A PRESENÇA DA AUSÊNCIA DE UMA PESSOA APELIDADA GENÉRICAMENTE DE ''ÍNDIO DO BURACO''
Publicado em 31 de agosto de 2022 por Ricardo Valim
No último sábado, 27 de agosto de 2022 foi noticiada a confirmação da morte que ocorrera na terça-feira dia 23 de agosto de 2022 do que se convencionou a chamar de “Índio do Buraco”. Sobre apelidos e rótulos podemos discutir em outro momento, afinal renderia muito assunto, mas hoje o foco nesta nota é sobre o respeito pela sua partida e a perda significativa que restou aos vivos.
Quando alguém deixa de existir nesta realidade o mundo sente sua ausência e pior que a ausência é a presença da sua ausência que permanece e permanecerá durante muito tempo em nossa memória. Esta pessoa que nos leva a escrever e refletir neste dia poderia ter morrido só e se um dia não tivesse sido encontrado poderia ter deixado de existir sem que ninguém desse por sua falta. Mas ele certo dia foi encontrado e seu valor foi imensurável, afinal, era ele o último de seu povo. Nestes termos a presença de sua ausência se torna ainda mais incômoda e icônica agora, ao menos para aqueles sendo empáticos e sensíveis à questão humana mesma.
Morre uma pessoa e com ela literalmente nestes casos morre o nome de seu povo que nem sabemos qual, mas soubemos dar um apelido “Índio do Buraco”, nada mais genérico e cômico para descrever o último de seu povo, uma pena, a humanidade poderia ter sido melhor e mais respeitosa neste ponto de descrição. Conta-se que se sabia de sua existência a 30 anos. No mínimo estranho ninguém ter perguntado ou entrado em contato em algum momento para saber algo. Mas enfim, também não se pretende aqui entrar nos méritos e métodos científicos, apenas refletir.
Sua morte representa para toda a humanidade uma tremenda falha como humanos mesmos, porque sempre os ditos civilizados se propõem a melhorar e transformar a realidade de forma que a vida seja muito melhor do que sempre foi e não é bem assim que as coisas acontecem. Na verdade, o que temos por trás destes “trapos paternalistas de arautos da salvação” é uma falha terrível que nos impede de acessar o outro na sua integralidade e originalidade. Exemplo disso, é este ser humano que faleceu nesta semana. Reflita sobre isso “ele era o último de seu povo”, nós não sabemos o real peso dessas palavras. No máximo que conseguiremos fazer é dar uma floreada, romancear sobre isso, mas sentir enquanto sentir não sentiremos e não sentiremos porque não sabemos nada sobre essa pessoa. Quem eram seu povo, sua língua, sua cosmovisão, e sobretudo como deveria se sentir ele não vê mais diante de si aqueles com quem cresceu e amadureceu.
Sua morte é o símbolo do que estamos fazendo a nós mesmos, estamos nos tornando ausência através da criação de ausências dos outros que não queremos ser ou reconhecer que existem. E nesta dinâmica ímpar de morte do outro a perplexidade que resulta é a do caos gerado pela fatalidade da impossibilidade de contato com o elemento chave de uma cultura que parte sem deixar traços.
Podemos nos perguntar agora sobre quais serão as melhores atitudes a serem tomadas para evitar que no presente e no futuro a exemplo do passado tenhamos novas formas de criação de morte e sobretudo como resultado tenhamos que viver com a incômoda presença de novas ausências. Certamente a esperança é que atitudes mais amadurecidas de proteção, resgate e valorização das culturas ancestrais são esperadas. Até porque seria um tremendo retrocesso para uma dita sociedade avançada em politicas e direitos humanos permitir que novas situações degradantes como as de outrora possam ressurgir como uma fênix fatal.
Como dito anteriormente uma saída para não cometer erros como os do passado é a valorização dos povos ancestrais com tudo aquilo que os compõe e os mantém enquanto povo. A eles pertencem uma cosmovisão que é totalmente distinta do que estamos habituados justamente porque estão conectados a uma dimensão que não faz parte do nosso contexto educacional, por exemplo. Enquanto precisamos de livros didáticos e métodos mirabolantes vindos em sua grande maioria de países estrangeiros, o indígena por sua vez educa os seus a partir do livro que é a própria via, ou seja, a natureza. Suas tradições, suas experiências, sua religiosidade é passada de geração em geração através da oralidade, ou seja, através do sopro da vida. Não existe escrita mais poderosa do que aquela gravada para a eternidade e é isso o que as culturas ancestrais fazem. Perpetuando suas crenças, perpetuam também sua originalidade e autenticidade.
Neste dia de confirmação fúnebre, a humanidade se torna mais pobre. Pois se perdeu a oportunidade de crescermos com o diferente aprendendo sua língua, hábitos, costumes, sua religiosidade e seu entendimento sobre o mundo. Mas o alerta permanece: quantas existências mais terão de se tornar ausências para podermos aprender que o valor da vida humana não tem preço?