Viu-se que apenas importa falar em direitos de propriedade quanto diante de bens escassos; viu-se, também, que todos os bens na Terra são escassos e que, ainda que não fossem, os corpos de cada indivíduo o são.

Portanto, direitos de propriedade inevitavelmente teriam de ser desenvolvidos para resolver possíveis conflitos decorrentes do uso desses bens. Essa é a perspectiva racional da defesa da existência dos direitos de propriedade.

Ainda diante disso, seria logicamente aceitável indagar sobre a hipótese de sermos considerados donos apenas de nosso próprio corpo (o que, de fato, parece irrefutável até pelo modo possessivo com que naturalmente nos referimos a ele). Ou seja: poder-se-ia desenvolver uma argumentação que demonstrasse que somos donos apenas de nossos corpos, mas que não somos donos de quaisquer outras coisas externas como recursos naturais?

De fato, essa hipótese passaria desapercebida no teste da universalização, podendo gerar a seguinte lei-geral: “todas as pessoas são donas apenas de seus próprios corpos”. Certamente, diante da escassez, a necessidade de se decidir quem utilizará determinado bem em determinado momento faria com que outra lei-geral qualquer viesse a complementar a primeira - por exemplo: “os recursos naturais serão utilizados por quem os necessitar, em ordem dada pelo critério X”.

A hipótese acima seria universal e logicamente válida, mas encontraria dois obstáculos: 1) qual seria o critério X usado para coordenar a utilização dos recurso; 2) quem estaria apto a determinar tal critério. Poderia um indivíduo que nunca manteve contato com determinado bem ser considerado seu proprietário por ocasião de uma afirmação? Se sim, admitir-se-ia que a propriedade poderia ser adquirida por mera declaração verbal.

Se entende-se que o corpo é um bem escasso apropriável (pois somos donos dos nossos) e, ao mesmo tempo, aceita-se uma forma de aquisição de propriedade declarativa, por qual razão terceiros não poderiam declarar-se donos dos corpos alheios? Não existe uma resposta a esta indagação que passe no teste da universalização (imperativo categórico de Kant), pois ou se teria duas classes distintas de pessoas (as que podem e as que não podem se apropriar por decreto), ou duas classes distintas de propriedade (as que são passíveis e as que não são passíveis de apropriação por decreto). Tal comando poderia ser tudo menos uma lei-geral justa.

John Locke, o grande teórico da teoria natural da propriedade, entende que a propriedade privada dos recursos naturais está intimamente ligada à realidade já exposta quanto à propriedade de seu próprio corpo. Explica:

[...] cada um guarda a propriedade de sua própria pessoa; sobre esta ninguém tem qualquer direito exceto ela. Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através do seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou. (LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa ;Petrópolis, RJ: Vozes, 1994; p. 98.)

           

Sobre o início da propriedade, considerando válida a apropriação original como manifestação de uma inserção do trabalho do proprietário capaz de distinguir algo que anteriormente se encontrava sob o domínio como e, após a ação do sujeito, torna-se única, é válido ler atentamente as insubstituíveis e irreduzíveis palavras de John Locke:

Aquele que se alimentou com bolotas que colheu sob um carvalho, ou das maçãs que retirou das árvores na floresta, certamente se apropriou deles para si. Ninguém pode negar que a alimentação é sua. Pergunto então: Quando começaram a lhe pertencer? Quando os digeriu? Quando os comeu? Quando os cozinhou? Quando os levou para casa? Ou quando os apanhou? E é evidente que se o primeiro ato de apanhar não os tornasse sua propriedade, nada mais poderia fazê-lo. Aquele trabalho estabeleceu uma distinção entre eles e o bem comum; ele lhes acrescentou assim algo além do que a natureza, a mãe de tudo, havia feito, e assim eles se tornaram seu direito privado. Será que alguém pode dizer que ele não tem direito àquelas bolotas do carvalho ou àquelas maçãs de que se apropriou porque não tinha o consentimento de toda a humanidade para agir dessa forma? Poderia ser chamado de roubo a apropriação de algo que pertencia a todos em comum? Se tal consentimento fosse necessário, o homem teria morrido de fome, apesar da abundância que Deus lhe proporcionou. Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou. E este ato de tomar esta ou aquela parte não depende do consentimento expresso de todos.

E continua o jusfilósofo:

[...] a grama que meu cavalo pastou, a relva que meu criado cortou, e o ouro que eu extraí em qualquer lugar onde eu tinha direito a eles em comum com os outros, tornaram-se minha propriedade sem a cessão ou o consentimento de ninguém. O trabalho de removê-los daquele estado comum em que estavam fixou meu direito de propriedade sobre eles.

            Reconhecendo perfeitamente a necessidade prática de se determinar os direitos de uso diante de bens escassos, Locke chega ao ponto no qual Hermann Hoppe e Murray Rothbard aprofundaram: a exigência ética para as formas de aquisição de propriedade. Prossegue Locke:

[...] se fosse exigido o consentimento expresso de todos para que alguém se apropriasse individualmente de qualquer parte do que é considerado bem comum, os filhos ou os criados não poderiam cortar a carne que seu pai ou senhor lhes forneceu em comum, sem determinar a cada um sua porção particular. Ainda que a água que corre na fonte pertença a todo mundo, quem duvida que no cântaro ela pertença apenas a quem a tirou? Seu trabalho a tirou das mãos da natureza, onde ela era um bem comum e pertencia igualmente a todos os seus filhos, e a transformou em sua propriedade.

Assim, esta lei da razão dá ao índio o veado que ele matou; admite-se que a coisa pertence àquele que lhe consagrou seu trabalho, mesmo que antes ela fosse direito comum de todos. E entre aqueles que contam como a parte civilizada da humanidade, que fizeram e multiplicaram leis positivas para a determinação da propriedade, a lei original da natureza, que autoriza o início da apropriação dos bens antes comuns, permanece sempre em vigor; graças a ela, os peixes que alguém pesca no oceano, esta grandeza comum a toda a humanidade, ou aquele âmbar cinzento que se recolheu, tornam-se propriedade daqueles que lhes consagraram tantos cuidados através do trabalho que os removeu do estado comum em que a natureza os deixou. (LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa; Petrópolis, RJ: Vozes, 1994; p. 99.)

Ainda que entendida a perfeita justificação de apropriação humana das coisa as quais cria e/ou modifica com seu trabalho, poderia o homem possuir o pedaço de terra do qual extraiu a maça e a argila? Correntes teóricas baseadas no filósofo Henry George acreditam que não. Os georgistas acreditam que, tendo a terra sido criada por Deus, ninguém teria o direito de assumir para si tal propriedade com exclusividade.

Novamente, visto que a terra é um recurso escasso e que, por isso, deve ser desenvolvida uma forma de coordenar possíveis conflitos advindos no momento do seu uso, ter-se-iam as estas três inescapáveis hipóteses, sendo a última a hipótese escolhida por Henry George: 1) ou seria proprietário o homem que primeiro utilizou a terra, tornando-lhe produtiva; 2) ou seria proprietário um grupo de indivíduos (estado); 3) ou seria proprietária toda a humanidade, possuindo, cada indivíduo, uma parte fracionária do bem.

De pronto, percebe-se a impossibilidade de alguém poder utilizar, no caso presente, sete bilionésimos de cada pedaço de terra existente do globo. Na prática, uma pequena oligarquia teria do domínio de todas as áreas.

Depois, a ideia de que possuiríamos os objetos criados mas não possuiríamos a matéria que os antecede não faz sentido, pois a mesma justificativa que se dá para a apropriação de recursos extraídos é a que se dá para a apropriação de faixas de terra. O que muda entre os dois é tão-somente sua natureza móvel.

Ora, qual a diferença entre a apropriação que se faça de um boi (que, como a terra, é dado pela natureza) e a apropriação que se faça de uma faixa de terra? O homem não constrói o boi, mas apenas o separa do bem comum, domando-o e utilizando-o (por tanto, modificando-o) para o fim que deseja. Da mesma forma, o homem apenas separa da natureza uma faixa de terra “selvagem” para, então, “domá-la” e torna-la produtiva. Mais uma vez, Locke pontua com precisão:

         A superfície da terra que um homem trabalha, planta, melhora, cultiva e da qual pode utilizar os produtos, pode ser considerada sua propriedade. Por meio de seu trabalho, ele a limita e a separa do bem comum. (LOCKE, John; Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos; tradução de Magda Lopes e Marisa Lobo da Costa; Petrópolis, RJ: Vozes, 1994; pp. 100-101.)

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