A NECESSIDADE DE DESMILITARIZAÇÃO DA POLÍCIA: O DESACATO COMO ATO DE CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS[1]

 Natália Cardoso Xavier e

Rayssa Nayhara Souza Furtado[2]

João Carlos da Cunha Moura[3]

RESUMO

O presente trabalho tem a finalidade de explicar a forma de polícia existente no Brasil e necessidade de uma transição. Pretende demonstrar também o crime de desacato, a sua redação no Código Penal, a sua real finalidade e a forma como vem sendo utilizado por aqueles que tem esse “privilégio”. Diferenciar a polícia militarizada da polícia cidadã de modo que demonstre a necessidade dessa transição e os benefícios que com ela virão, porém para se conseguir isso será necessário todo um processo para adaptar não só esses funcionários públicos, mas também a sociedade. E por fim, demonstrar que muitas vezes o crime de desacato tem a sua finalidade desviada, sendo usado como forma de criminalizar os movimentos sociais.

1 INTRODUÇÃO

O índice de movimentos sociais se torna crescente no dia-a-dia, onde, em um país democrático, a população vai as ruas em busca dos seus direitos expondo suas opiniões. Em contrapartida, o que vemos são policiais com repressão extrema às condutas dos manifestantes, que, mesmo com uma reivindicação pacífica, em algumas ocasiões esta guarda militarizada, como forma de imposição de respeito, criminaliza os movimentos sociais principalmente com a detenção pelo crime de desacato.

É viável destacar que, o crime de desacato possui a finalidade de proteger os funcionários públicos de agressões verbais relativas ao seu cargo, entretanto, o que vemos, caracteriza um desvio de finalidade do crime para justificar tais repressões abusivas por parte dos policias as condutas nos movimentos sociais.

A proposta de desmilitarização consiste na união das duas formas de polícia, a Militar e a Civil, a fim de que constituam um único grupo policial, pois, como poderá ser averiguada ao longo dos capítulos da presente pesquisa, a militarização policial sofre grandes críticas no que tange ao treinamento das forças armadas, vez que, acabam por incidir no desrespeito aos direitos humanos daqueles que sofrem as repressões, muitas vezes abusivas, dos policiais que dizem atuar a fim de garantir a ordem social.

Deste modo, menciona-se no que tange a presente discussão do tema, voltada para a desmilitarização da polícia por consequência da prática do uso abusivo da força, que em uma situação de resistência de grupos de movimentos sociais, utilizam-se da argumentação de "desacato à autoridade" para criminalização das condutas destes.

Sendo assim, verifica-se que a democracia e a liberdade de expressão estão em risco quando mais uma vez se evidencia a tentativa de deslegitimar e criminalizar os movimentos sociais que resulta na indignação popular. A luta pelos direitos humanos fortalece a democracia. Desta forma, pertinente se faz analisar até que ponto o meio de aplicação de garantia da ordem social e segurança pública utilizada pela polícia militar, está devidamente enquadrada dentro dos parâmetros de seus limites, desde que ocorra de modo a garantir, concomitantemente, os direitos dos manifestantes, além de compreender o posicionamento da sociedade brasileira em face da criminalização dos movimentos sociais sob o pretenso desacato, resultante da prática de força policial militarizada.

Busca-se, na presente pesquisa, identificar e entender no que consiste a desmilitarização policial, após uma análise de suas formas existentes e como é treinada para trabalhar e garantir a “segurança pública”; como também, elencar posicionamentos sobre o tema em questão, debatendo acerca da motivação que resultou na instituição do crime de desacato que vem a cada dia perdendo sua finalidade; e, por fim, expor as possibilidades e necessidades de inserção desta nova prática de desmilitarização da polícia, frente a ponderação do desacato como crime ou ato de resistência nas situações dos movimentos sociais.

2 AS FORMAS DE POLÍCIA EXISTENTES E A DESMILITARIZAÇÃO POLICIAL 

A Ditadura Militar foi um tempo bastante temido para os que viveram na época, tempo em que não existiam garantias constitucionais e os direitos fundamentais da população pouco importavam, a polícia daquela época era bastante repressiva e por isso chamada de polícia militarizada. Após o final da Ditadura Militar, o Brasil vive um processo de redemocratização e está em constante evolução que podem ser notados em diversas esferas, como por exemplo, hoje, já há garantias constitucionais que devem ser respeitadas. Porém, a polícia brasileira parece não ter acompanhado estes progressos tão importantes.

Há dois tipos de polícias que merecem destaque no presente trabalho e serão estudadas no decorrer do artigo, são elas: a polícia militarizada e a polícia cidadã. O primeiro modelo é o tipo existente no Brasil e o mais conhecido pela população, pois é o que representa a polícia atual; o segundo modelo é a forma de polícia que deveria existir em todos os lugares do mundo, atua como um modelo a ser alçando com as constantes evoluções do país no processo de redemocratização.

A Polícia Militarizada como dito anteriormente, é o modelo tradicional existente no Brasil de acordo com Bengochea et al. (2004) e caracteriza-se pelo uso da força. Para o mesmo autor (2004, p. 119) “a força tem sido o primeiro e quase único instrumento de intervenção, sendo usada frequentemente da forma não profissional, desqualificada e inconsequente, não poucas vezes a margem da legalidade”. Contudo, ainda se acredita na possibilidade de reverter essa situação.

Para que haja uma mudança na atual realidade da polícia brasileira, é necessário que exista uma mudança geral, começando pela própria população e com ela refazer o conceito de segurança pública na visão da sociedade. Para a sociedade, a segurança pública é apenas um problema da polícia e tudo está centrado nas mãos dela, o que não é verdade. Para Bengochea et al. (2004, p. 120), a segurança pública deve ser entendida como:

Um processo sistêmico e otimizado que envolve um conjunto de ações públicas e comunitárias, visando assegurar a proteção do indivíduo e da coletividade e a aplicação da justiça na punição, recuperação e tratamento dos que violam a lei, garantindo direitos e cidadania a todos. Um processo sistêmico porque envolve, num mesmo cenário, um conjunto de conhecimentos e ferramentas de competência dos poderes constituídos e ao alcance da comunidade organizada, interagindo e compartilhando visão, compromissos e objetivos comuns; e otimizando, porque depende de decisões rápidas e de resultados imediatos.

Dessa forma, nota-se que, a partir do momento que a população aceitar esse conceito de segurança pública, e deixar de lado aquele que vê a segurança pública somente como sinônimo de polícia, as coisas irão começar a mudar. Um outro ponto de total importância, também no que diz respeito a sociedade, é a forma de pensar, muitas pessoas ainda se prendem aquela ideia de que “bandido bom é bandido morto” e não percebem que dessa forma só estão alimentando mais o poder da polícia militarizada.

A população deve abandonar o senso comum e pensar muito mais na forma como ela deseja ver essa polícia nas ruas, “é preferível uma polícia linha dura”? “Um judiciário ‘duro’ com altas penas”? “O endurecimento das medidas repressivas”? Será realmente as respostas a essas perguntas a solução para os problemas acerca da criminalidade? A criminalidade é um fato muito frequente no Brasil e o senso comum faz com que cada vez mais a polícia brasileira trabalhe de forma repressiva, sem se importar com os direitos dos cidadãos.

A transição de uma polícia militarizada para uma polícia cidadã é uma realidade que deve ser mudada o mais rápido possível, tendo em vista que esse atual modelo, é atual a vários anos e é responsável muitas vezes por diversos crimes desde a época de 1980. Nesse sentido Nilo Batista faz um balanço entre os anos 1982 a 1986, e chega à conclusão de que:

Não, brasileiros urbanos, nosso facínora mais atuante, nosso inimigo público nº 1, o recordista absoluto em matar-nos e mutilar-nos, não é o temível assaltante ou o traficante aquadrilhado. Essa gente agressiva e frequentemente cruel não conseguiu ultrapassar a média de modestos 2,65% (no Rio), 5,12% (em São Paulo), 2,08% (em Salvador) e aproximadamente, 2,00% (em Recife) do total das mortes criminais, nessas cidades, no período de 1982 a 1986. O superbandido de que estamos falando, ao contrário, foi o responsável, ao longo desses cinco anos, por uma média de 30,61% (no Rio), 38,42% (em São Paulo), 64,74% (em Salvador) e 34,80% (em Recife) daquele total. No país todo, só no ano de 1986, fez ele exatas 27.306 vítimas fatais e feriu nada menos que 399.404 pessoas. Isto é, 75 mortos e 1.094 feridos por dia! (BATISTA, 1990, p. 152)

Com base no trecho citado acima, nota-se a necessidade de demilitarizar a polícia brasileira, tendo em vista que dessa forma, a mesma não está desenvolvendo o seu papel de promover a segurança da população, muito pelo contrário, está colocando-a em risco, pois trata-se de uma polícia despreparada e desprovida de meios modernos para a resolução de conflitos sem que seja com o uso da violência.

A polícia cidadã, ao contrário da polícia atual onde a principal forma de resolver conflitos é com o emprego da violência, ela é um modelo que passa a “centrar sua função na garantia e na efetivação dos direitos fundamentais dos cidadãos e na interação com a comunidade, estabelecendo a mediação e a negociação como instrumento principal” (BENGOCHEA et al. 2004, pag. 119-120).

Em outras palavras, enquanto a polícia atual não reconhece os direitos fundamentais dos cidadãos (seja ele quem for) e sua única forma de atuação é através da violência, do emprego de armas e da repressão, a polícia de cidadã ela reconhece esses direitos, portanto sabe que o uso desses outros meios deve ser utilizado somente em última opção, que a primeira tentativa deve ser a de mediação, para solucionar o problema. A partir do momento que a sociedade entender dessa forma, terá como consequência a desmilitarização policial.

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