A origem da universidade na Idade média e sua constituição universalista

Por Luciane Miranda de Paula

Desde o século XI até a primeira metade do século XII, as escolas catedralícias se encarregavam do ensino. A burguesia estava em ascensão na segunda metade deste século, e, em função da proliferação das cidades, houve uma mudança radical. Os estudantes provenientes da burguesia eram filhos de pais que exigiam objetivos mais práticos; dessa forma, as escolas viram-se obrigadas a expandir o ensino. Surgem, então, os mestres carismáticos, e os estudos ganham novos conteúdos, tornando-se mais relevantes às novas condições socioeconômicas.
A força do movimento das corporações também contribui para o surgimento de nova força educativa. Há, então, agrupamento dos estudantes por nações e dos mestres numa única corporação, que posteriormente será chamada de universidade. Tratava-se, portanto, de formar quadros para uma nova estruturação da sociedade. Advogados, mestres clérigos deveriam preencher as necessidades da administração civil e eclesiástica. No entanto, as escolas catedralícias não foram estruturadas com essa finalidade.
A Europa crescia em termos de população e complexidade social, exigindo, portanto, uma maior organização em uma sociedade já competitiva e fechada. É nesse cenário que os estudantes já procuram uma admissão e aceitação.
O sistema viável seria o de corporações que dessem condições de regularizar a instrução e garantir a manutenção de normas que proporcionassem uma formação sólida.
O Terceiro Concílio de Latrão (1179), sob a condução de Alexandre III, manda cada catedral ampliar as instituições já existentes e também proporcionar o ensino gratuito. Em 1252, Inocente III repete o mesmo decreto, pois até em locais como Chartres, Paris, Lyon, Reims, Liège e Orléans, onde havia escolas, faltava uma base institucional firme. A qualidade e o conteúdo do ensino dependiam muito do mestre individual, sobretudo do mestre itinerante, cuja fama pessoal se tornava motivo de atração para as massas estudantis.
Paris foi uma das primeiras corporações a se formar no decorrer do século XIII e serviu de protótipo para as outras. Ela surgiu da antiga escola catedralícia de Notre Dame, da escola colegiada de Santa Genoveva e da escola de São Vítor. As disciplinas que aí predominam, caracterizam suas origens como a Filosofia e Teologia.
Em 1150, aproximadamente, forma-se a corporação e, já no início do século XIII, firma-se a organização: falava-se em Universitas Magistorum Parisiensis (a Corporação dos Mestres Parisienses), que já no século XII adquire o título de Estudos Gerais (Studium Generale), ou seja, um local de estudos que aceita estudantes de todas as nações. Havia uma organização dos estudantes por nações, em uma medida de auto-proteção contra as pressões dos mestres e dos professores e também como uma medida de autodisciplina. As nações agrupavam-se no bairro latino, onde, além das residências, encontravam-se as salas de aula. O programa de estudos era, então, organizado com base nas Artes, o que constituía o primeiro grau obrigatório. Depois, o estudante escolhia uma especialização em Teologia, Direito ou Medicina. Depois de completar o curso de Artes Liberais, núcleo obrigatório para o estudante recém-saído da escola gramatical, o estudante ouvia lições (Leciones) sobre Lógica antiga e nova, os Tópicos de Aristóteles, a Gramática de Prisciano e Donato, junto com algo do quadrivium. Porém, era explicitamente proibida a leitura da Metafísica de Aristóteles. Sete eram as disciplinas compreendidas pelo trivium e quadrivium, a saber: gramática, dialética, retórica, música, aritmética, geometria e astronomia.
Na segunda metade do século XII, há um protesto, que se inicia na universidade de Paris, o qual gira em torno da questão da questão do direito das universidades, expressa num documento de 1255, de ensinar as obras recém-descobertas, e supostamente heréticas, de Aristóteles, sobretudo os tratados sobre a Metafísica e a Física. A independência universitária é fundamental; mas, para as autoridades com as quais a universidade trava disputa, a questão é outra. Trata-se de saber se, ao aceitar o ensino da filosofia natural aristotélica, permitindo assim o questionamento da metafísica agostiniana, base do ensino vigente até então, não estaria aberto o caminho para o desenvolvimento de explicações totalmente naturalistas e racionais do universo, o que destruiria as pretensões das autoridades religiosas de ensinar a verdade.
Entretanto, do ponto de vista político, Roma precisa da Universidade de Paris, pois, além de representar uma instituição importantíssima na vida intelectual da Europa, ela exerce uma autoridade, baseada na força da corporação, que pode influir na política real. Portanto, o Papa vê na Universidade de Paris uma aliada poderosa e importante nas lutas contra as pretensões políticas dos seus inimigos.
O confronto entre mestres seculares das faculdades de Artes e de Teologia a respeito da conveniência da presença aristotélica assume a forma de um confronto entre o neo-platonismo agostiniano, que tem como posição a verificação de novos conhecimentos que vêm pela intervenção de Deus, iluminando a mente do aluno, e o aristotelismo cristão. O pano de fundo dessa controvérsia é a questão cosmológica.
Trata-se de um debate único na história da educação; é uma disputa que envolve toda a Europa no norte e prolonga-se desde o século XI até o século XIV. A escolástica, que procura de uma explicação metafísica do universo e do relacionamento do homem com esse universo, é a resposta a uma necessidade real. Ela procura reconciliar posições divergentes e aparentemente contraditórias, visando a uma organização coerente e racional de todo o conhecimento humano, como parte de uma visão total do universo.
Enquanto as universidades, na França e na Inglaterra, deviam suas origens à Igreja, na Itália, as origens das universidades eram seculares, motivadas pelas necessidades práticas da burguesia urbana. Por essa razão, nelas predomina, sobretudo, o Direito. É este o caso de Bolonha, Ravena, Pádua e Roma. Desde a segunda metade do século Xl, Salermo se tornou centro de estudos de Medicina. Ali se estudavam as obras de Galeno e de Hipócrates, autoridades gregas, como também o mestre árabe, Avicena.
Nas universidades ou Estudos Gerais de Paris, e também nas universidades de Oxford e Cambridge, a faculdade de Teologia é a mais importante de todas; nela os mestres predominam.
O sistema de organização e de ensino nos Estudos Gerais de Bolonha segue os moldes de resposta aos anseios municipais, ou seja, à necessidade de juristas e administradores. A estrutura será predominantemente estudantil, pois são os estudantes que dominam a corporação dos mestres, ditando-lhes o ordenado, os métodos de ensino e até as exigências para a colação do título. Os mestres faltosos eram multados tanto por não comparecerem às aulas quanto por fazerem digressões da matéria prevista. O mestre devia depositar determinada soma num banco local, e dessa soma cobravam-se as multas. Se o mestre se mostrava reincidente, corria o perigo de ser expulso. Tratava-se de um quadro bem diferente daquele que prevalecia nas universidades francesas e inglesas, pois o único recurso dos estudantes, naquelas universidades, era a retirada em massa do curso do mestre faltoso ou incompetente.
Em Bolonha, os estudantes também se organizam em nações, pois os estrangeiros não são protegidos pelas leis locais, e elegem seus próprios reitores. Portanto, têm consciência de seu valor e de sua importância para a cidade, e conseguem voz decisiva no governo dos Estudos Gerais, inclusive o direito de nomear mestres, aos quais resta o direito de ministrar os exames e de admitir novos membros à corporação.
A predominância do Direito e da Jurisprudência em Bolonha é continuidade das fundações da época romana, sendo estimulada pelas circunstâncias econômicas e sociais em vigor no século XIV.
Além dos modelos parisiense e bolonhês, surgiu também o modelo anglo-escocês. A característica especial desses Estudos Gerais era a criação de hospedarias que forneciam alimentação e moradia para os estudantes. De fato, as primeiras iniciativas nesse sentido foram tomadas em Paris, por volta de 1257, graças a doações como as de Roberto Sorbonne, de quem o famoso colégio recebe o nome. Os colégios parisienses eram essencialmente domicílios para os estudantes, com um mestre na direção.
Na Inglaterra vigora outro regime. Era costume o mestre residir junto com os estudantes e dar aulas dentro da moradia, bem como cuidar da disciplina. Dentro de pouco tempo esses colégios começam a receber doações, sendo-lhes reconhecidos certos direitos. Portanto, começam a assumir caráter especial. Quando os mestres começam a ministrar aulas normais, dentro dos recintos do colégio, e não mais numa sala à parte, as autoridades dispensam as aulas do colégio, que vem a identificar-se com a própria universidade.
É importante ressaltar o contexto em que se passava todo esse movimento de surgimento da universidade. No período de 1110/1180, o ideal do educador criativo é o homem formado nos estudos clássicos, possuidor de uma visão que liga o passado histórico ao presente. É esse o homem melhor preparado e equipado para tratar dos problemas do presente e do futuro, sendo que esse ideal se concretiza na pessoa do clérigo, cuja qualidade principal pode ser expressa pela palavra civilidade (civilitas). Essa é uma época em que o Estado é uma realidade orgânica, governada por leis naturais e derivadas da criação divina. Em termos de estrutura política, o Estado é comparável à cabeça; a ordem cavalheiresca, às mãos; e os operários, aos pés. Sustentando o corpo todo, dando-lhe forma, está a Igreja, á qual, diferentemente do Estado, compete exercer toda e qualquer atividade de criatividade intelectual ou social.
Ainda nesse tempo, o comportamento do homem educado no relacionamento social manifesta-se nas simples ocorrências da vida diária, mas fundamenta-se em princípios filosóficos, os quais, por sua vez, derivam das Sagradas Escrituras. O homem educado mantém o equilíbrio entre as qualidades éticas, morais, intelectuais e estéticas. De autoria de John Salisbury, o Policraticus é obra preparatória para o tratado Metalogicon, obra que, em termos concretos, trata de esclarecer o papel que a Dialética e a Retórica devem desempenhar no processo educativo. O aluno precisa aprender a articular-se e desenvolver-se através da faculdade da razão, a qual se explicita na eloquência, que traz à luz aquilo que, de outra forma, ficaria imerso na interioridade recôndita da consciência.
No entanto, a eloqüência sem sabedoria é fútil; portanto, a Dialética deve aplicar-se a assuntos reais, fornecidos por outros estudos. É necessário ler outros historiadores, oradores, autoridades sobre a Matemática, a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música. Dentro desse princípio, a ciência da expressão verbal correta é a Lógica, que trata dos elementos da linguagem e da ciência da argumentação. O homem consegue compreender o mundo graças à sensação e à imaginação, sendo que do conhecimento assim alcançado deriva a verdade, mediante processo de raciocínio e demonstração.
Em 1214, a Universidade de Oxford, em uma associação de mestres que nasce por volta de 1200, lhes outorga os privilégios pontificais, logo confirmados e definidos pelo rei; essa associação fazia dela uma verdadeira universidade, bastante autônoma sob o controle distante do bispo de Lincoln, representado ali por um chanceler escolhido entre os doutores.
Os conflitos constantes, internos ou com autoridades externas, traduziram-se na partida voluntária de grupos de mestres e de estudantes. Assim, novas universidades nasceram por desmembramento, mas somente duas delas mostraram-se duráveis: Cambridge, desde 1209, nascida de uma migração oxfordiana, e Pádua, fundada em 1222 pelos doutores e estudantes foragidos de Bolonha.
A reunião de mestres e alunos com o intuito de assegurar o ensino de um determinado número de disciplinas em um nível superior traduzia uma instituição que era a criação específica da civilização ocidental, nascida na Itália, na França e na Inglaterra no início do século XIII. Esse modelo de instituição tornou-se elemento central dos sistemas de ensino superior, com vicissitudes múltiplas, e perdura até hoje.
Presa à estrutura que criou ao longo de seus primeiros séculos, a universidade não foi a casa dos seus grandes descobridores e conquistadores. Para inventar a navegação, o infante Dom Henrique teve de criar uma escola especial em Sagres, em vez de aproveitar o conhecimento da universidade de Coimbra. Parecia que a universidade ficara tímida e temerosa de ver o novo mundo que surgia do conhecimento que ajudara a gerar.
A universidade, que foi criada para se pensar livre dos dogmas, avançou nos métodos interpretativos, no conhecimento filosófico, no pensamento científico inicial, mas estancou quando este pensamento precisou ir além do que os gregos tinham criado.
Essa concepção clássica de universidade que conhecemos hoje nos permite e nos incita a uma adequação constante às demandas da sociedade moderna, diferindo efetivamente dos primórdios de sua criação.
Uma das realizações mais significativas da Idade Média é a "Universitas", que colaborou para o desenvolvimento da sociedade, sendo que o caráter notável, próprio das universidades, no medievo, é sua internacionalidade: professores e estudantes de todas as nações européias usufruíam, praticamente, os mesmos privilégios e direitos.