O filme iraniano “A Separação”, Irã, 2011, foi o vencedor do Urso de Ouro do Festival de Berlim e ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro na última cerimônia da Academia de Artes e Ciências Cinematográficasem Los Angeles, nos Estados Unidos.

Até o momento lemos muitos comentários sobre o filme. Alguns críticos abordaram o tema sob ótica do quadro político do país, aspectos religiosos e superstições. Outros, simplificaram e destacaram o desentendimento do casal, doença na família, falta de dinheiro e o papel do filho numa relação conturbada dos pais. Mas, num ângulo mais profundo, o filme faz uma bela tentativa de expor o estado das almas, o que por si não é uma tarefa simples, nem de fácil compreensão. Nós nos separamos tanto de nossas próprias almas que conseguimos nos tornar incapazes de enxergar laços afetivos existentes entre elas. Daí vem a dificuldade de perceber os recados suaves e delicados de cada cena deste filme que com muita propriedade e amabilidade tenta levantar para o mundo o grito de socorro da alma humana, um grito que no meio das correrias da vida é difícil de escutar.

A maioria dos críticos desconfia da possibilidade de alguém possa produzir um filme com objetivos mais elevados do que temas costumeiros. Nos dias de hoje assistimos a tantos filmes sem assunto para comentar (embora dispendiosos) que os críticos ficam obrigados a escrever sobre o custo da produção, efeitos especiais e sonoros, ou coisas parecidas. De fato, são raros os filmes que sejam direcionados para assuntos verdadeiros, como os anseios da alma humana e suas necessidades afetivas. A Separação fala de uma série de conceitos e princípios que em conjunto sustentam a vida e a felicidade duradoura de qualquer família, em qualquer lugar do mundo.

Este grandioso filme não tem nacionalidade, embora fale a língua Farsi e que as mulheres vistam trajes do regime iraniano. O contexto e a essência do enredo mostram o quanto são simples e óbvias as necessidades legítimas do ser humano, e como ficamos cegos sem enxergar ao nosso redor. Por exemplo, a médica Simin (Leila Hatami) na busca de uma falsa e fantasiosa vida, está disposta a tirar o direito legitimo da sua filha que deseja viver na sombra do amor e união dos pais. Os laços familiares por milhares de anos foram a base de sustentação e proteção dos homens, e  agora estão sob ameaças. Na sua ausência, nada restará para a sociedade.

O conceito de vínculo familiar está se desaparecendo e Asghar Farhadi, o diretor, tenta expor as situações em que facilmente abrimos mão dele a favor de uma zona de conforto provisório. Então, o bancário Nader (Peyman Moadi), representa uma pessoa que preferiu cuidar do pai em casa do que abandona-lo. De outro lado, a figura do pai doente, impossibilitado de falar e agir, foi a personagem que conseguiu personificar a alma, aquele ser esquecido dentro da casca de um corpo doente. Ele representou uma alma, carente, com suas fragilidades e fraquezas. Este mesmo, o personagem não muito importante do filme, mostrou o espelho da vida de qualquer ser humano, nos dias da sua velhice, que na falta do amor dos filhos pode se tornar algo descartável. O diretor tenta mostrar de forma inteligente que há uma conexão entre a situação do pai desamparado de Nader e a filha desamparada do Nader. E mostra que o desejo dele de cuidar do pai era uma das suas necessidades espirituais, tanto quanto a necessidade de a filha querer estar na sombra de cuidado dos pais. Quando ele, como filho, não queria abandonar o pai, estava mostrando um dos princípios mais originais que sustenta a fundação da família e da saciedade: a solidariedade. É uma situação que milhares das famílias enfrentam, porém escolhem a casa dos velhos para que possam continuar na zona de conforto. Um conforto, que logo pode ser perturbado com um outro problema parecido.

Termeh, a menina representada pela Sarina Farhadi mostrou muito bem para o mundo quais as necessidades de uma adolescente. Ela, antes de tudo almejava ter os pais juntos, o que é direito de todas as crianças. Ainda, o diretor, nas entrelinhas das cenas deixa o seu delicado recado, quando a menina indaga a honestidade do pai e deixa clara a sua necessidade de confiar nas atitudes dele. No mundo de hoje os pais oferecem muitas coisas para seus filhos, mas não exatamente o que eles precisam: uma criança, adolescente ou jovem vive e respira no “campo de força” gerado pelo amor dos pais e no “campo energético” gerada pelos valores como a honestidade e a veracidade.  Na ausência destes campos eles se sentem indefesos e tornam-se vulneráveis.

Ainda fora deste ambiente de energia do amor e união, e na tentativa de resolver os problemas, o casal depara-se com uma avalanche de outras dificuldades, cujas soluções ficam cada vez mais complicadas, como uma maquina fora da sua engrenagem. Os desentendimentos, erros e falhas do marido acontecem justamente por que ele estava fora do seu campo integrador. Nader, no desespero, contrata uma empregada, Razieh, no anseio de cuidar do pai. A empregada, por sua vez, no anseio de ajudar seu marido, aceita o emprego em que não estava treinada para tal. Tudo isso gera situações complicadas, mas com um desfecho surpreendente. A empregada, na incerteza de que seu aborto fosse motivado pela agressão de Nader, quando lhe oferecem um valor para o ressarcimento do dano sofrido, não aceita. A consciência fala mais alto que a necessidade. Ela, com conceitos sublimes, sentia que um dinheiro injusto não traria bem-estar para a sua família, embora o precisasse tanto.

A dignidade da empregada doméstica, representada pela Sareh Bayat, é para trazer à tona o fato de quanto nós seres humanos fomos e somos nobres, e como por tão pouco, resolvemos abrir mão de toda essa grandeza. Pois, a Razieh, uma trabalhadora da camada social desfavorecida, mostra que a honra está na alma humana, e precisa ser protegida das tentações indevidas. Não se deve confundir a grandeza desta cena, com uma interpretação limitada, só por que ela utiliza “chador” (o véu). Ao contrário, ela com dignidade enfrenta a pressão do marido desempregado e não se inclina diante da situação.

Uma das cenas mais belas do filme é a relação entre o juiz e o casal, onde se mostra que esta relação não precisa estar cheia de vocabulários estranhos, regras secas e audiências marcadas de ano para ano. O juiz, na resposta à indagação de Simin “o que devo fazer agora?”, responde “a senhora deve voltar para sua casa e cuidar da sua família”.

Nos últimos anos os estúdios cinematográficos produziram centenas de longa-metragens em que o ator principal faz papel de um charmoso e simpático matador de aluguel, que a produção e o diretor engrandecem a “profissão” e fazem questão de mostrar o quanto o ofício é rentável e quanto desafiante a missão de assassinar. Somente nas próximas décadas poderemos averiguar os desastrosos resultados deste tipo de produção. Talvez, aumentaria tanto o numero de matadores de aluguel que o preço cairia ao valor de um almoço no McDonald’s. O fato é que estamos caminhando para uma sociedade sem lei, e isso começa a acontecer quando gradualmente rompemos os laços afetivos fixados pela condição humana. Por isso que em cada detalhe do filme o diretor insere cenas que induzem à necessidade de um conceito mais elevado e nobre.

O povo do Irã traz consigo uma herança rica na sua cultura milenar persa; é um povo que por natureza prega a cortesia, a afetividade, a hospitalidade, e a clareza sobre suas obrigações familiares. Foi por isso que o elenco soube representar tão magnificamente este cenário. Eles não precisavam fazer o “papel”; atuavam naturalmente, por que sabiam como agir em cada situação. No momento em que no mundo da arte de cinema estão cada vez mais presentes cenas patrocinadas pelos fabricantes de armas, máfias de drogas e comercio de sexo, ele, Asghar Farhadi, tomou a frente e brindou o mundo com um filme sem patrocínio, a favor da alma humana, promovendo o real alimento que sustenta a vida, seja material ou espiritual, buscando isso nos laços afetivos.

O filme foi feito no Irã, mas conta a história da nossa alma que não tem nacionalidade, mas tem dignidade, em qualquer lugar. A cena final do filme fica para ponderação e reflexão de cada pessoa. A decisão da filha sobre a guarda fica suspensa. O Asghar Farhadi convida todos para decidir em lugar da menina. Esta é uma reflexão sobre o laço mais importante na vida de um casal e sua filha, e por tabela, sobre o modelo de relações sociais digno da condição humana.

A Separação é um alerta do perigo de separação dos homens da sua essência digna e nobre. Parabéns, para os anseios deste filme, parabéns para Asghar Farhadi e para o elenco.

Felora Daliri Sherafat

Instituto de Desenvolvimento da Nobreza Humana
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