A PRIORIZAÇÃO DA COOPERAÇÃO PÚBLICO-PRIVADA E DA PRESTAÇÃO REGIONALIZADA NO NOVO MARCO LEGAL DO SANEAMENTO BÁSICO

 

Amanda Pauli De Rolt[1]

Rodrigo de Pinho Bertoccelli[2]

 

Sumário: I. Introdução; II. Breve histórico do setor do saneamento básico; III. O novo marco e a priorização de cooperação público-privada e regionalização; IV. Conclusões; Referências bibliográficas.

 

Resumo

 

O contexto histórico legislativo e da prestação de serviços de saneamento básico no Brasil demonstra diversos avanços no setor. Entretanto, estes avanços foram muitas vezes tardios e não se mostraram suficientes para garantir a universalização desses serviços essenciais à população. É nesse contexto que o Novo Marco do Saneamento Básico implementou alterações na legislação setorial com o intuito de priorizar a cooperação público-privada e a regionalização da prestação dos serviços.

 

Palavras-chave: priorização, cooperação, público-privada, regionalização e saneamento.

 

Abstract

 

The historical legislative context and the provision of basic sanitation services in Brazil demonstrate several advances in the sector. However, these advances were often late and did not prove to be sufficient to guarantee the universalization of these essential services to the population. It is in this context that the New Basic Sanitation Legislation implemented changes in order to prioritize public-private cooperation and the regionalization of service provision.

 

Key words: prioritization, cooperation, public-private, regionalization and sanitation.

 

 

  1. Introdução

 

O saneamento básico é um dos setores mais atrasados da infraestrutura brasileira. Conforme pesquisa de 2019, 100 milhões de brasileiros não têm acesso aos serviços de coleta e tratamento de esgoto[3]. Ainda, de acordo com dados de 2018, 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada, e a cada 100 litros de água captada e tratada no Brasil, 38,5% são perdidos por causa de rompimentos, furtos e outros danos na rede de distribuição[4].

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 2017 realizada pelo IBGE, em 2017, 99,6% dos Municípios possuíam serviço de abastecimento de água por rede geral de distribuição, enquanto 60,3% dos municípios serviço de esgotamento sanitário por rede coletora[5]. Em 2018, o SNIS divulgou que 69% da população urbana é atendida com rede coletora de esgoto e apenas 46,3% do esgoto gerado passa por tratamento[6].

Além disso, no setor de manejo de resíduos sólidos, a cobertura de coleta domiciliar em relação à população total é de 92,1%, sendo que 61,9% dos municípios não possuem coleta seletiva e 55,8% das unidades de processamento são lixões, aterros sanitários e aterros controlados, sendo em sua maioria lixões[7]. Já, para o setor de manejo das águas pluviais urbanas, apenas 66,8% dos municípios possuem cobertura de vias públicas com pavimentação e meio-fio na área urbana e 18% possuem cobertura de vias públicas com redes ou canais pluviais subterrâneos na área urbana[8].

Um dado interessante é que, tanto para o abastecimento de água quanto para o esgotamento sanitário, ocorreu a diminuição do número de prefeituras atuando na prestação direta desses serviços entre 2008 e 2017. As empresas privadas estavam presentes em 3,6% dos municípios no caso da distribuição de água e em 3,1% no caso da coleta de esgoto[9]. Contudo, não se observou uma maior privatização a partir de 2017.

Em 2019, a iniciativa privada correspondia apenas a 6% dos prestadores de serviço no setor do saneamento, presente em 325 municípios brasileiros. Entretanto, mesmo com participação limitada, a iniciativa privada é responsável por 20% dos investimentos realizados no setor, nos últimos 20 anos, de acordo com o Panorama da Participação Privada no Saneamento 2019 (Abcon/Sindcon)[10]. Além de contratos de prestação de serviço, em outubro de 2020, no Brasil, estavam vigendo 71 concessões comuns, 17 concessões administrativas e 2 concessões patrocinadas de abastecimento de água e/ou esgotamento sanitário, situadas nos estados da Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, Tocantins, Alagoas, Espírito Santo e Pernambuco[11]. A participação do setor privado ainda é limitada.

Os números do setor, somado ao seu histórico legislativo e de prestação de serviços serviu como embasamento para as alterações implementadas pelo Novo Marco Legal do Saneamento Básico, em especial a priorização da cooperação público-privada, em detrimento da cooperação público-público.

 

 

  1. Breve histórico do setor do saneamento básico

 

No Brasil, as primeiras políticas de saneamento básico surgiram no Império, principalmente devido a vinda da família real portuguesa, perpassando a participação de concessionárias estrangeiras, a sanção do Código de Águas Brasileiro em 1934, o surgimento de políticas públicas nacionais.

O saneamento básico ganhou maior enfoque entre as décadas de 70 e 90, com a criação de órgãos e políticas públicas visando uma solução nacional. Entre elas podemos destacar o Programa de Financiamento para o Saneamento, o Programa Prioritário de Abastecimento d’água e Esgotos Sanitários, o Programa de Saneamento Básico do Nordeste, o Programa Prioritário de Abastecimento de Água do Ministério da Saúde e o Programa Prioritário de Combate à Erosão e às Inundações.[12]

Entretanto, o grande marco das políticas públicas nacionais, na década de 70, foi o Plano Nacional de Saneamento (PLANASA), que tinha por objetivo incentivar a criação de Companhias Estaduais de Saneamento (CESBs) e linhas de financiamento para investimentos. As companhias estaduais, pouco expressivas até então, passaram a ganhar volume e contrair para si o dever que cabia aos Municípios, titulares dos serviços.

O governo federal, durante a ditadura militar, elegeu o saneamento básico como pauta prioritária. O PLANASA foi o principal instrumento do modelo de gestão implantado pelo regime militar para o setor, o que permite compreender as qualidades e deficiências do saneamento básico no Brasil. Esse período foi o auge da intervenção do Estado, com o desenvolvimento do PLANASA – com dimensões institucionais, financeiras e tecnológicas bem definidas – destinadas a assegurar a prestação dos serviços de saneamento básico.

Com o PLANASA, o setor de saneamento básico passa a ser conduzido por uma estratégia nacional que afastou os municípios da gestão dos serviços, direcionando para os Estados o papel de operadores do sistema, cujo principal desafio seria universalizar os serviços sem renunciar à sustentabilidade econômica.

O PLANASA foi lançado em 1971, com o objetivo de atender, até 1980, 80% da população com abastecimento de água e 50% com esgotamento sanitário. O Banco Nacional de Habitação (BNH) foi transformado em empresa pública e em banco de segunda linha, passando a operar somente com repasses e refinanciamentos estatais. Estruturado pelo Sistema Financeiro do Saneamento (SFS) e sustentado com recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), o PLANASA priorizou o abastecimento de água em detrimento das demais ações que compõem o saneamento básico.

No modelo de gestão do PLANASA, as companhias estaduais eram um elemento central, pois deveriam garantir a autossustentação tarifária. As companhias estaduais surgiram quando o saneamento passou a ser um fator essencial para o desenvolvimento econômico, dado o intenso processo de urbanização gerador de demanda associada à insalubridade.

O modelo institucional introduzido pelo PLANASA contava com a presença de agentes financeiros (bancos estaduais, regionais ou federais, credenciados pelo BNH), de agentes promotores (as companhias estaduais de saneamento – CESO) e de órgãos de suporte técnico em nível estadual como CETESB e FEEMA.

 Em regra, o PLANASA estabelecia que as CESB podiam receber recursos do FGTS, apresentando como contrapartida para os investimentos os recursos dos Fundos Estaduais de água e Esgoto (FAE). Os recursos do PLANASA têm duplas raízes: o FINANSA (recursos próprios do BNH/FGTS, créditos obtidos junto a instituições brasileiras ou internacionais, além da disponibilidade do Fundo de Financiamento para Saneamento – FISANE, criado em 1967); e dos FAE. Nas operações de financiamento, os recursos eram repassados às companhias concessionárias estaduais, que eram os mutuários do sistema[13].

Contudo, no início dos anos 80, o modelo financeiro se desestruturou devido, entre outros fatores, a crise econômica, com o aumento do desemprego, reduzindo os recursos do BNH, que vinham do FGTS, debilitado pelo aumento dos saques[14]. Com isso, o BNH foi extinto e as suas competências foram transferidas para a Caixa Econômica Federal em 1986[15].

Apesar das dificuldades, os resultados do PLANASA foram satisfatórios. Recursos foram efetivamente destinados ao saneamento básico, sendo que 15 milhões de domicílios passaram a ter acesso à água tratada, criaram-se órgãos governamentais e empresas privadas para a oferta dos serviços[16]. Entretanto, o esgotamento sanitário e o manejo de resíduos sólidos foram deixados de lado.

Com o fim do regime militar e o advento da Constituição Federal de 1988, foram elaboradas as leis orgânicas e planos diretores municipais, com a descentralização das políticas públicas do setor para os municípios. Ainda, as companhias estaduais não obtiveram bons resultados e as metas do PLANASA não foram atingidas, ocasionando a sua revogação.

A Constituição Federal de 1988 tratou dos serviços públicos de saneamento básico como exigência prevista nos artigos 21, inciso XX, 23, inciso IX, e 200, inciso IV. Contudo, a menção ao saneamento limitou-se a atribuição de competências ou ao reconhecimento como um setor relevante para a saúde e meio ambiente.

No início dos anos 90 o governo federal passou a mapear a situação do setor no país, com o intuito de levantar informações para criar uma nova política nacional. Para tanto, destaca-se o papel do Serviço Nacional de Informações de Saneamento (SNIS).

O setor também recebeu diversos aportes do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) e FGTS. Além disso, sem recursos, o governo passou a estimular concessões de serviços públicos, entretanto, muitos governos e dirigentes de empresas públicas eram contra essa política. A falta de segurança nas disposições legais sobre concessões também assustou os investidores.

A regulação dos serviços de saneamento básico foi insuficiente. Em 1990 a Lei Orgânica da Saúde reconheceu a sua importância para a saúde. Em 2001, o Estatuto da Cidade determinou a sua relevância para a sustentabilidade dos municípios. Mas, foi somente em 2005 que surgiu o Projeto de Lei 5.296, posteriormente convertido na Lei federal 11.445/2007, que instituiu a Política Nacional de Saneamento Básico.

A Política Nacional de Saneamento Básico apresentou as principais características dos serviços de saneamento básico, princípios, objetivos e diretrizes, assim como maiores direitos aos usuários, a autonomia das entidades reguladoras, estabeleceu a exigência de plano de saneamento básico para os contratos administrativos, definiu o saneamento como elemento indissociável das políticas de saúde e meio ambiente, entre outros[17]. No entanto, não definiu de forma clara o ente titular, competente pela prestação dos serviços, não foi estipulado prazo para a sua implementação e não foi definido quem seria responsável pela regulação – o que acarretou o surgimento de diversas agências reguladoras estaduais e municipais.

Em 2010, foi publicada a Lei 12.305, com a Política Nacional de Resíduos Sólidos, que disciplinou as atividades de manejo e destinação final de resíduos sólidos, em complemento à Política Nacional de Saneamento Básico[18].

O setor, ainda, recebeu investimentos por meio do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) e Programa de Aceleração de Crescimento 2 (PAC 2), entre os anos de 2007 e 2014. O que contribuiu para a execução de diversas obras importantes para o saneamento do país.[19]

Em 2013 foi lançado o PLANSAB, em atendimento à Lei 11.445/2007. O Plano aborda os quatro componentes do saneamento básico: abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Ele foi aprovado pelo Decreto 8.141/2013 e pela Portaria 571/2013. Foram definidas metas de curto, médio e longo prazos, entre elas, podemos destacar o alcance de atendimento de 99% para o fornecimento de água potável e 90% para o tratamento e coleta de esgoto até 2033. O Plano possui a duração de 20 anos (de 2014 a 2033) e deve ser avaliado anualmente e revisado a cada quatro anos[20].

O PLANSAB consolidou a necessidade de universalização dos serviços de saneamento básico. As avaliações realizadas entre 2014 e 2018 apontam o alcanço de avanços no abastecimento de água, esgotamento sanitário e manejo de resíduos sólidos, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. No componente drenagem e manejo de águas pluviais a evolução dos indicadores foi constatada, em especial, entre 2015 e 2018[21].

Estudos, como o Panorama de 2019 da Abcon e Sindcon, demonstram que, caso o setor continue evoluindo sem alterações profundas e maiores investimentos, não seria possível atingir as metas do PLANSAB para 2033[22]. Nesse cenário, foram editadas Medidas Provisórias em 2018. A Medida Provisória 844 propôs atualizar o marco legal do saneamento básico com alterações na Lei 9.984/2000, para atribuir à Agência Nacional de Águas competência para editar normas de referência nacionais sobre o serviço de saneamento, na Lei 10.768/2003, para alterar as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, e na Lei 11.445/2007, para aprimorar as condições estruturais do saneamento básico.

Os objetivos pretendidos com a MP 844 foram a busca de maior segurança jurídica aos investimentos no setor e o aperfeiçoamento da legislação de gestão dos recursos hídricos e de saneamento básico, bem como a interação entre as políticas públicas. As justificativas para tais alterações foram a baixa cobertura de coleta de esgoto e lixo; a variabilidade de regras regulatórias – que configuravam um obstáculo ao desenvolvimento do setor e universalização dos serviços, uma vez que titulares com baixa capacidade regulatória afetam negativamente a eficiência dos serviços e a falta de padronização aumenta o custo de transação aos prestadores –; a falta de coordenação e racionalização das ações federais no setor; e a redução de concorrência no setor com a celebração de contratos de programa com dispensa de licitação.[23]

A MP propôs atribuir à Agência Nacional de Águas (ANA) a competência de elaborar normas nacionais de referência, a criação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), adequação das regras de consórcios públicos ao setor, com a manutenção dos contratos de programa em casos de alienação de controle acionário de companhia estatal e a alteração dos casos em que é permitida a dispensa de licitação, alterações que objetivam estimular o uso racional dos recursos, regras que buscam a ampliação dos serviços nos assentamentos urbanos irregulares, entre outras.[24] Esta MP não foi convertida em lei, por falta de consenso parlamentar e perdeu a sua eficácia em novembro de 2018[25].

Em dezembro de 2018 nova Medida Provisória foi emitida, a 868, uma cópia da MP 844, e inclui a possibilidade de cobrança dos serviços de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos em conjunto com os de água e esgoto, a possibilidade de participação em fundo de universalização do saneamento, entre outros.[26] Igualmente, esta MP não foi convertida em lei, por falta de consenso parlamentar e perdeu a sua eficácia em junho de 2019[27].

Em 15 de julho de 2020 foi promulgada a Lei 14.026/2020, chamada de “Novo Marco Legal do Saneamento”, original do Projeto de Lei 4.162/2019, apresentado pelo Poder Executivo.

Entre as justificativas apresentadas para a sua aprovação temos que a população brasileira enfrenta graves problemas de acesso aos serviços de saneamento, em especial a cobertura por rede coletora de esgoto e coleta e destinação ambientalmente adequada de lixo; a maioria dos prestadores de serviços são empresas estaduais de economia mista, entretanto, em uma conjuntura de grave crise fiscal com restrição de investimentos públicos só restaria construir sólidas parcerias com a iniciativa privada; trata-se de um setor altamente monopolizado, onde a iniciativa privada está presente em apenas 6% dos municípios; o alto índice de cancelamento de contratos devido a impossibilidade de execução dos empreendimentos; a grande variabilidade de regras regulatórias, baixa capacidade regulatória dos titulares dos serviços, que geraram um obstáculo ao desenvolvimento do setor e à universalização dos serviços; a falta de coordenação e racionalização das ações federais no setor; a falta de clareza quanto à titularidade dos serviços; a falta de consistência, em termos de eficácia, dos instrumentos contratuais do setor; a insustentabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços em municípios mais pobres; os problemas de financiamento enfrentados para as atividades de manejo de resíduos e limpeza urbana; e a falta de segurança jurídica para o desenvolvimento do setor.[28]

Não se trata de substituição da Lei 11.445/2007, mas de alterações neste e em outros diplomas legais do setor para atribuir à ANA competência para editar normas de referência sobre o serviço de saneamento, alterar o nome e as atribuições do cargo de Especialista em Recursos Hídricos, vedar a prestação por contrato de programa dos serviços públicos de que trata o art. 175 da Constituição Federal, aprimorar as condições estruturais do saneamento básico, tratar dos prazos para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, estender o seu âmbito de aplicação às microrregiões e autorizar a União a participar de fundo com a finalidade exclusiva de financiar serviços técnicos especializados[29].

 

  1. O novo marco e a priorização de cooperação público-privada e regionalização

 

 

No Brasil, a configuração de interesses comuns entre os entes federados é tendência cada vez maior, por motivos de conurbações urbanas, motivos econômico-financeiros, sociais e técnico-operacionais. A forma de prestação local dos serviços, ou seja, pelos municípios, muitas vezes constitui um fator de impedimento à instituição de políticas e subsídios cruzados e aos almejados ganhos de escala, o que também restringe a viabilidade técnica e econômica dos serviços em muitos municípios. Isto porque, é evidente que municípios com maior população de baixa renda e modesta arrecadação de impostos, como o IPTU e ISS, possuem baixa capacidade de investimento para o cumprimento das metas de universalização dos serviços de água e esgoto.

Por outro lado, a mera regionalização dos serviços, com a sua prestação por meio de uma empresa estatal, por exemplo, não se mostrou suficiente para atingir os níveis almejados de universalização. Os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) demonstram que a realidade brasileira ainda está longe da ideal[30]. O setor de saneamento carece de alta capacidade de investimento e técnica, dificilmente supridos pelo poder público com raras exceções. É aqui que entra a necessidade de formação de parcerias com o setor privado.

Foi diante desse contexto que a Lei Federal nº 14.026/2020, o Novo Marco do Saneamento Básico, introduziu alterações na legislação setorial, com a priorização da prestação regionalizada dos serviços, em detrimento da consolidada municipalização, e a promoção da realização de concessões para o setor privado, em detrimento de contratos de programa firmados entre empresas estatais e entes federados. Ainda, em março de 2021, o Congresso Nacional confirmou os vetos do presidente Jair Bolsonaro, em especial ao artigo 16, mantendo a impossibilidade de prorrogação dos contratos de programa.

Sob o Novo Marco, ganhou destaque a prestação regionalizada mediante delegação, por meio das concessões regionais ou diretamente, por meio da comunhão dos entes titulares. Em ambas as situações se pressupõe a declaração da regionalização, com a aglutinação de titularidades e definição de suas competências, mediante instrumentos compulsórios, voluntários ou híbridos[31]. Ainda, em complemento, o Decreto nº 10.588, de 24 de dezembro de 2020, regulamentou a implementação desses instrumentos, bem como a alocação de recursos federais. A alocação de recursos federais e os financiamentos com recursos da União restou condicionada à estruturação da prestação regionalizada dos serviços, conforme artigo 4º, inciso VII do Decreto nº 10.588/2020.

Destacam-se, na Lei nº 11.445/2007, alterada pela Lei 14.026/2020, os instrumentos de regionalização. Entre eles, os instrumentos compulsórios são as regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões (artigo 3º, inciso VI, alínea “a” da Lei Federal nº 11.445/07). São compulsórios nos termos do artigo 3º, § 1º do Estatuto da Metrópole, que determina que, instituídas as regiões metropolitanas e aglomerações urbanas pelos estados por meio de lei complementar, os entes federativos delas participantes deverão promover a governança interfederativa. Assim, essa modalidade de regionalização independe da vontade dos municípios e tem como requisitos a edição de lei estadual instituidora da região e a caracterização do interesse comum, seja por motivos técnico-operacionais e/ou econômico-financeiros. A lei complementar deve conter no mínimo, o conteúdo elencado no artigo 5º do Estatuto da Metrópole, como a conformação da estrutura de governança interfederativa, incluindo a organização administrativa e o sistema integrado de alocação de recursos e de prestação de contas.

Por sua vez, os instrumentos voluntários são o consórcio público e o convênio de cooperação (artigo 241 da Constituição Federal). São negócios jurídicos de direito público que, como tais, assentam-se em acordo de vontades entre as entidades federativas deles participantes. Portanto, não há compulsoriedade, depende da adesão e assinatura do acordo por cada ente. As suas regras procedimentais foram estabelecidas na Lei Federal nº 11.101/2005 e Decreto nº 6.017/2007.

Já, os instrumentos híbridos são a unidade regional de saneamento básico e o bloco de referência (artigo 3º, inciso VI, alíneas “b” e “c” da Lei Federal nº 11.445/07). A unidade regional de saneamento básico é criada por meio de lei ordinária estadual, mas a participação efetiva dos municípios é voluntária e depende da sua adesão, por meio de declaração formal firmada pelo Prefeito (artigo 2º, § 1º, inciso II do Decreto nº 10.588/2021). Já o bloco de referência poderá ser criado pela União, por meio de ato do Poder Executivo Federal, a partir de deliberação do Comitê Interministerial de Saneamento Básico (Cisb) (artigo 2º, § 7º do Decreto nº 10.588/2021), somado com a assinatura de um instrumento voluntário pelos entes membros (consórcio público ou convênio de cooperação) (artigo 2º, § 1º, inciso III do Decreto nº 10.588/2021).

Ademais, o artigo 50 da Lei federal 11.445/2007 regula a alocação de recursos públicos federais e financiamentos com recursos da União, ou geridos ou operados por órgãos e entidades da União, sendo condicionados a vários requisitos, entre eles, o do inciso VII[32], que condiciona a alocação à estruturação de prestação regionalizada.

 

Assim, a aplicação de recursos onerosos federais (como aqueles do Programa Saneamento para Todos) está condicionada à estruturação de prestação regionalizada. Ou seja, somente os serviços de saneamento básico que sejam regionalizados poderão receber tanto os recursos orçamentários federais (com exceção dos advindos de emendas orçamentárias parlamentares) como recursos advindos de operações de crédito celebradas com entidades federais (como recursos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Nesse sentido, a alocação dos recursos foi regulamentada pelo Decreto nº 10.588/2020.

De mais a mais, outro direcionamento dado pelo Novo Marco, foi a preferência pela cooperação público-privada, por meio de contratos de concessão, em detrimento da cooperação público-público, por meio de contratos de programa. O contrato de programa perde força e abre espaço para concessões. Restou proibida a celebração de novos contratos de programa, cuja outorga deverá ser objeto de concessão, precedida de licitação. Ainda, os contratos de programa vigentes poderão permanecer em vigor até o advento de seu termo, mediante adoção de prazos de universalização, sem a possibilidade de sua prorrogação.

Na prática, surgiram grandes projetos regionais, com a concessão para a iniciativa privada. Entre eles, podemos mencionar projetos estruturados pelo Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES), que representam um horizonte de R$ 45 bi de investimentos para os próximos anos[33]. Alguns deles, entretanto, não extinguem totalmente a participação das empresas estatais, são eles: a Concorrência Pública nº 09/2020, de Alagoas, que envolve a Companha de Saneamento de Alagoas (CASAL); e o Edital de Concorrência Internacional nº 01/2020, do Rio de Janeiro, que envolve a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE).

 

 

  1. Conclusões

 

Existe a tendência de configuração de interesses comuns entre os entes federados cada vez maior, por motivos geográficos, de conurbações urbanas, econômico-financeiros, sociais e técnico-operacionais. O interesse comum, portanto, pode se sobrepor ao interesse local, servido de permissão aos estados para criação de estruturas de prestação regionalizada dos serviços. Esta tendência foi identificada e mais bem estruturada por meio do Novo Marco do Saneamento Básico, com a sua priorização.

Além disso, apesar dos avanços na prestação dos serviços, em especial em distribuição de água, com as empresas estatais, o Novo Marco Legal do Saneamento Básico optou por priorizar, não só a prestação regionalizada, mas a cooperação público-privada. Isto se deu com a proibição de novos contratos de programa e a obrigatoriedade da outorga de concessões, por meio de licitação. Assim, o Novo Marco objetiva que o setor deixe de lado as cooperações público-público, por meio de contratos de programa com empresas estatais, e passe a optar pelas cooperações público-privadas, com as concessões.

As mencionadas priorizações foram fruto da alegada falta de capacidade de investimento das empresas estatais, do não alcance das metas do PLANSAB, da pouca participação do setor privado no setor, entre outros argumentos utilizados pelo Poder Legislativo para justificar as alterações na legislação setorial. Entretanto, na prática, o setor ainda possui diversas empresas estatais, com contratos de longo prazo e observam-se até o momento poucas iniciativas de concessões regionalizadas que, inclusive, mantiveram a cooperação com as empresas estatais[34]. Questiona-se se os novos incentivos à iniciativa privada são suficientes para conferir a tão almejada segurança jurídica no setor.

 

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[1] Advogada em São Paulo no Felsberg Advogados. (11) 98188-4230. [email protected]. Graduada em Administração Pública pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com período de estudos na Universidade de Harvard. Mestre em Direito Administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo. Associada ao Felsberg Advogados.

[2] Advogado em São Paulo no Felsberg Advogados. (11) 99901-0711. [email protected]. Graduado e Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pós-graduado em Contratos Empresariais pela FGV-GVLaw, em Business e Compliance pela University of Central Florida e International Management & Compliance pela Frankfurt University of Applied Sciences. Mestrando em Direito Público pela FGV. Ex-Secretário da Coordenação de Saneamento do Conselho Federal da OAB. Membro da Comissão de Saneamento do IASP. Sócio no Felsberg Advogados.

[3] Disponível em: http://abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2019/04/PANORAMA2019low.pdf

[4] Disponível em: http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ae/2018/Diagnostico_AE2018.pdf.

[5] Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101734.pdf.

[6] Disponível em: http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ae/2018/Diagnostico_AE2018.pdf.

[7] Disponível em: http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/rs/2018/Diagnostico_RS2018.pdf.

[8] Disponível em: http://www.snis.gov.br/downloads/diagnosticos/ap/2018/Diagnostico_AP2018.pdf.

[9] Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101734.pdf.

[10] Disponível em: http://abconsindcon.com.br/wp-content/uploads/2019/04/PANORAMA2019low.pdf

[11] Radar PPP.

[12] LAHOZ, Rodrigo. Serviços públicos de saneamento básico e saúde pública no Brasil. São Paulo: Almedina, 2016. p. 76-77.

[13] LOBO, Luiz. Saneamento Básico: em Busca da Universalização. Brasília: Editora do Autor, 2003, p.36.

[14] Vinícius Marques de Carvalho lembra que “Houve várias tentativas de mitigar algumas das características do PLANASA. Apenas para citar alguns exemplos notáveis, o BNH, em novembro de 1985, lançou o Programa de Saneamento para Populações de Baixa Renda (PROSANEAR), que almejava incentivar soluções alternativas e que primassem pela redução de custos de implantação dos sistemas de saneamento. Uma segunda medida de destaque foi a criação de uma Comissão de Reformulação do SFS que propôs alterações relevantes no modelo em vigor: (i) expandir o conceito de saneamento básico para envolver a limpeza urbana, a coleta e a destinação de resíduos sólidos, a drenagem urbana e a proteção de mananciais/ (ii) reforçar o caráter de serviço público de saneamento, priorizando o atendimento à população de baixa renda com financiamento a fundo perdido e superando, com isso, o aspecto empresarial; (iii) tirar do BNH as funções de fornecer diretrizes da política, restringindo-se apenas aos aspectos de financiamento; (iv) integrar mecanismos institucionais de avaliação e acompanhamento lastreados na autonomia dos município. O fato é que tais proposições não foram levadas adiante e que poderia ser uma reformulação desembocou na extinção do BNH, no final de 1996, e na passagem de suas atribuições para a Caixa Econômica Federal (CEF).

[15] LAHOZ, Rodrigo. Serviços públicos de saneamento básico e saúde pública no Brasil. São Paulo: Almedina, 2016. p. 77.

[16] LAHOZ, Rodrigo. Serviços públicos de saneamento básico e saúde pública no Brasil. São Paulo: Almedina, 2016. p. 78.

[17] LEMOS. Rafael Diogo Diógenes. Soluções Individuais de Abastecimento de Água e de Destinação Final de Esgotos Sanitários frente ao Novo Marco Jurídico Regulatório do Saneamento Básico. Revista de Direito Ambiental, vol. 54/2009, p. 270-290, Abr - Jun / 2009.

[19] LAHOZ, Rodrigo. Serviços públicos de saneamento básico e saúde pública no Brasil. São Paulo: Almedina, 2016. p. 84.

[30] Disponível em: .

[31] VANZELLA, Rafael. BORGES, Jéssica. Notas sobre a prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico. In: DAL POZZO, Augusto (coord.) Lei Federal n 14.026/2020: O novo marco regulatório do saneamento básico.

  1. Art. 50.  A alocação de recursos públicos federais e os financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da União serão feitos em conformidade com as diretrizes e objetivos estabelecidos nos arts. 48 e 49 desta Lei e com os planos de saneamento básico e condicionados:

(...)

VII - à estruturação de prestação regionalizada;

[33] Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,carteira-de-projetos-do-bndes-soma-r-45-bi-em-saneamento,70003343224.

[34] Podemos citar os seguintes editais: Concorrência Pública nº 09/2020 (CASAL/AL) e Edital de Concorrência Internacional nº 01/2020 (CEDAE/RJ).