Crônica

            

                         A   PAPAGAIA    E   O  GALO

                                      Para Antônio Oliveira, contador de estórias

      

                                              Edevaldo Leal

 

                        Eu estava  dormindo , quando a gota  de gelo  caiu na minha testa . Assustado,  rápido como estrela que risca o céu, pulei da rede. Meu pai pediu paciência. Balde para aparar a goteira. Não seria nada, não. Só esperar  amanhecer . Goteira nunca mais. Promessa de pai.

                        O galo cantou. O dia amanhecia em Porto  Grande . O Sol, trancado, preso entre  nuvens . Chuva prometia não dar trégua, o balde já pela metade. “Hoje  raposa não sai da toca”, dizia minha mãe, preparando o café. E  a  mão grossa da chuva empurrava o Sol para  mais longe. Não cantasse o galo mais uma vez,  impossível saber que, em  meia hora ,se ouviria o badalar do sino da matriz .

                         A chuva batia forte no telhado da casa sem forro. Minha casa tinha um alpendre enorme.Varanda, dirão uns. Não seja por isso: minha casa  avarandada. Casa com varanda fica  melhor dito, não corro o risco de minha casa ser mal vista, que já vai dar o que falar só pela goteira que me tirou , ainda mais, sono de criança.

                          Feita a ressalva, prossigo. Não fui para a varanda, embora fosse meu lugar preferido em dias de chuva. Gostava de ver a correnteza da água na vala da rua,  pequeno rio que levava minha imaginação para  fantásticos e misteriosos passeios da minha mente.

                        O silêncio da papagaia preocupava. Manhã chegando, saía de sua casinha para os galhos do abacateiro e, lá de cima, do alto, cutucava com voz curta a paciência de quem ainda dormia. Corri  para a janela, de onde se via o imenso quintal, quintal daqueles tempos.

                            Enfrentar  chuva doida, graúda, ora  persistente, ora intermitente ? Teria saído antes?  Protegida por alguma invisível cobertura de  folhas , que só ela sabia localizar?  Como vê-la, verde pássaro  , entre o verde das folhagens? Meus olhos, luneta que se amplia para aumentar o foco da imagem, nada veem da papagaia.

                           No galinheiro, as galinhas  cacarejam, barulhentas. Ainda estão no  poleiro ,  exceto uma. Meus olhos em pausa, fixam-se  no galinheiro. A galinha não está só. Tem a companhia de um galo  feliz. A segunda galinha sai do  poleiro. Mais uma, outra. Debaixo das asas do galo, todas, uma a uma  , satisfazem-lhe o desejo sexual.

                            Rosa, em sua compreensível inquietação, já vendo correr o risco na pele, como diria João Antônio, começa a pensar numa forma de escafeder-se, sair de  fininho  . O galho do abacateiro, do outro lado do poleiro  , é o porto seguro de Rosa. Alcançasse o galho e o risco de ser agarrada à força, de ser mais  uma ,até que seria  divertida lembrança de jogo de caça e caçador. Sabia, não existe galinha verde, já ouvira isso uma vez.  Papagaio é  papagaio ,  galinha é galinha. Mas vá que o galo seja cego. Ou, não sendo cego, quisesse experimentar sabor de comida diferente, que galo que é galo não se conforma em comer só uma. 

                            A vida é feita de  tentativas . Rosa iria, pelo menos, tentar. Não iria se entregar assim, fácil,  de vontade própria.

                            E tentou.

                             Respiração presa no peito  ,  avança  , cautelosa. Nem precisava dizer: todo  poleiro é escorregadio. Os minutos passam.  Nervosismo  visível.  Mais um passo. Três, quatro . O outro lado, o da salvação, está próximo. O desafio é grande. Falta vencer  metade do poleiro. Um passo em falso e o  galo, nhaco,  papagaia  vira galinha. Meia vitória. O  galo , perigo lá embaixo , quiquiricava . Papagaio não é galinha. Mais um passo.  E o  inevitável escorregão acontece. O galo corre em círculo  em volta de sua presa . Insaciável desejo, arrastando asa, se prepara para dar mais uma  . De poleiro só cai  galinha .O galo ia dar a última da manhã. Ia. E, para fazer jus ao nome, atacou de galo pra cima da papagaia.  Ladina ,  Rosa levantou a perna e uma asa.E,meio  de banda, em posição de defesa, acabou com o fogo do galo:

                                  – Alto lá, safado. Tu já viste galinha verde?

                       

                                          Ananindeua/Pa,27 de fevereiro de 2013.