A relativização da impenhorabilidade do bem de família à luz de princípios que garantam a efetividade da jurisdição e o melhor interesse do credor.

 

adriana Pereira Bosaipo Guimarães[1]

Diego Leonardo Andrade de Oliveira/Gabriela Silva Macedo[2]

 

Sumário: 1. Introdução. 2.  Impenhorabilidade. 2.1 A impenhorabilidade do bem de família. 3. Penhora à Luz de Princípios. 4. A relativização da impenhorabilidade. Conclusão. Referências.

Resumo: Diante da existência das regras de impenhorabilidade, dispostas pelo processo de execução, por muitas vezes o credor acaba sendo prejudicado, na busca pela satisfação do seu interesse. Assim, apesar dessas regras, existem princípios aplicáveis à problemática, que devem ser observados pelos magistrados, de modo que possa garantir, através de vedações de normas legais prejudiciais ao credor, o seu interesse no processo de execução.

Palavras-chave: Execução. Credor. Impenhorabilidade. Penhora. Relativização.

1. INTRODUÇÃO

Este artigo tem por intuito realizar uma analise crítica, acerca dos bens impenhoráveis, existentes no processo de execução, tendo como finalidade demonstrar a existência de princípios que tutelam o interesse do credor e que é possível relativizar as vedações legais presentes no Código de Processo Civil, de modo a resguardar os direitos e garantias que o credor possui no processo de execução.

A penhora é um ato judicial que, através dela, o Estado retira do devedor bens que possuem o valor necessário para a satisfação do interesse do credor. Porém, a norma de direito processual estabelece algumas restrições acerca da penhora, o que acaba por obstar a satisfação do interesse do credor. Assim, surgem críticas ao CPC sobre essa proteção dada ao devedor.

Com a existência de normas que estabelecem a impenhorabilidade de alguns bens, faz-se necessária a relativização desses bens impenhoráveis, à luz de princípios que garantam o direito do exequente, observando, é claro, a dignidade da pessoa humana do devedor e do seu patrimônio mínimo.

As mudanças que o processo de execução sofreu no Brasil, teve como um de seus objetivos uma maior celeridade e, por consequência, atingir com mais eficácia a satisfação do exequente. Porém, a discussão se volta para os liames de proteção do credor na Lei de penhora; tendo em vista que, para alguns, a impenhorabilidade protege apenas os interesses do executado.

Este artigo analisará com afinco os bens de família, tendo em vista que a Lei, 8.009/90, também tem sido criticada, bem como as vedações previstas pelo art. 649 do CPC.

  2. IMPENHORABILIDADE

A penhora é a primeira das fases de expropriação de bem, seguida da alienação e do pagamento ao credor. A expropriação tem por objetivo retirar do patrimônio do devedor bens para dirimir a obrigação da execução.

Misael Montenegro Filho leciona:

A penhora é instituto que pertence ao direito processual, tendo por objetivo efetuar a apreensão de bens do patrimônio do devedor e/ou do responsável, com vista a permitir a posterior satisfação do credor, considerando que a execução por quantia certa contra devedor solvente é marcada pelo fato de ser expropriatória (art. 646 do CPC), atuando o Estado de forma substitutiva, mediante atos de sujeição impostos ao devedor, coma autorização para que o seu patrimônio seja invadido mesmo contra a sua vontade[3]

O artigo 759, caput, do CPC, dispõe que a penhora recairá em todos os bem que forem necessários para o pagamento da obrigação atualizada, com juros, custas e honorários advocatícios. Vale ressaltar, que esta penhora não pode ultrapassar o valor da obrigação, ou seja, não pode exceder, a ponto de produzir efeitos além do devido e nem inferior, a ponto de não produzir efeito algum sobre a obrigação.

Diante disto, a regra geral é que a penhora incide em todos os bens do patrimônio do executado, porém o art.591, caput, do CPC estabelece alguns limites e restrições à penhora: “o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições previstas em lei.”

 Esses bens impenhoráveis encontram-se de forma taxativa, ou seja, bens que não poderão sujeitar-se a penhora. A impenhorabilidade pode ser relativa ou absoluta; a relativa diz respeito a bens que devem respeitar alguns critérios para que se submetam ao regime de penhora. Assim, por serem especialmente resguardados, a penhora só será autorizada quando outros bens ou valores não configurarem no patrimônio do devedor.[4] Conforme Araken de Assis[5], essa característica de impenhorabilidade, deve está ligada à  “exigência de humanidade”; este pensamento se coaduna com o de José Frederico Marques[6], que entende que a solidariedade humana e a assistência social não depende do ato de executório.

O art. 650 do CPC, reformado pela Lei nº 11.382/2006, esclarece: “Podem ser penhorados, à falta de outros bens, os frutos e rendimentos dos bens inalienáveis, salvo se destinados à prestação alimentícia”

 A Lei 11.382 de 06/12/2006, alterou a regra em questão eliminando do rol da impenhorabilidade relativa as imagens e objetos do culto religioso, e dando outra redação à disciplina dos frutos e rendimentos dos bens inalienáveis. Havia, ainda, no texto oriundo do Congresso, que se transformou na Lei 11.382/2006, a instituição de parágrafo único para o art. 650, para limitar a impenhorabilidade do bem de família. Incidiu sobre ele, no entanto, veto presidencial. O texto anterior do art. 650 era de inteligência ambígua, pois não revelava bem se eram os frutos ou os créditos que haveriam de se referir a alimentos de pessoas carentes. [7]

É, portanto, relativamente impenhorável, aquele bem em que a penhora só será permitida quando não existirem, no patrimônio do executado, bens que possam prover as necessidades do exequente.

A Lei também estabelece o rol taxativo dos bens que são considerados absolutamente impenhoráveis, ou seja, são aqueles bem em que, de forma alguma, poderão incidir penhora, conforme estabelece o art. 649 do CPC.   

2.1 A impenhorabilidade do bem de família

 

Com o intuito de proteger o bem de família, e fundado no princípio da dignidade da família, fora promulgada em 1990, a Lei 8.009, que tutelava os bens que estavam sob poder familiar, ou seja, o patrimônio da família, não podendo Estado se valer do uso da penhora, para executar forçadamente esses bens. Mas para tal efeito, é necessário que este imóvel seja de residência única da família, ou seja, única moradia da entidade familiar.

Podemos perceber que a impenhorabilidade do bem de família encontra-se fortemente estabelecido no art. 5º da Lei 8.009/90, porém, exclui em seus artigos 1º e  2º,  as obras de arte, veículos e adereços  luxuosos. O art. 3º da mesma lei, afastar a absoluta impenhorabilidade do bem de família.

O art. 4º também limita a impenhorabilidade desses bens:

Art. 4º Não se beneficiará do disposto nesta lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.

§ 1º Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.

§ 2º Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural.

     Vale ressaltar que o STJ reconhece através da súmula 364, que a impenhorabilidade se estende ao imóvel que pertencem a pessoas solteiras, viúvas e separadas.                                                                                                                                                              

Em se tratando dos bens de família, Alexandre Freitas Câmara leciona:

“A impenhorabilidade a que se refere a lei 8.009/90, ou seja, a impenhorabilidade do bem de residência, inclui não apenas o imóvel utilizado para moradia, mas também os móveis que o guarnecem, excluindo-se apenas os veículos, obras de arte e os adornos suntuosos(art. 1º, parágrafo único, c/c art. 2º da Lei 8.009/90). Não se pode, porém, pensar que este dispositivo é capaz de excluir da responsabilidade patrimonial todos os bens móveis que se encontrarem na residência do devedor. Isto porque, como se sabe, a regra é a penhorabilidade dos bens, e a impenhorabilidade exceção. Desta forma, deve-se interpretar restritivamente as normas que estabelecem a penhorabilidade de bens. Assim é que, a nosso sentir, deve-se considerar como adorno suntuoso todo e qualquer bem que não possa ser considerado indispensável à sobrevivência digna do devedor e de sua família. É preciso que este dispositivo seja à luz do que dispõe o art. 649, II do CPC, que afirma a absoluta impenhorabilidade dos móveis que integrarem o padrão médio de vida da população (como televisão, geladeira ou fogão), mas não os aparelhos que ultrapassem essa média(como é o caso de equipamentos eletrônicos de última geração). A idéia fundamental por trás dessa regra é a de que apenas o essencial à sobrevivência deve ser considerado impenhorável.[8]

Este entendimento nos leva ao raciocínio de que a impenhorabilidade de bens de família, deve estar ligado à dignidade da família e de sua subsistência, devendo ser objeto de penhora os bens que se encontram no imóvel único da família, e que são considerados como adornos suntuosos para satisfazer a obrigação para com o credor.  

3. PENHORA À LUZ DE PRINCÍPIOS

Princípios jurídicos são normas jurídicas fundamentais de um sistema jurídico, dotadas de intensa carga valorativa e, por isso mesmo, superiores a todas as outras, que se espraiam, explícita ou implicitamente, por todo o sistema, dando-lhe fundamento e uma ordenação lógica, coerente e harmoniosa.

Em razão de sua força normativa e da elevada carga axiológica, os princípios determinam o conteúdo das demais normas e condicionam a compreensão e aplicação destas à efetivação dos valores que eles consagram.[9]

Existem alguns princípios no processo de execução, que incidem não só sobre a penhora, como também no direito e que, aplicáveis de modo concomitante com a lei, podem alcançar a justiça do processo de execução. 

O princípio da menor onerosidade deve ser proposto segundo os interesses do credor, contudo deve estar em harmonia com os meios executórios, para que se efetive o princípio da equidade e da ponderação e, portanto, resguardar o interesse do credor. Este princípio se coaduna com a garantia do melhor interesse do credor, que por sua vez, deve ser efetivada durante todo o processo de execução, afinal, o credor é aquela figura que espera que sua pretensão seja satisfeita.

A garantia dos interesses do credor fora estabelecida pelo próprio legislador, através do artigo 612 do CPC: “Ressalvado o caso de insolvência do devedor, em que tem lugar o concurso universal (art. 751, III), realiza-se a execução no interesse do credor, que adquire, pela penhora, o direito de preferência sobre os bens penhorados”.

O princípio da efetividade do processo significa dizer que, o processo deve fornecer ao credor aquilo que ele teria direito, ou seja, o que o devedor deve a ele.[10]

O exato adimplemento, nos dá a conclusão de que a execução deverá dar ao credor, o mesmo resultado que teria, se o devedor tivesse cumprido a obrigação, este princípio esta atrelado ao princípio da efetividade, onde a execução atinge o patrimônio do executado e extrai o que for necessário para satisfazer a obrigação.

 O art. 659, em concomitância com o art. 692 do CPC, assegura que os bens do executado será alvo de expropriação, porém somente o suficiente para satisfazer o exequente.

A partir do entendimento exposto acima, é possível perceber que a impenhorabilidade deve ser relativizada, embora já tem se admitindo do uma maior flexibilidade do processo, de modo que o magistrado possa aplicar os princípios e, assim, garantir o direito do credor de ter sua satisfação garantida.

Como exemplo, podemos citar uma hipótese em que o executado só possua um bem de família e, apesar de ser considerado um imóvel de luxo, assim como os demais bens de família, tem seu imóvel assegurado pela Lei 8.009/90.  Porém, em casos como este, o magistrado deve relativizar o dispositivo legal e à luz dos princípios do direito, determinando a expropriação deste bem, resguardando ao executado, um valor suficiente para a aquisição de outro bem que lhe garantirá o direito à digna moradia.

4. A RELATIVIZAÇÃO DA IMPENHORABILIDADE

As críticas que giram em torno da impenhorabilidade de bens, esta relacionado ao privilégio que é dado ao devedor, que se choca com o a garantia do melhor interesse, que é destinada ao credor. Por isso, propõe-se a relativização da impenhorabilidade.

Não há como negar que por muitas vezes a impenhorabilidade é usada como “arapuca”, para que os chamados “ maus pagadores” possam bloquear seus bens. Assim, a legislação acaba por permitir que devedores que possuam um grande patrimônio, venha se valer deste benefício da vedação à penhora, mantendo-se em uma situação vantajosa.

Além do privilégio que a legislação oportuniza ao devedor, através das vedações à penhora, é possível notar em outras ocasiões a proteção do legislador, como através da garantia de integridade do devedor, o que fica evidente que o legislador não visa proteger apenas o credor, como também o devedor.

Fica claro que, o magistrado pode realizar a penhora de um bem, considerado impenhorável, isto porque o Estado-Juiz poderá transcender o interesse do credor, sem que com isto, afete os direitos fundamentais do devedor.

Desse modo, os atos executórios devem ser realizados de uma forma mais ponderada, para que não haja um privilégio do devedor, apenas por imposições meramente formais, de limitações à penhora.

CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho, tivemos a intenção de demonstrar a impenhorabilidade, prevista no Código de Processo Civil, à luz de alguns princípios correlatos à penhora e as garantias do processo de execução. Pudemos perceber que o magistrado pode transcender a letra da Lei, para estabelecer penhora de bens impenhoráveis, para então, garantir  a efetivação da execução, ou seja a satisfação do exequente, sem que com isso gere dano à dignidade do executado. Desse modo, busca-se uma melhor adequação dos fatos com as normas sociais, para que se possa adequar a impenhorabilidade ao caso concreto individual, mas sempre garantindo a real finalidade da execução, a de fazer valer o melhor interesse do exequente sem prejuízo aos direitos do executado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Referências

 

ASSIS, Araken. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 9, São Paulo: RT, 2000.

CÂMARA, Alexandre Freitas.  Lições de Direito Processual Civil. 16.ed. vol.2. Rio de Janeiro. 2008.

DIDIER JR., Frédie. CUNHA, Leonardo José Carneiro da. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de direito processual civil: execução. vol. 5. Salvador: Editora JusPodivm, 2009.

MARINORI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sergio Cruz. Curso de Processo Civil. Execução2 ed, São Paulo: Editora RT, 2008.

MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, vol. V, Campinas: Millennium, 2001.

MONTENEGRO FILHO, Misael. Teoria Geral dos Recursos, Recursos em espécie e Processo de Execução. São Paulo: Atlas Editora. Vol.2. 2007.

 

SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva – v. 2. – São Paulo: Saraiva, 2008.

THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de Execução e Cumprimento de Sentença, Processo cautelar e Tutela de Urgência. Vol.2. 2007.

 

 



 


[1] Aluna da Cadeira Especial de Execução

[2] Professores da Cadeira Especial de Execução.

[3]MONTENEGRO FILHO, Misael. Teoria Geral dos Recursos, Recursos em espécie e Processo de Execução. São Paulo: Atlas Editora. Vol.2. 2007. p. 402

[4]MARINORI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sergio Cruz. Curso de Processo Civil. Execução2 ed, São Paulo: Editora RT, 2008. p. 256.

[5]ASSIS, Araken. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 9, São Paulo: RT, 2000, p. 75.

[6]MARQUES, José Frederico. Instituições de direito processual civil, vol. V, Campinas: Millennium, 2001, p. 172.

[7]THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de Execução e Cumprimento de  Sentença, Processo cautelar e Tutela de Urgência. Vol.2. 2007, p. 313.

[8]THEODORO JUNIOR, Humberto. Processo de Execução e Cumprimento de Sentença, Processo cautelar e Tutela de Urgência. Vol.2. 2008,  p. 280.

[9] JÚNIOR, Dirley da Cunha. Curso de direito administrativo. 4 ed, Salvador: Edições Juspodivm, 2006. p. 12.

[10]SCARPINELLA BUENO, Cássio. Curso sistematizado de direito processual civil: tutela jurisdicional executiva . Vol.2. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 1.