A saga do bebê abandonado na Lagoa da Pampulha: mitologia e cotidiano

Rozelia Scheifler Rasia
Mestre em Letras - Estudos Literários ? UPF; Especialista em Fundamentos Teórico-Metodológicos de Ensino ?UNICRUZ / UFSM; Pesquisadora de arqueologia religiosa.

As narrativas míticas dos primórdios culturais, não raramente, espelham-se em acontecimentos atuais através de gestos que se repetem desde a ontologia original; como registram livros de mitologia, história e literatura, onde os mitos se renovam e se revestem de atualidade em sagas protagonizadas tanto na ficção, como na realidade.
Veiculada ao vivo em todo mundo pela tecnologia da comunicação, a bravura da menina que gritou até ser resgatada da água possibilita a intertextualidade com a ancestral crença pré-cristã de desafiar o destino ao submeter-se um indesejado recém-nascido à sorte, ou ao capricho dos deuses que decidiriam o mérito sobre a vida ou a morte.
No Brasil, o abandono atinge milhares de crianças e adolescentes que são vítimas da escalada de projetos políticos que privilegiam a economia e desconsideram a inserção social e a promoção de alternativas de desenvolvimento coletivo e sustentável.
As palavras de Barthes: na sociedade burguesa, "o mito é uma fala despolitizada", alertam para a manipulação das informações e das expectativas de transformações sócio-culturais pelas estruturas de poder que privilegiam o imediatismo e a individualidade e desconsideram aspectos fundacionais e coletivos dos mitos e dos arquétipos. Nesta ótica, limitam-se as possibilidades de interpretação do atual e do primordial que sobrevive nas narrativas cotidianas.
Sem questionar temas sociais e jurídicos interligados à cruel exposição de um bebê a risco de morte, nem a exploração desta saga angustiante como produto midiático para conquistar audiência, abordam-se relatos semelhantes que ultrapassam milênios, como realidade ou lenda em diferentes períodos civilizatórios.
Na Grécia, apresentam-se poemas com a história de Perseu e sua mãe, Dânae, transcritos por Simônides, Hesíodo, Píndaro, Ovídio e outros autores contemporâneos, os quais contam que para evitar uma profecia de que seria assassinado pelo neto, Acrísio, rei de Argos, encerrou a única filha e o bebê que ela tivera com Zeus, em uma arca e os jogou ao mar. Ambos foram levados à Ilha de Sérifo, onde viveram até retomarem ao trono de Argos.
Durante a era do bronze, como relatam textos épicos da Mesopotâmia, uma sacerdotisa colocou seu filho, Sargão, recém-nascido, em um cesto de papiro no rio Eufrates; ele foi encontrado por um jardineiro em 3.000 a.C. e criado pela deusa Ishtar.
Séculos mais tarde, Moisés foi colocado por sua mãe nas águas do Nilo, para salvá-lo do decreto do faraó que determinara a morte de todos os meninos filhos de israelitas no século XII a.C. Ele foi criado pela irmã do faraó, na casa real, onde aprendeu ciências, direito e literatura.
Por suas realizações, estes personagens perfilam-se como mitos que se atualizam e se presentificam em atitudes reais e ficcionais que inspiram narrativas jornalísticas e literárias que contam o destino imutável destes personagens.
Perseu, com a orientação de Hermes e proteção de Palas Atenas, decapitou a Medusa que petrificava quem a olhasse. Ao passar pela Etiópia, casou-se com Andrômeda, após salvá-la do sacrifício em que seria ofertada a uma serpente marinha que devorava centenas de vítimas. No retorno à terra natal, acidentalmente, em uma competição de atletismo arremessou o disco e atingiu Acrísio. Assim, confirmou-se a profecia.
Sargão uniu os povos da Mesopotâmia, incentivou o progresso das técnicas de produção agrícola e tornou-se um imperador justo e progressista. Moisés retirou os hebreus escravizados do Egito e os conduziu por quarenta anos pelo deserto até à liberdade na terra prometida por Javé. A ele são atribuídos os cinco primeiros livros da Bíblia Sagrada que regem a crença cristã e a judaica.
Cancone (1990) destaca que as narrativas míticas, embora inegavelmente contenham a fundação de um povo ou o comportamento cultural de heróis civilizadores, não são fechadas, enquanto vivas, são (re)atualizadas por novos mitos, por novos elementos incorporados pela sociedade que as (re)cria como sustentação, âncora e identidade, não apenas em relatos orais ou escritos, mas também através do corpo que age ou reage.
A água que acolheu Moisés, Perseu e a menina da Pampulha, é a mesma a correr nos rios, nos mares e na seiva das plantas; no ventre e na lágrima; no sangue dos homens e dos animais; no pão, no mel e na ambrosia; na nuvem, no gelo e na chuva, a se transformar eternamente em símbolo de vida, de morte e de renovação em um ciclo contínuo que se não se prende a tempo ou a espaços.
A água é um dos elementos que representam o princípio da vida biológica, como referenciam a ciência, a mitologia e a religião de diversos povos. Como exemplo, citam-se palavras de Eliade (1977) sobre os mitos cosmogônicos entre os polinésios, os quais dizem que no princípio só existiam as águas primordiais mergulhadas nas trevas cósmicas. [...] Da imensidão do espaço, Io, o deus supremo, exprimiu o desejo de sair do repouso e apareceu a luz. Logo ele ordenou que as águas se separassem e que se formassem o céu e a Terra.
Na saga da menina retirada da Lagoa da Pampulha, destaca-se o mítico nome ?Iara?, a deusa das águas, que a mãe escolhera para a filha. Após o resgate, a mídia noticiou que ela foi encaminhada para a adoção e recebeu outro nome e outro destino.
O cenário escolhido pela mãe para abandonar a filha, é um grande espelho de água, onde deve ter observado seu rosto refletido à luz do sol tropical. Como Narciso, em seu enamoramento por si, pensou somente nela, ignorou o choro e os gritos da pequena e, segundo relatos de testemunhas oculares, correu com os sapatos na mão, que não eram de cristal como os de Cinderela.
Em oposição à idéia de descartabilidade, representada pelo saco de lixo, emergiram a persistência e a generosidade de uma pessoa - que ao tentar resgatar um ser, que parecia um gato - salvou um bebê. Com este gesto, acenou com a esperança de um mundo melhor e sem saber, evitou que surgisse outra Medeia, entre tantas infanticidas que protagonizam a maldade e a solidão.
A pequena garota abandonada na lagoa da Pampulha desconhece mitologia, psicologia ou sociologia, mas soube vencer os riscos do nascimento prematuro, da rejeição, do abandono e da morte iminente, ao potencializar as alternativas de sobrevivência e contrariar as chances de fracasso diante da adversidade.
As ações realizadas pela mãe-algoz, a luta do bebê pela vida, o desprendimento do herói que o resgatou, o sensacionalismo da mídia e a curiosidade dos espectadores revelam a co-existência de diversidades e semelhanças no destino dos homens e dos mitos que se (re)atualizam cotidianamente com novos símbolos e significados contemporâneos.

Bibliografia Referenciada
BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 1989
CANCONE, Maria Helena Villas Boas. In Mito ontem e hoje. SCHÜLER, Donald e GOETTEMS, Miriam Barcelos (org.), Porto Alegre: UFRGS, 1990.
COOPER, Jerrold S.. The curse of Agade, John Hopkins University Press, USA: 1983.
ELIADE, Mircea. Tratado de história das religiões. Lisboa, Portugal: Cosmos, 1977.

Artigo publicado na Revista Universidades Lectoras ? Universidad de Extremadura ? Espanha ? 2007.