A periferia pela óptica do Rap: Mecanismos de reflexão e refração ideológica

    Alan Marinho Fernandes[1] Prof. Roseli Cantalogo Couto[2]

 RESUMO 

Este artigo tem como objetivo examinar o caráter dialógico presente no rap a partir de uma visão crítica social, reconhecendo-o como um agente ambivalente na valorização da identidade periférica e como reação aos mecanismos de opressão contra o povo marginalizado que, consequentemente, cria uma linguagem e uma cultura próprias, inter periférica. O principal objeto de análise é o grupo Um Barril de Rap (Brasilia) e a análise de algumas rimas de MC”s que, compõe o movimento atual do rap, destacamos frases de dois MC's de São Paulo e da Baixada Fluminense  Como orientação para a pesquisa, conceitos elaborados pelo círculo de Bakhtin, com a proposta de investigar de que maneira o rap contribui em forma de linguagem para a desconstrução de valores hegemônicos, estruturados na consciência coletiva da sociedade, manifestados em forma de enunciados no cotidiano. Buscamos entender de que maneira as palavras usadas no discurso do rap interage diretamente com a realidade concreta do autor além de criar um possível elo de identificação para quem acompanha o movimento hip-hop. Investigamos a relação de alteridade nos discursos desses raps, esta que de acordo com Bakhtin surge de tons emotivos-volitivos que surgem de um contexto único. Também citamos brevemente a questão de ritmo e conteúdo no qual este ritmo está inserido.

Palavras-chave: Rap. Identidade Periférica. Um Barril de Rap. GunjahClan. Círculo de Bakhtin. Baixada Fluminense.

 1 INTRODUÇÃO 

O hip-hop surgiu por volta da década de 70 como um movimento artístico-cultural, no subúrbio nova-iorquino, incorporando múltiplas linguagens: a dança, com o break, as artes visuais e plásticas, com o grafite, a poesia e a música, com o rap, etc. Podemos dizer que as gírias, expressões, modo de se vestir e comportamentos são aspectos que contribuem para a transformação do hip hop num modo de se viver, chegando a alcançar uma escala global.

As vivências, que pude observar daqueles que fazem parte do meu círculo social, e a minha também, foram às propulsoras desta pesquisa. O rap despertou meu interesse pelo potencial da palavra, sobretudo na periferia, o que me levou a cursar Letras. No decorrer do curso e da minha trajetória pessoal, percebi que a Literatura sempre esteve ao meu redor. Desta forma, justificamos a escrita deste trabalho pela necessidade de demonstrar como ter essa consciência pode mudar a narrativa de muitos periféricos, alimentando o desejo de busca por conhecimento, gerando senso crítico para perceber o lugar que a sociedade nos obriga a ocupar, presente até mesmo na língua, o que pretendo demonstrar a seguir.

Nosso objetivo é, por meio da pesquisa bibliográfica e da abordagem qualitativa, apontar maneiras de como o movimento hip-hop atua na realidade ao redor do mundo, depois focando no Brasil e, por fim, na Baixada Fluminense, reconhecendo pontos em comum e pontos distintos entre esses cenários, considerando a formação de grupos como construção de uma cultura que ultrapassa fronteiras. Para isso, serão principais objetos de estudo, os grupos Um Barril de Rap (Brasília) e três Mc”s,dois de São Paulo e um da Baixada Fluminense.

Temos seguinte questionamento central desta pesquisa: De que forma o Rap atua na realidade concreta através de discursos ideológicos? A resposta para tal pergunta será fundamentada ao longo do trabalho pelo seguinte referencial teórico: Bakhtin (1992; 2003; 2012), Faraco (2009), Carpeaux (2012), Santos (2013) e Silva (1998).

 

2 O RAP PELO RETROVISOR: ORIGENS

 

O griô futurista que mantém vivos os ancestrais
No tambor, nos beats, eu sou capaz
Meu canto não traz sabedoria de um profeta
Mas a malandragem de um marginal poeta
 Flávio Renegado

O rap (rhythm and poetry em tradução livre: ritmo e poesia) é um gênero de música que percorreu da Jamaica para outros países com a mesma intenção: denúncia e protesto das classes marginalizadas. Nas apresentações musicais, o rap era conduzido por DJ’s e toasters (atualmente nomeados de MC’s – Mestres de Cerimônia). Os toasters cantavam de forma falada e comentavam assuntos que relatam a realidade das favelas de Kingston, na Jamaica. Logo, o rap é um gênero de luta. Nesse sentido, este gênero surge das necessidades sociais e se reinventa de acordo com a atualidade.

Na década de 60, na Jamaica, o rap era utilizado como um meio de reivindicar políticas públicas voltadas para empregos para os jovens. Os rappers eram convidados para rimar sobre a realidade dos jamaicanos naquele momento. Tais rimas eram citadas em reuniões sindicais que tinham objetivo de buscar melhores condições de vida para a população marginalizada.

No final da década de 70, nos Estados Unidos, o rap surge como movimento juvenil hip hop, mas é no Bronx, em Nova York, que esse movimento ganha força como propósito artístico-político. Logo, as comunidades afro-americanas fazem do hip hop um movimento em busca dos direitos negados a eles. Nesse momento as questões de desemprego, serviços públicos e violência urbana eram os principais temas presentes nas rimas.

No fim da década de 80 na cidade de São Paulo, no Brasil, algumas práticas culturais iniciam a ser nomeadas como hip hop (SILVA, 1998). É no bairro de Roosevelt que o movimento se volta para o rap e estes grupos são fortemente influenciados por grupos norte-americanos no sentido de utilizar as letras das rimas como algo político. Logo, os rappers brasileiros se aprofundam nas questões de luta de classes e igualdade de direitos para a população marginalizada.

Segundo Silva (1998, p.24):

Os rappers afirmaram, desde o início, a condição de "anti-sistema". Promoveram, sobretudo a crítica à ordem social, ao racismo, à história oficial e a alienação produzida pela mídia. Construíram mecanismos culturais de intervenção por meio de práticas discursivas, musicais e estéticas que valorizaram o "autoconhecimento".

O embranquecimento da música continua sendo uma realidade e, ainda que existam tantos MC’s brancos, o rap continua sendo um gênero da negritude por excelência. A maior parte dos grupos mais influentes, bem como os novatos, continua denunciando o racismo estrutural. Nesse sentido, os MC's utilizam o rap historicamente como meio de protestar e levantar suas vozes para que seus pares ouçam e se identifiquem pelos mesmos meios que os excluem. Ou seja, o rap era e ainda é a maneira de expor a realidade do contexto no qual essa comunidade que denuncia está inserida.

Mas as composições não são apenas denúncias, pois, quando os jovens se reconhecem na realidade descrita no que escutam, isso gera pertencimento, eleva a autoestima, transforma o sentimento de derrota e angústia em revolta e desejo de mudança. Desta forma, o rap, incentiva também a formação de novos grupos, num cenário da sociedade de consumo voltada para a individualização da consciência, é como se ele trouxesse nas suas vozes, o eco de todas as vozes anteriores das gerações silenciadas pela cultura dominante. Cultura esta que detém os meios de comunicação em massa, e com esses veículos midiáticos transpassam seus costumes e entendimentos acerca da realidade que se quer apresentar.

Ao cantar as mazelas e o desconforto do mundo circundante, os rappers encontram ressonância junto às suas comunidades para criticar alguns dos pilares de sustentação da cultura Ocidental: Democracia, Liberdade, Justiça e Cidadania. Evidenciam, assim, a pouca importância e o pouco significado que estes conceitos têm para as suas vidas. (SOUZA apud SANTOS, 2013, p. 21) 

 

Também é válido ressaltar que, atualmente, os MC’s vêm trazendo conteúdos para além dos cenários comuns, estatísticos das classes marginalizadas, apropriam-se de elementos da cultura elitista, dialogam com diversas linguagens da arte, produzem as próprias músicas e, dessa forma, tomam posse dos espaços que lhe foram privados na sociedade.

 

3 RAP É PRISMA: O CONCEITO DE REFLEXÃO E REFRAÇÃO PELO CÍRCULO DE BAKHTIN

 

Eu tive um sonho em que as ruas do meu bairro
Eram um reflexo com poucos detalhes do mundo
Eu tive um sonho que meus versos criavam vida
 E perambulavam vagarosamente pelo mundo

Victor Xamã

Para se aprofundar na pesquisa a respeito do rap, é notória a necessidade de fazê-lo a partir de uma abordagem integral, considerando o dialogismo presente em cada manifestação discursiva, portanto alguns conceitos desenvolvidos pelo círculo de Bakhtin e toda sua representatividade histórica se tornaram o norte deste trabalho. Sendo assim, é oportuno fazer uma breve apresentação.

Mikhail Mikhailovich Bakhtin foi um teórico da cultura europeia e das artes, filósofo e pensador russo. Com escritos em diversos assuntos, Bakhtin foi um grande pesquisador da linguagem humana. Tais escritos inspiraram os trabalhos de estudiosos em diferentes perspectivas - a semiótica, crítica religiosa, marxismo, estruturalismo – e em disciplinas como a Filosofia, História, Crítica literária, Antropologia e Psicologia.

Embora se apresentasse de forma ativa nos debates das temáticas de literatura e estética, na União Soviética, o autor não obteve sua posição de destaque na década de 1920. Esses grupos de debate, muito presente na cultura russa da época, se chamavam círculos. Tais círculos discutiam assuntos variados, como os escritos do poeta russo Puchkin até literatura, religião e filosofia. Bakhtin teve seu reconhecimento pelos estudiosos russos na década de 1960. Foi o fundamentador de conceitos como a polifonia, cronotopo, menippea, cultura cômica e carnavalização. Também desenvolveu a teoria de uma cultura universalizada abrangendo o humor popular.

Bakhtin foi o líder intelectual dos estudos desenvolvidos no grupo conhecido como “Círculo de Bakhtin” no qual discutiam temáticas de cunhos científicos e filosóficos. Como resultado destes debates, citamos a produção mais inovadora do grupo que foi perceber que a linguagem é um processo que interage, de forma constante, mediado pelo diálogo e não como um sistema autônomo. O que, de forma coerente, gerou bastante polêmica em relação à autoria, assunto que o filósofo evitava discutir. Bawarshi e Reiff (2013) aprofundam nosso conhecimento nessa temática ao dizer que:

No âmago da visão dialógica de gênero defendida por Bakhtin (1986), está a distinção que o autor faz entre frase como “uma unidade da língua” que é gramaticalmente presa e existe isoladamente, fora de uma esfera de comunicação. A frase é uma unidade gramatical que não evoca uma reação responsiva. O enunciado, por sua vez, é uma “unidade comunicativo-discursiva” inerentemente responsiva e ligada à mudança de sujeitos falantes. [...] O essencial, para Bakhtin, é que os enunciados se relacionam dialogicamente com outros enunciados. E, uma vez que constituem enunciados tipificados, os gêneros também se relacionam dialogicamente com outros gêneros. (BAWARSHI; REIFF, 2013, p. 70)

 

Portanto, numa perspectiva bakhtiniana, não há enunciado sem interação entre os sujeitos. Além disso, o enunciado dialoga com outros enunciados já produzidos e resulta um ato responsivo ativo, chamado compreensão. Volóchinov (2017, p. 232) cita que “toda compreensão é dialógica. A compreensão opõe-se ao enunciado, assim como a réplica opõe-se a outra no diálogo. A compreensão busca uma ant-palavra à palavra do falante”.

Portanto, a enunciação serve como um prisma, pois reflete e refrata a experiência social do indivíduo.  Nesse sentido, refratamos a partir de nossas preferências e juízos preestabelecidos, os quais não representam um “eu” e sim um “nós” – indivíduo e sociedade. Ou seja, na visão bakhtiniana, nossas relações são mediadas por meio de signos carregados de pré-significados.

Todas as palavras carregam uma significação, portanto, não são neutras ou puras. Quando a palavra é enunciada ao mundo, num espaço público, carrega com ela todo o pluralismo proveniente dos indivíduos que a enunciaram e a refrataram, agregando cada vez mais significados. Podemos dizer que esta é uma definição exemplificada de refração, Faraco (2009, p. 50-51) esclarece que:

“Refratar” significa, aqui, que com nossos signos nós não somente descrevemos o mundo, mas construímos – na dinâmica da história e por decorrência do caráter sempre múltiplo e heterogêneo das experiências concretas dos grupos humanos – diversas interpretações (refrações) desse mundo.[...]. Em outras palavras, a refração é o modo como se inscrevem nos signos a diversidade e as contradições das experiências históricas dos grupos humanos. Sendo essas experiências múltiplas e heterogêneas, os signos não podem ser unívocos (monossêmicos). A plurivocidade (o caráter multissêmico) é a condição de funcionamento dos signos nas sociedades humanas.

 

A enunciação possui um movimento dialético que apresenta signos que são compreendidos apesar de carregar consigo a individualidade de cada enunciador. Ou seja, quando um indivíduo se comunica, este não está sozinho, pois carrega em seu discurso ações e gestos de toda uma organização social. Sendo assim, a sociedade é resultado dessa organização social, pois “..adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de suas relações sociais” (BAKHTIN, 1992, p. 36).

Ainda em relação à refração, o autor afirma:

Toda refração ideológica do ser em processo de formação, seja qual for a natureza de seu material do significante, é acompanhada de uma refração ideológica verbal, como fenômeno obrigatoriamente concomitante. A palavra está presente em todos os atos de compreensão e em todos os atos de interpretação. (BAKHTIN, 1992, p. 38).

 

O indivíduo, sendo fruto de uma organização social, tem sua consciência moldada pela sociedade e pelos vários significados que carregam em seu enunciado. Assim, o mundo é estruturado pela refração, resultado de diversas interpretações, uma vez que as palavras são propícias a carregar em si novos significados.

Ressaltamos que o signo ideológico se constitui de valores de diversas vozes de momentos sócio-históricos e do próprio momento que se dá a enunciação. A ideologia constitui essa carga de valores. Sendo assim:

Todo signo resulta de um consenso entre indivíduos socialmente organizados no decorrer de um processo de interação. Razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece. (BAKHTIN, 2009, p.45)

 

O Círculo de Bakhtin observou a língua lidar com influências naquele contexto social, marcado pela luta de classes e pela ideologia que a classe dominante impõe. Assim acontece no contexto atual. É por isso que a visão bakhtiniana torna-se a mais propícia para investigar o rap como fenômeno que representa essencialmente a coletividade, com valor ideológico, em união por valoração.

Destacamos uma conceituação do Círculo sobre a língua na qual é citado que as visões de mundo não se desvinculam da linguagem e a ideologia é vista como algo imanente à realidade concreta do falante e é indissociável da linguagem. Como exemplo desse fenômeno transcrevemos a música “Artigo 157”, do grupo Racionais MC’s quando é entendida de formas muito opostas dependendo da classe social do ouvinte. Ademais, a música em questão demonstra a ressignificação da palavra - que é dependente dos discursos - pois o refrão: “Hoje eu sou ladrão, artigo 157. As cachorra me amam. Os playboy se derretem”, que introduz a composição e é cantado de maneira orgulhosa repetindo várias vezes como se a realidade estivesse exaltando a  si mesma, para ser notada nos aspectos os quais a condiciona.

 Fora inserido nos signos ideológicos, um contexto atípico, entonações emotivas que dialogam com o cenário que se apresenta através de fatos, quando se olha para além do que se está dizendo na letra da música, percebe-se uma conotação completamente diferente no desfecho da narrativa apresentada, trazendo um sentimento de nostalgia, em conexão com o contexto externo, social, e, em consequência, com elementos extralinguísticos, leva o ouvinte a perceber o destino comum dos jovens marginalizados que têm como exemplo e referência a vida no crime.

 

4   EMOTIVO-VOLITIVO: O ATO RESPONSÁVEL 

 

O mundo da arte, pois este “com a sua concretude e impregnação de tons emotivo-volitivos é, de todos os mundos... o mais próximo ao mundo unitário e único do ato responsivo e responsável”. Contudo, “arte e vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim, na unidade da minha responsabilidade”. (BAKHTIN, 2003, p. 34). De acordo com Bakhtin (2003), o ser autor sendo o canal que conecta os dois mundos, tem à disposição as variadas vozes que perpassam entre eles. Dado isto como verdade, é possível dizer que o texto literário, no nosso caso a música, decorre dessas múltiplas vozes que antecedem a individualidade do autor, porém recebem influências diretas da sua consciência que é atuante em um contexto único correspondendo uma realidade concreta, em um dado momento histórico.

Como "Froid" referência ao Freud, pai da psicanálise, se apresenta como Renato, morador de Brasília. Em entrevista dada ao rap box, programa de entrevistas veiculado online, Froid disse que seu primeiro contato com o rap foi no ensino médio, onde conheceu Sampa (Henrique). Ambos começaram a fazer rimas improvisadas para ironizar os colegas de turma. Daí surgiu a ideia de criar o grupo "Um barril de rap". Uma alusão a barril de pólvora, algo que está prestes a explodir. Logo depois, o grupo ganhou mais dois integrantes Yank, e Distinto. E, coincidência ou não, foi o que aconteceu. Em menos de três anos, o grupo tomou proporções nacionais, suas letras, que não se limitavam apenas a um estilo rítmico, trazem à cena do rap assuntos como filosofia, religião, sociologia, e diversos outros que são relevante para conscientização da juventude periférica, como globalização, aborto, racismo, e o principal, que em minha concepção, é a relação de causa e consequência que estes jovens estabelecem consciente e inconscientemente com essas questões.

Por ter sido o articulador das ideias, produtor e compositor de suas músicas, exercendo o trabalho de engenheiro musical e algumas vezes de diretor e roteirista, dirigindo seus próprios videoclipes num processo totalmente autônomo e sem recursos, iremos dar enfoque nas letras de quem é considerado idealizador do grupo. Foi destacada, a música ‘pseudosocial’ composta pelo rapper em 2016, em outra entrevista online, o artista disse que compôs ainda quando cursava história na Universidade de Brasília. A canção veio acompanhada de um videoclipe com uma produção simples, sem efeitos especiais, gravado dentro do que parece ser um minimercado ou talvez uma loja de conveniência. O flow – ritmo – acompanhando uma batida lenta, a voz grave num tom de suspense, nos remete suavemente a um canto litúrgico, mas sem se afastar em momento algum da essência do hip hop. Esta concepção se faz relevante porque a letra expõe de forma satírica as contradições advindas da ocidentalização e, também pelo breve período que o rapper esteve em contato com o contexto acadêmico. E como o próprio rapper já disse ser bom de sátira numa outra música em que também denuncia com ironia o modo privado com que a cultura ocidental tem construído suas bases, optamos por arriscar esta leve associação.

A música obteve uma grande repercussão no cenário do rap nacional, atingindo mais de 30 milhões de visualizações no youtube. Essa recepção abriu um leque de novas possibilidades no que desrespeito às concepções de ritmo e poesia no gênero.

Vocês são a podridão

“Tão” precisando me ouvir

Apoiaram a escravidão, elegeram Sarkozy

Fizeram a religião, muros com caco de vidro

E o meu mano 'tá doidão com a sua pílula de ecstasy

 

Note que na primeira estrofe o autor anuncia a presença de um sujeito discursivo na frase: "Vocês são a podridão". O verbo “ser” na terceira pessoa do plural fazendo uma metáfora direta caracteriza um estado de permanência desse sujeito, que só existe em forma abstrata, em contraste com a enunciação e contexto o qual se enuncia. Não é possível notar nenhuma característica peculiar do enunciador; e deste outro sujeito, só o que pode ser associado à palavra podridão. Porém, a ênfase do tom dado à palavra “podridão” desperta a curiosidade do ouvinte por mais características deste sujeito.

O segundo verso soa como uma deixa: "Tão precisando me ouvir”. É notório que está se referindo diretamente ao mesmo sujeito, mas também passa expor a individualidade do (ser autor) ou ao menos um aspecto das variadas tendências do contexto único em que ele habita enquanto ser único responsável por sua realidade concreta e única. Temos como exemplo a falta de diálogo entre pais e filhos. Essa concepção será explicada um pouco mais adiante.

 Assim, em cada novo verso o autor-personagem vai explicitando mais desse sujeito. Nota-se também que não há a intenção de revelar diretamente quem o é. Então o delineia, apontando suas ações apresentando ícones de um cenário que nos remete a momentos históricos, como a escravidão, que no Brasil ainda é muito recente. Também cita a eleição de Sarcuzy e a fundação da igreja em Roma. Note que o mesmo sujeito está presente em três momentos históricos importantes para o restante do mundo, e no último verso em que diz: “E meu mano tá doidão com sua pílula de ecstasy”, apresenta consequências que surgem da falta de diálogos, do conservadorismo dos mais antigos para tratar temas como drogas, religião, preconceitos. Daí, então, podemos perceber que as ações que antecedem a individualidade do autor influenciam diretamente no enunciado.

O Clero regular fundou centros independentes, com a estrutura econômica dos latifúndios, mas sem relação com o poder político: os grandes conventos. Daí surgiu uma classe de clérigos capazes de conceber e exprimir o espírito da época. Economia sedentária, capital imobilizado e horizontes marítimos fechados produziram fatalmente uma concepção fechada do mundo. Um mundo espiritual, fechado dentro dos muros sólidos da disciplina monacal, comparáveis aos muros sólidos das igrejas-fortalezas do estilo românico. Dentro desses muros eclesiásticos havia uma vida independente: a vida da liturgia. os cultores da liturgia são os monges. Em certos conventos europeus, o canto litúrgico não cessou um dia só, durante mais de mil anos. (CAPEAUX, 2012, p. 23)

 

Ainda na primeira estrofe, o compositor cita o presidente francês envolvido em diversos escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro, e mesmo assim, ainda eleito democraticamente pelo "mesmo sujeito" que antes apoiou a escravidão e fundou a religião no mesmo lugar - referindo-se a igreja judaico-cristã. Usa "muros" para ilustrar, não só o cenário, mas também para demonstrar as barreiras de uma cultura fechada, uma estrutura hegemônica que do seu ponto de vista se faz apodrecida, incapaz de se abrir para outras concepções de mundo.

Tudo que é realmente experimentado como algo dado e como algo-ainda-a-de-ser-determinado. É entonado. Tem um tom emocional – volitivo e entra em relação efetiva comigo dentro da unidade do evento em processo que nos abrange. Um tom emocional-volitivo é um momento inalienável do ato realmente executado, mesmo do mais abstrato pensamento: na medida em que eu esteja realmente pensando nele, isto é, na medida em que ele seja realmente atualizado no ser torna-se um participante do ser em processo. (BAKHTIN, 2012, p. 50-51)

 

De acordo com Bakhtin, podemos dizer que toda palavra recebida pelo ser em processo é decorrente de ações motivadas por certos valores emotivos condicionados pelo meio em que este vive e atua enquanto ser presente em um contexto único a cada momento de sua atividade humana. Sendo assim, o tom emotivo volitivo de cada expressão surge da percepção individual do conteúdo valorativo do objeto em questão.

Visto isto, é possível dizer que palavras expressadas, por exemplo, no período da renascença eram compostas por certas cargas emotivas de uma relação responsiva ao contexto, e que sofria alteração a cada ato do ser único em processo. Sendo assim, para uma palavra estar em contato direto com a realidade, é preciso que o ser em processo tenha percepção da totalidade de seu conteúdo, é dessa percepção, que pode surgir uma atualização responsável acerca dos valores psicológicos e concretos que constituem o conteúdo real de determinada palavra ou expressão. 

Pensar no rap é pensar nas múltiplas vozes do cotidiano, nas variedades de expressões cheias valores emotivos, é refletir sobre o que há de vir a partir da realidade que se apresenta a cada um, e ainda assim, buscar uma unidade na comunicação verbal, desconstruindo conceitos estabelecidos e atualizando-os ao sabor da juventude, de modo com que esta possa atuar nas causas sociais de uma maneira responsiva e responsável e construir uma realidade não indiferente ao outro.

Destacamos alguns versos para mostrar que além de comunicar aos seus iguais, também são dadas referências conhecidas no contexto acadêmico nestes dois versos de MC’s de São Paulo e Rio de Janeiro. Podemos perceber uma atualização do pensamento do filósofo considerado o pai da filosofia moderna:  René Descartes. Pedro Qually de São Paulo cita: “Penso logo existo e minha existência é rude, não me baseio em presságio eu me baseio em atitude”. Neto, também de São Paulo compôs o seguinte trecho: “Aprisionado a mania de analisar conflitos, encontrar motivos, percebo logo existo”. E, por fim, Soneca - Gunjahclan da Baixada Fluminense, conclui: “Os dias passam horas se estendem nunca entenderão cabe a você ser ou não uma eterna servidão”.

Observamos que a primeira e a segunda frase interagem com o mesmo objeto, de pontos de vistas diferentes e também em tons diferentes, porém se alinha perante o mesmo objetivo em questão, o terceiro verso faz uma referência ao renomado poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare, e por trás das referências, há também o motivo do enunciado, que é demonstrar que os pensamentos que fucionaram até hoje como bússola para a sociedade ocidental precisam ser contestados, para que possa haver novas perspectivas e integre o imaginário coletivo da cultura, construindo suas próprias memórias emotivas, e questionamentos filosóficos em contraste aos que foram impostos como verdade absoluta, e em consenso com os que possibilitam a construção de um contexto que a comunicação aconteça em sua natureza intrínseca, que é inteiramente dialógica.

 

4.1 GUNJAHCLAN É BAIXADA FLUMINENSE

 

Os MC’s e grupos de rap da geração vigente como é de praxe na cultura Hip-Hop, estabelecendo uma relação de reconhecimento, pertencimento e construção de identidade, estimula que se perpetue e se transforme a cultura. Esse gênero musical, como já explicitado, permite que a interação entre autor-pessoa e autor-criador seja mais evidente. De modo que se faz de extrema relevância o círculo de Bakhtin para analisá-lo, pois as letras de rap revelam a realidade a partir da leitura de mundo de seu autor, constituída por suas vivências. E, portanto, é coerente se introduzir aqui que o rap busca uma comunicação de alteridade, comunicando diretamente aos seus iguais, de maneira que haja uma identificação não só pelo que se é dito, mas também por como é dito.

Desta forma, o autor deste artigo, residente de Belford Roxo, pretende dar visibilidade ao grupo de rap ao qual integra seu círculo social, por perceber a importância de introduzir sua cultura baixadense tão marginalizada ao meio acadêmico. O GunjahClan é um grupo de rap de Belford Roxo na Baixada Fluminense, formado por quatro MC's e um Beatmaker. É notável uma crescente ascensão no rap baixadense, alguns rappers já recebem reconhecimento de fora, porém ainda são desconhecidos dentro do próprio território.

A Baixada Fluminense tem mais influência do funk, samba, pagode e a melhor maneira de se informar sobre quais músicas e gêneros estão em alta entre seus moradores é estar atento ao que toca na rádio dos calçadões, que toda cidade que compõem essa área possuem. Raramente ouve-se rap. No entanto, há alguns nomes de MC’s baixadenses que estão conquistando a mídia nacional e até mesmo a nível internacional, como: Black MC, Dree Beatmaker, Doidão Beats, Marcão Baixada, Slow da BF, etc.

A importância destes artistas, propagarem informações sobre seu território e de construir questionamentos que ultrapassam os limites locais é de grande potência político-social. Como foi demonstrado ao longo deste trabalho, que o rap além de construir uma linguagem própria para falar de temas já conhecidos, também abre espaço para um diálogo acerca dos anseios da juventude periférica, para que estes jovens que carecem de representatividade nas grandes mídias sintam-se à vontade para exercer o seu direito à liberdade e expor um pouco de sua individualidade, que acaba representando  outros que vivem num contexto semelhante.

 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Apresentamos ao longo da pesquisa, na perspectiva de Bakhtin, as noções de reflexo e refração e sua influência no discurso. Entendemos que o meio social fundamenta a construção da língua, por meio da comunicação oral. Logo, todo discurso carregado de opiniões e influências é resultado da relação entre o indivíduo e o meio. Também apresentamos o dualismo existente entre o indivíduo e o meio, que consiste no dialogismo e carrega em si todas as crenças e opiniões formadas pelas relações cotidianas. Então, compreendemos que todo discurso carrega ideologias históricas de experiências passadas. No rap, observamos que esse discurso é alterado e ajustado à realidade de um determinado grupo facilitando a comunicação.

Destacamos, no quarto capítulo, as especificidades da construção da comunicação realizada por meio dos raps. Observamos que as letras carregam o retrato da realidade, vivida diariamente por um grupo, que são voltadas para o cotidiano periférico, as relações de poder e a crítica a uma sociedade opressora muitas vezes representada pela polícia, pelo sistema - que nega a existência desse grupo marginalizado - ou pela classe média/ alta. Portanto, os raps são apresentados a sociedade como um discurso de revolta e insatisfação assumindo, então, os rappers tomam para si a responsabilidade de se pronunciar e rebater os discursos reproduzidos por toda uma classe invisibilizada como ato de resistência. 

Entendemos que a ressignificação de palavras que carregam estigmas sociais, políticos e culturais, através do movimento rap, constrói uma comunicação interperiférica em relação à língua “padrão”, que se contrapõe ao contexto de dominação cultural. Levando-se em consideração o contexto colonialista, no qual uma das estratégias de domínio era o apagamento da língua nativa. Em outras palavras, a classe dominante tenta demandar um único discurso como correto, as classes subordinadas tendem a revolucionar esse fechamento monológico usando o rap como ferramenta.

Compartilhamos do pensamento de Soares (2015, p. 29) ao dizer que “a arma social de luta mais poderosa é o domínio da linguagem. É através dela que as classes dominantes dominam”. Dessa forma, o rap é uma ferramenta que viabiliza o conhecimento para toda uma classe oprimida e promove o despertar para romper o domínio, de herança colonial, sob o povo periférico. Logo, o rap, com seu caráter político-social, também é uma forma de influenciar, mas não dominar.

Percebe-se a importância da valorização da cultura dos territórios marginalizados em busca de emancipação como posicionamento diante da luta de classes. Sendo assim, o rap produzido na Baixada Fluminense é exemplo de criação de uma unidade cultural e linguística própria que recria as narrativas, aproximando os baixadenses da história de seu território.

Por fim, observamos que o material produzido por Bakhtin e seu círculo é extenso e nos deparamos com diversos conceitos que se complementam.

 Ao longo da pesquisa, discutimos sobre os efeitos da refração no discurso/enunciado e sua relação com o tom emotivo-volitivo. Entretanto, acreditamos que o objetivo principal e a pergunta norteadora do trabalho foram alcançados, dentro das possibilidades. Ressaltamos que por ser um material de estudo extenso, a pesquisa terá continuidade.

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6 REFERÊNCIAS

 

BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. 2.ed. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012.

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1992 [2009].

 

BAWARSHI, A. S.; REIFF, M. J. Gênero: história, teoria, pesquisa, ensino. Tradução de Benedito Gomes Bezerra. São Paulo: Parábola, 2013.

 

CARPEAUX, Maria Otto. A Idade Média por Carpeaux. Rio de Janeiro: LeYa, 2012.

 

Bakthin, Mikhail Gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 1ª ed, 2016.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola, 2009.

 

Racionais MC’s. Música: Artigo 157. Disponível em: Acesso em 14/11/2020.

 

SANTOS, Luiz Henrique dos. As letras de rap do movimento hip-hop como desdobramento do processo de segregação socioespacial: antigamente quilombos, hoje periferia. 2013. 103f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Estadual Paulista (Instituto de Geociências e Ciências Exatas) Campus de Rio Claro, São Paulo, 2013. Disponível em: Acesso em 15 nov. 2020.

 

SILVA, José Carlos G. Rap na cidade de São Paulo: música, etnicidade e experiência urbana. Campinas, 1998 (tese de doutorado): IFCH, Unicamp.

 

VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução e notas de Sheila Grillo e Ekaterina Volkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017

 

[1]  Aluno concludente do curso de Licenciatura em Letras Língua Portuguesa da Universidade Estácio de Sá.

[2] Professora orientadora do artigo da Universidade Estácio de Sá.