto é dependência, pois, o ecrã digital na versão do Smartphone por um lado, condiciona a mente do homem contemporânea reduzindo-a a um nível pré-lógico e, por outro lado, na versão dos ATM, constitui o autêntico guardião do capital artista, de tal modo que, pelo facto de o ecrã digital ser sensível a manipulação do dedo, acaba-se depositando uma hiper-confiança, facto que acelera a insociabilidade do homem pelo ecrã digital.

3.2.1. O Poder do Dedo nas Redes Sociais

Como defende KARNAL, (2018, p. 27-29), “O mundo virtual é mais controlável, do que o físico presencial”. Logo, a dinâmica mudou. Assim, o dedo assume três poderes na gestão do mundo virtual que fundamentamos na lição que se segue.

3.2.2. Primeiro poder: Autonomia do Internauta

A autonomia do internauta é maior na casa virtual do que de alguém que recebe uma visita física em casa. Assim, o internauta precisa negociar menos na internet, está livre de manter a sua vontade mais activa e soberana. Sem o esforço de burilar minha paciência, meu Eu soberano pode flanar vitorioso nos circuitos da rede. Meu dedo é demiurgo e, a um simples clique, redefine meu círculo de amigos. Com o dedo, curto, descurto, interrompo, bloqueio, deleto: tudo faz parte de uma nova dinâmica. Claro que aliena o homem ao ecrã digital.

3.2.3. Segundo poder: Omnipresença

Tendo o poder libertador do dedo, assumo a fantasia sem limites e, por fim, posso insultar, gritar, espernear sem medo: não existe risco físico. A internet possibilita a inimputabilidade em grau maior do que o que pregado por Hans Jonas. Mesmo que o internauta possa usar roupas, maquiagem, disfarces e cortinas de fumaça no encontro real, sempre estará lá, no encontro virtual, por meio de fotos publicados nas redes, por meio do ecrã digital, feito um caçador de Likes e visualizações. No virtual, pode-se assumir uma fantasia completa, mudar de género, criar perfil falso e redefinir-se de acordo com meus desejos e medos. Este posicionamento confirma a situação actual vivida recente mente pelo reverendo Pároco de Mitande (Mandimba), Padre Hermelindo Lázaro na sua página oficial do Facebook. Partilhou no facebook o seminarista Isaías Gustavo, que alguém de má fé, criou uma página no Facebook passando-se de padre Hermelindo Lázaro. E o seminarista pedia a todos os internautas virtuais do reverendo Pároco Padre Hermelindo Lazaro, que não aceitem qualquer solicitação de amizades ou promessas de empregos provindos do Padre Hermelindo Lazaro, porque não é o actual Padre Hermelindo que está a manipular aquela página do facebook. Conseguimos deduzir o que o reverendo Padre está vivendo? Uma angústia de Sartre acompanhada de uma grande depressão. Por isso, a este nível, certo está Byung Han, ao salientar que, a grande doença do século XXI não é a religião que queimou milhões de pensadores, nem é a politica que precipitou a morte de Sócrates mas sim, a ansiedade (excesso do passado), estresse (excesso do presente) e depressão (excesso do futuro).

Portanto, KARNAL, infere que,

Há controlo absoluto das relações pelos dedos. Não se precisa negociar. Não prolongo a existência de chat. Não preciso suportar ninguém. Desagradou? Clico e pronto. Agrediu? Bloqueio e pronto. Não desejo dar a resposta pedida? Ignoro. O celular é nossa praia protegida por senha. A genialidade do aparelho e a base do seu sucesso compõem esse mecanismo: regulo quem me faz companhia, administro meu silêncio e posso reger quais imagens, quero criar para tornar real meu roteiro imaginetico para o público. Tudo está reunido em um único aparelho. (KARNAL, 2018, p. 28).

Contudo, a partir de Karnal, fica claro que, na sociedade contemporânea tudo faz-se por intermédio do dedo. Com um simples clique no ecrã digital, vem a melhor musica lançada em Chicago, recente obra de Lipovetsky lançada pelo fronteiras de pensamento, o melhor filme pornográfico lançado ainda hoje quer no dont break me ou no Xvideos, enfim, por meio do dedo vem ao nosso encontro o mundo sem fim. Por isso, na sociedade contemporânea, alfabeto não é aquele que não sabe ler e escrever mas sim, que não tem o dedo indicador.

 

4. Conclusão

Concluímos que, não existe uma receita que nos mostra a causa última escondida por detrás da alienação do homem pelo ecrã digital. Mas a análise feita neste estudo, indica que o facto de o ecrã digital ser liso (como uma Ninfa do rio Tejo), leve (não pesa como acontece com o televisor) e líquido (pois é sensível a manipulação, ou seja, não resiste a queda), o homem deixa-se alienar pelo ecrã digital. O poder inteligente exercido por meio do ecrã digital através do dedo, não exerce aparentemente, não violenta os seus internautas, nem os repreende. Somente os seduz. Não impera, influencia as vontades, desta vez não de Rousseau, mas da "Mão Invisível" de Adam Smith.

O ecrã digital é afirmativo e democrático (tem uma voz feminina, aquela que nos diz: bem-vindos ao Millenium BIM), gera emoções positivas, não enfrenta o sujeito, mas gera facilidades ao sujeito. Seduz, em vez de obrigar. Não impõe silêncio, exige que partilhemos fotos, textos, participemos nos debates virtuais, confessemos os nossos pecados e permite que esperemos que os nossos internautas cliquem, dê Like e comente, em fim dê absolvição e a penitência. Portanto, o ecrã digital aliena sorrindo. Por detrás dessas particularidades da genialidade do ecrã digital, se escondem a alienação do homem pelo ecrã digital por um lado e, a vigilância virtual por outro lado.

É disso que CASTIANO (2018, p. 176), se refere quando defende que, "eu gosto de ser vigiado e submeto os meus comentários, sentimentos, amizades voluntariamente numa estrutura virtual de poder de ao big brother". O ecrã digital precipitou o surgimento de uma sociedade contemporânea hiper-activa, onde o repouso coincide com estar ligado nas redes sociais. Mas para que estejamos ligados nas redes sociais, é o nosso dever acumularmos o capital para por conseguinte compramos um ecrã digital (smartphone) e isso não basta. Adquirido ecrã digital, devemos comprar megabytes, aí podemos estar ligados nas redes sociais.

Como podemos ver, tudo faz parte uma lógica do capitalismo artista: produção para a reprodução do capital. Desde os primórdios da existência humana, o homem reflectiu a sua existência sem auxílio de um objecto como ecrã digital. Mas mesmo sem este objecto, o homem sempre pensou a sua existência e as Universidades de hoje são a prova real desse homem que pensava a sua existência com a sua própria cabeça. E hoje, diante do ecrã digital somos todos camelos nietzscheanos que se submetem numa estrutura de pura vigilância virtual, desprovidos de qualquer juízo de valor.

De tanto dependermos (alienação) do ecrã digital (Smartphones ligados a Internet e ATM com o sistema bancário não oscilante), nós os indivíduos nascidos nos meados da década noventa do século XX e nos princípios do século XXI, pensamos que a vida digital é natural, pois faz parte da criação da providência divina. Eis, o poder da ideologia da indústria cultural denunciada por Adorno, visto que, ela tem a capacidade de nos fazer pensar que sem o ecrã digital (Smartphones e ATM) a vida não faz mais sentido.

Somo todos produtos da ideologia digital. Tempos chegarão em que a questão ligada ao sentido da existência humana não fará sentido e em substituição se questionará: a vida sem ecrã digital (Smartphones e ATM) vale a pena ser vivida?

O capitalismo artista parasitário com suas artimanhas nos faz pensar que, não precisámos viver a vida com um núcleo duro de valores sólidos (pesados) senão uma vida líquida com uma civilização da leveza rumo a uma sociedade sem rumo, o que nos faz conceber o ecrã digital como parte essencial da nossa existência.

Portanto, a genialidade do capitalismo artista parasitário constitui a causa última escondida por detrás da alienação do homem contemporâneo pelo ecrã digital por simples razão: o capitalismo artista parasitário na sua lógica produção e reprodução do capital procurou a todo custo unificar o planeta terra em uma pequena aldeia por meio do ecrã digital, porque isso permitiria a livre circulação do capital na sociedade contemporânea e como ganho o indivíduo contemporâneo viveria toda a vida alienado ao ecrã digital visto que, o salário, sexo, emprego, bibliotecas enfim, o mundo cabe não só na palma da mão como também no bolso do indivíduo contemporâneo rumo ao consumismo de Baudrillard.

Portanto, se nos questionassem sobre a solução a que poderíamos propor, com vista a superação da crise libertária, diríamos que, a crise libertária temporal seria superada se a vida activa (a vida de ecrãs digitais e dados ligados), cedesse lugar a vida contemplativa, aquela que levaria o homem contemporâneo a sentir o aroma do tempo. O tempo tem um aroma e somente sabe disso, aquele duvida a genialidade do ecrã digital.

Talvez a sociedade contemporânea precisasse de indivíduos que não concebam o ecrã digital como uma parte essencial da sua existência, porém essa não é uma tarefa colectiva senão individual, daí a necessidade de idiotas de Castiano.

 

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