Resumo: O Natal da tradição cristã colide em cheio contra o Natal da sociedade de consumo. O texto pericia a colisão e tece comentários a respeito.  

A roleta continua a girar

O cidadão Quem nasceu dois ou três dias antes do Natal, ou mesmo uma semana, não importa. Nascido,  Quem encontrou pronto, próspero, encorpado,  funcionando a todo  vapor, o pacote cultural das festas natalinas. 

O tempo passa, Quem cresce e se dá conta de que a atitude natalina decorre de um mito.  Um mito primoroso, no   sentido mais nobre e mais digno que a palavra possa ter, qual seja o sentido psicopompo, que atribui ao mito o poder de conduzir da dimensão cósmica até o plano material o pensamento modelador do que de fato aconteceu no mais remoto estágio da civilização.

Um Menino veio ao mundo para resgatar a humanidade e devolvê-la sã e salva ao cuidado do Criador.

Antes de enveredar em busca de conhecer melhor a cultura natalina, Quem entendeu preferível  recolher da cena primordial as qualidades essenciais que a caracterizam. Então ele viu que em sua origem o Natal, o verdadeiro Natal, deu-se a conhecer sob o signo da solidariedade, da quietude, da frugalidade, do silêncio.

Para conhecer melhor e mais de perto a atitude natalina Quem não precisou ir muito longe. Na noite de Natal próxima passada  ele e a esposa aceitaram um  convite para cear na casa praiana de uma família amiga. Família comum, gente comum, hábitos urbanos, poder aquisitivo um pouco acima do nível mediano.

Na estrada pode ver a intensa movimentação dos automóveis, a ação dos bafômetros, o trabalho preventivo da polícia contra excessos  de velocidade. Achou aquilo incongruente. Bebida alcólica no Natal? – foi o registro que fez em seu caderno de apontamentos.

Às vinte e duas  horas o casal convidado apresentou-se ao casal anfitrião, que esperava recepcionar naquela noite trinta pessoas, inclusive moças e rapazes solteiros.

A mesa já estava posta. Mesa farta: peru, chester, pernil, salada, arroz branco, guloseima, alguma fruta, ponche, uísque, vinho, cerveja, refrigerante, bolo, compota, pudim. 

Janelas abertas, palestra animada, alarido incipiente, som convidativo, silhuetas elegantes, um casal decidiu dançar, muita cor, perfume, brilho, possibilidades.   

Quem, esquecido de sua pesquisa, tomou algumas doses, aderiu à dança, aproximou-se dos anfitriões, elogiou o bom gosto do encontro, e se disse privilegiado por estar ali.

Não. Não vamos absolutamente censurar o moço. Se as delícias da noite de Natal o distraíram, vá ver que foi melhor assim. Se ele tivesse mantido o ânimo da pesquisa,  teria verificado que o encontro natalino daquela noite  se estruturava  em bases diametralmente opostas à do verdadeiro Natal: lá, solidariedade, frugalidade, quietude, silêncio. Cá, indiferença, abundância, agitação, alarido.

Se ele tivesse prosseguido talvez não soubesse trabalhar o conflito. Talvez radicalizasse a favor da tradição, talvez sucumbisse à banalidade de criticar quem se diverte à tripa forra na noite de Natal.  

Enfim, talvez não percebesse que a verdade só pode ser alcançada pela compreensão dos opostos - o Natal da tradição e o Natal consumista.  Da compreensão e unicamente dela  surgirá a atitude sintetizadora do conflito.

Três possibilidades despontam no horizonte: 1) a tradição engole o consumismo; 2)  o consumismo engole a tradição; 3) ninguém engole ninguém, entre mortos e feridos salvam-se todos, no melhor estilo do jeitinho brasileiro.

A roleta continua girando. Senhores, façam suas apostas.