A RELAÇÃO DO TELEVISIONADO-SUSPEITO COM A MANUTENÇÃO DOS PRIVILÉGIOS NA SOCIDADE BRASILEIRA

Lia Alves Martins[1]

“Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa – não é um homem”.

Fernando Sabino em Notícia de Jornal.

  1. A “divulgação” de crimes na televisão      

No Brasil, é costume de boa parte da sociedade assistir aos programas policiais e tomar como suas as opiniões deles, que têm como tema principal a crescente violência no país. Esse assunto é abordado, mostrando-se a imagem de suspeitos de diversos delitos cotidianos, a maioria deles crimes contra o patrimônio e contra a vida.

O problema central é que, ao se mostrar os suspeitos, os programas policiais já os tratam como culpados, dando-lhes um tratamento todo “diferenciado”. Tratam-lhes como se fossem seres que estão abaixo da condição de humano, ridicularizando-os, esfregando a sua imagem na tela para toda a sociedade saber quem são e o que “certamente” fizeram, e instigando essa mesma sociedade a tratá-los como um “nada-social”, ou, se for para tratá-los como alguma coisa, tratá-los como os motivos do retrocesso social, como as causas de parte dos males da sociedade, e, fundamentalmente, a tratá-los como uma questão de polícia e não como um problema social que envolve todos os cidadãos.

Ressalta-se o seguinte trecho do livro Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca – Ceará):

o que fica patente é que o homem perde o caráter de humano, seja em pensamentos mais elaborados ou em avaliações pouco consistentes; enquanto isso, ganha uma variedade de adjetivações que endossa essa desumanização. Na oralidade de repórteres e apresentadores, há a reprodução de um discurso policial que divide claramente dois grupos: os “bandidos”, “marginais”, “vagabundos”, “safados”, “elementos”, “indivíduos”, “meliantes”, “menores”, “malas” se contrapõem aos “cidadãos, “homem de bem”, “pais de família”, “trabalhadores.[2]

Assim, os discursos desses programas se fundamentam essencialmente no confronto entre aqueles que eles consideram “cidadãos” e aqueles que consideram “bandidos” ou “não cidadãos”[3]. Os primeiros seriam a parte da sociedade que não se envolve com nenhum tipo de infração penal, considerados inocentes e de caráter íntegro[4], e os últimos, os que praticam todo tipo de delito, sendo-lhes retirada a condição de humano[5]. É comum, ainda, as vítimas dos delitos serem postas em espécies de “pedestais” acima de tudo, como “supra-cidadãos”, de maneira a colocar os “deliquentes” ainda mais à margem da sociedade.[6] Loic Wacquant ilustra bem essa situação, nos seguintes termos:

concepção hierárquica e paternalista de cidadania, fundada na oposição cultural entre feras e doutores, os “selvagens” e os “cultos”, que tende a assimilar marginais, trabalhadores e criminosos, de modo que a manutenção da ordem social e da ordem pública se confundem.[7]

Os suspeitos são, então, postos como tipos de pessoas que cometem crimes pelo fato de esses tipos de comportamento serem de sua natureza. Ou seja, essas pessoas praticam delitos porque querem fazê-lo, porque são preguiçosos, porque “está no sangue”[8] e não buscam trabalho, porque para eles é mais fácil furtar, roubar ou praticar qualquer outro delito do que viver honestamente.

Destarte, durante a exibição dos programas, o tratamento dual “cidadão-bandido” ganha nitidez a partir do ponto de vista com que eles tratam a lei. Para o cidadão a lei é um amparo, para o bandido, punição[9]. Ou seja, a lei deve ser usada como ferramenta de proteção para aqueles que vivem socialmente adequados, os cidadãos, e como ferramenta de punição para aqueles que subtraem todo tipo de coisa desses cidadãos. A lei é, dessa forma, encarada como instrumento do que eles acreditam ser a “justiça social”, devendo ser cumprida como escudo dos cidadãos, a fim de se enquadrar os deliquentes e puni-los severamente.

A abordagem dos “direitos” ganha, portanto, essa mesma tonalidade dual. Ao passo que o “cidadão de bem” deve ter seu direito à vida, direito à propriedade privada, direito à segurança, enfim, deve ter todos os seus direitos fundamentais preservados, os “bandidos” têm esses mesmos direitos negados e até mesmos violados, como forma de punição, uma vez que eles têm mais é que “pagar pelos danos que causaram” com sofrimento e penar, quase como na velha lei de talião.

A violação dos direitos fundamentais do suspeito torna-se, assim, o aspecto mais alarmente desses programas. Princípios constitucionais como o inciso X do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 que diz: “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrentes de sua violação”, e como o inciso V do também art. 5º que prescreve: “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem” são absurdamente desconsiderados em plena mídia televisionada, ignorando completamente o bom senso e a postura humanista.[10]

Dessa forma, eles não veem problema nenhum em violar o direito à imagem, sendo esse o direito mais gravemente transgredido. A própria Polícia contribui para isso, ajudando a mídia na apresentação do suspeito, imputando-lhes o respectivo delito. As câmeras filmam de forma a “escancarar” completamente as feições do suspeito, tornando as suas condições ainda mais degradantes.

Mesmo que seja inocente, o indivíduo já é considerado culpado, no momento que tem a sua imagem e os fatos que lhe são imputados transmitidos a todos, transgredindo outros direitos fundamentais resguardados pela Constituição Federal, como no inciso LVII do art. 5º que diz: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Ou seja, a sociedade cria, a partir das imagens e do tratamento dispensado ao suspeito, o rótulo de que aquele indivíduo é criminoso e que deve ser punido. Então, mesmo que seja considerado inocente por sentença judicial, a sociedade já o considerava culpado antes mesmo do processo, fatos que dificultam a reinserção social tanto do ex-presidiário como daquele que nem foi condenado.

E o que dizer das situações nas quais o “bandido” morre pela reação da “vítima” que age em legítima defesa? Esses programas dão graças a Deus que o cidadão sobreviveu e ainda conseguiu livrar a sociedade desse mal. O fato de ele ser considerado “bandido” justifica a sua morte e faz com que ela seja aceita naturalmente, sem nem mesmo aliviar a condição de indivíduo à margem da sociedade. A sua vida vale menos. “Morreu porque merecia morrer e foi até melhor para a sociedade”, demonstrando como a sociedade trata o televisionado-suspeito: discriminando-o, afastando-se dele por medo e desprezando-o.   

Após toda a exibição quase circense dos suspeitos nos programas policiais, os apresentadores, com os seus argumentos tidos como absolutos, chamam a população para pedir para as autoridades por segurança pública, porque acreditam e disseminam a ideia de que só com reforço de policiais e, consequentemente, com a adoção de sistemas repressores e intolerantes o cidadão de bem poderá viver tranquilamente.

 2. As raízes do tratamento intolerante

Essa maneira de tratar os suspeitos de delitos é consequência da natureza autoritária da sociedade brasileira e das suas consequentes desigualdades.

O autoritarismo apresentou, no nosso país, as suas primeiras marcas já no período colonial, quando a nossa economia era baseada na mão-de-obra escrava, estabelecendo desde já uma relação de hierarquia entre os que mandavam e os que obedeciam, nota característica da sociedade mesmo após o fim da escravidão.

Marilena Chauí, em sua obra Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, elenca algumas características do autoritarismo “tupiniquim”. Dentre tais caracteres, estão: a tendência liberal de crer que uns são naturalmente melhores do que outros; a utilização da lei como privilégio para os grandes e como repressão para as camadas populares; a indistinção entre o público e o privado; a crença dos que detêm o poder de que os conflitos e contradições sociais devem ser encarados como perigo, crise e desordem, devendo ser punidos com repressão policial e militar; e, por fim, o consumo de luxo como instrumento de demarcação da distância social entre as classes[11].

Esse autoritarismo juntamente com essa relação verticalizada dão ensejo, então, ao surgimento, desde o período inicial de nossa história, de profundas desigualdades sociais, econômicas e políticas.

Tais desigualdades são aceitas e até justificadas pelos privilegiados porque eles acreditam ser naturalmente melhores do que os que não têm recursos, como preleciona Marilena Chauí:

A existência dos sem-terra, dos sem-teto, dos milhões de desempregados é atribuída à ignorância, à preguiça e à incompetência dos miseráveis. A existência de crianças sem infância é vista como tendência natural dos pobres à vadiagem, à mendicância e à criminalidade[12].

Essa crença de superioridade natural é ainda alimentada por uma lógica de mercado que prega, sutilmente, que o consumo de luxo é o que diferencia visivelmente os melhores e mais ricos dos medíocres e sem recursos. Ou seja, o “ter” e, necessariamente, o “mostrar que tem” ao passo que são notas diferenciadoras fundamentais dos dois polos sociais, significam também status social elevado e elemento essencial para a felicidade, deixando aqueles que não têm recursos à margem até mesmo dessa tal felicidade vendida nos comerciais.    

Assim, das desigualdades sociais, econômicas e políticas surge a insegurança, que não surge apenas para aqueles que se julgam ameaçados de sofrer violências cometidas pelos “delinquentes”, surgem, fundamentalmente, para as camadas mais pobres, que se veem na insegurança de não ter o que comer, onde morar, o que vestir, e até mesmo na insegurança de não ser respeitado pela sociedade porque não “possuem” aqueles objetos de consumo que tornam as pessoas “melhores”. 

Infelizmente, os caminhos que as camadas populares encontram para superar essas diferenças e dificuldades nem sempre são o da honestidade e do trabalho, pois, quando elas buscam melhores condições de vida por meio de reivindicações e de manifestações sociais e políticas, são encaradas por uma repressão violenta e intolerante que tratam esses conflitos e contradições como uma questão de segurança pública, ao invés de encarar esses problemas estruturais de desemprego e falta de condições dignas para viver como problemas sociais.

Destarte, o autoritarismo alimenta e contribui para o surgimento e manutenção das desigualdades na sociedade brasileira, que, juntos, estruturam o desenvolvimento do tratamento intolerante ao suspeito de baixa-renda, já que os consideram naturalmente inferiores, e, portanto, não necessitam de um tratamento socialmente adequado.

Isso se dá na medida em que os privilégios dos poucos detentores do poder dificultam a melhoria de vida das camadas populares, pois aqueles, ao possuírem o poder político, não buscam por implementar políticas públicas que melhorem as situações destes.

Pelo contrário, os privilegiados não acreditam na inclusão econômica e política de toda a população, porque julgam que isso impossibilita a “governabilidade”, uma vez que a justiça social e a cidadania democrática estão fora de questão[13], por ameaçarem o seu estilo de vida pomposo e superior, já que é mais fácil mantê-lo concentrando quase a totalidade da renda nacional em poucas mãos.

 3.      Conclusão

Percebe-se, então, que antes de ter um problema de segurança pública, o Brasil, bem como outros países, tem problemas sociais seríssimos, profundamente enraizados na nossa história e estruturados na concentração de renda e nas desigualdades sociais.

Antes de se propor endurecimento e intolerância no tratamento policial e processual, deve-se pensar em propor melhorias para a qualidade de vida de todos os brasileiros e não apenas de alguns poucos, de maneira que se vejam respeitados os diversos primados do Estado Democrático de Direito que o Estado brasileiro pretende ser e que ainda não o é plenamente, pois que ainda se busca a construção real de uma sociedade livre, justa e solidária.

REFERÊNCIAS

CEDECA, Centro de Defesa da Criança e do Adolescente. Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará. Fortaleza: CEDECA, 2011.

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. 1ª ed. São Paulo: Perseu Ábramo, 2000. 

WACQUANT, Loic. As prisões da miséria. Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 

  

       



[1] Graduanda do curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: [email protected].

[2] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 48.

[3] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 47.

[4] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 49.

[5] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 47.

[6] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 50.

[7] Wacquant, As prisões da miséria, p. 9.

[8] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 61.

[9] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 47.

[10] Cedeca, Tele(visões): violência, criminalidade e insegurança nos programas policiais do Ceará, p. 53.

[11] Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, p. 90 a 92.

[12] Chauí, Brasil: mito fundados e sociedade autoritária, p. 93.

[13] Chauí, Brasil: mito fundador e sociedade autoritária, p. 95.