À medida que C. S. Lewis (1898–1963) e suas obras tornam-se mais conhecidos pelo mundo, por um público de notável diversidade etária, social e religiosa, torna-se também mais evidente um fato importante sobre o mesmo autor. Muito embora Lewis tenha nascido na Irlanda, em Belfast, e crescido na mesma cidade ou nas cercanias, no condado de Down (hoje, na Irlanda do Norte), sua nacionalidade permanece amplamente desconhecida ou obscurecida. À primeira vista, é grande a possibilidade de se pensar estar tratando de um autor inglês. Não é diferente com o professor J. R. R. Tolkien (1892–1973), conhecido pela extensa série de livros sobre a fictícia Terra-Média, dentre os quais destacando-se O Hobbit e O Senhor dos Anéis, que, muito embora tenha vivido a maior parte da vida na Inglaterra, e provindo de uma família de forte tradição inglesa, nasceu na África do Sul e ali viveu por algum tempo.

Tomemos uma obra que projetou a imagem de Lewis para fora das fronteiras da Grã-Bretanha. A versão hoje conhecida de Cristianismo Puro e Simples (diversas vezes citada como a obra religiosa mais influente do século 20) é, na verdade, uma versão editada do material resultante das quatro séries de palestras radiofônicas proferidas por Lewis durante a Segunda Guerra Mundial. Anteriores a esta versão final, foram publicados três folhetos separados, a partir de ligeiras edições das mesmas palestras: The Case for Christianity (em 1942), Christian Behaviour (em 1943) e Beyond Personality (em 1944). Estas publicações não satisfizeram Lewis, pois careciam, para ele, de maior clareza de expressão e de enfoque. Para os leitores, os três panfletos eram, na verdade, obras independentes, e não estágios de uma mesma argumentação entrelaçada. De fato, eu propriamente, na primeira ocasião em que descobri Beyond Personality, julguei tratar-se de uma obra separada de Lewis. Portanto, não é difícil imaginar a facilidade com que a mesma ideia foi concebida nos leitores da década de 1940. Além disso, uma das séries foi inteiramente omitida (e eis a razão por que havia apenas três folhetos). Lewis, então, passou a pensar em como poderia criar um único livro; um livro que desenvolvesse uma defesa coerente do cristianismo, unindo e vinculando, assim, todo o material por ele desenvolvido para suas quatro séries de palestras. O resultado foi a versão hoje conhecida de Cristianismo Puro e Simples (de 1952), uma versão editada do material do tempo de guerra.

Pois bem, a fama de Lewis como apologista cresceu sobremaneira na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, muito embora seu sucesso neste campo tenha obscurecido outras conquistas consideráveis de sua vida acadêmica. Por exemplo: em dezembro de 1941, ele deu início a uma série de três palestras sobre os temas de O paraíso perdido, de John Milton. O circuito de conferências foi ministrado no University College, no País de Gales, e esta série foi por Lewis vista como um “ensaio preliminar” para um livro mais alentado. A obra ampliada, de fato, foi publicada em outubro de 1942 pela Oxford University Press, com o título A Preface to “Paradise Lost”. É um estudo clássico, e permanece em destaque nas listas de leituras sobre a obra-prima de Milton. O livro, que foi dedicado a Charles Williams (1886–1945), amigo querido de Lewis e também parte dos Inklings, foi por este apresentado como uma introdução daquela obra de Milton (primeiramente publicada em 1667) a leitores que poderiam considerá-la “afastadora, inacessível ou simplesmente incompreensível”. É, sem dúvidas, um de seus mais notáveis livros acadêmicos.

Todavia, o aspecto mais importante deste cenário é a forma com que a imagem de Lewis foi projetada por sua fama crescente. Ele não foi amplamente conhecido como um acadêmico ou apologista irlandês, e mesmo alguns irlandeses pareciam desconhecer sua “origem comum”. Alister McGrath, um dos mais recentes biógrafos de Lewis, observa que na época em que morou na Irlanda, na década de 1960, ele se recorda de que quando alguém, casualmente, referia-se a Lewis, estava se referindo a um escritor “inglês”. É verdade que não é atípico que pessoas radicadas fora de seu país natal passem a ter sua verdadeira nacionalidade esquecida ou desconhecida. É um fenômeno muito corriqueiro. Vê-se amiúde, por exemplo, atores conhecidos sobretudo por seus trabalhos com a indústria cinematográfica norte-americana que provieram, na verdade, de outros lugares do globo. Porém, à medida que prossegue-se em conhecer Lewis, pode ser neste encontrada uma profunda ligação com sua terra natal. Ele jamais perdeu de vista suas raízes irlandesas. Numa carta a Arthur Greeves, um amigo de longa data, em março de 1915, Lewis com carinho evocou suas recordações de Belfast. Ele recordou-se do “distante murmurar dos ‘estaleiros’, a grande extensão de Belfast Lough, Cave Hill Mountain e os pequenos vales, prados e colinas em volta da cidade”. A Irlanda de Lewis era muito mais que suas “suaves colinas”, muito embora sejam estas uma de suas marcas distintivas. Sua cultura possuía uma enorme paixão por histórias, o que se evidenciava em sua mitologia, nas narrativas históricas e em seu amor pela língua. No final da década de 1950, Lewis ainda se referia regularmente à Irlanda como sua “terra natal”, chamando-a de “meu país”. Chegou mesmo a optar por lá passar sua tardia lua-de-mel com Joy Davidman, em 1958. Lewis jamais esqueceu-se da beleza natural de sua terra natal, cujo ar suave e úmido havia ele inalado. A própria linguagem de Lewis repercutia suas origens. Ele usava com frequência, em suas correspondências, expressões ou gírias anglo-irlandesas derivadas do gaélico (a língua oficial da Irlanda). Muito embora a voz de Lewis, em suas palestras radiofônicas na década de 1940, possuísse traços típicos da cultura acadêmica de Oxford do seu tempo, sua pronúncia de algumas palavras ainda denunciava uma sutil influência de suas raízes de Belfast.

James Joyce (1882–1941) é um exemplo semelhante ao de Lewis. Joyce nasceu em Dublin, e é conhecido por ser um grande romancista, contista e poeta irlandês. Joyce viveu fora de seu país natal pela maior parte da vida adulta, mas é reconhecido que suas experiências irlandesas foram essenciais para sua obra, fornecendo-lhe toda a ambientação e boa parte de sua temática. Uma de suas obras mais conhecidas, de fato, é o volume de contos Dublinenses/Gente de Dublin (1914), que chegou a ser sugerido por Ernest Hemingway (1899–1961), certa vez, para um jovem escritor que lhe pedira sugestões de obras que a ele próprio, como iniciante na literatura, poderiam ser úteis. Hemingway elaborou, então, uma pequena lista com quatorze livros e mais duas curtas histórias para o jovem — dentre os quais Madame Bovary, de Gustave Flaubert, Ana Karenina e Guerra e Paz, de Leo Tolstoy, Os Irmãos Karamázov, de Fyodor Dostoyevsky, e O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brönte. O autor de Ulisses foi considerado por Ezra Pound como um dos mais eminentes poetas do imagismo, participando dos primórdios do modernismo poético em língua inglesa. Em contraste com C. S. Lewis, todavia, James Joyce é, ainda hoje, considerado um dos maiores nomes da literatura irlandesa, enquanto que aquele não possui nenhuma entrada nas 1.472 páginas do supostamente definitivo Dictionary of Irish Literature (1996).

Uma questão importante, contudo, é que havia uma marcante distinção entre Lewis e outros conhecidos escritores irlandeses. Ao contrário de alguma parte deles, Lewis não descobrira sua inspiração literária nas questões políticas e culturais que giravam em torno da luta de seu país pela independência em relação à Inglaterra. Ele a descobrira, todavia, primariamente nas paisagens da Irlanda. Lewis nascera num contexto em que predominavam o ressentimento social e político, assim como exigências por mudanças. A Irlanda do Norte e a República da Irlanda eram ainda unidas, porém as tensões que provocariam esta divisão artificial da ilha eram muito evidentes. Certas informações são necessárias. A Irlanda é a segunda maior das Ilhas Britânicas (depois da Grã-Bretanha), a terceira maior na Europa e a vigésima no mundo. Politicamente, ela é dividida entre a República da Irlanda, cobrindo cinco-sextos da ilha, e a Irlanda do Norte (uma parte do Reino Unido), cobrindo a área restante e localizando-se no nordeste da ilha. Historicamente, a Irlanda Gaélica surgiu no século primeiro, durando até o início do século 17. A ilha foi cristianizada à partir do século quinto. Após a invasão dos normandos, no século 12, a Inglaterra reivindicou sua soberania sobre a Irlanda. Todavia, o governo inglês não se estendeu sobre toda a ilha senão a partir da conquista Tudor dos séculos 16 e 17. Isso levou a uma colonização por parte de ingleses e escoceses, provocando nos irlandeses desapossados um grande e profundo ressentimento social e político contra os invasores. Os colonizadores protestantes diferiam dos irlandeses católicos quanto à língua e religião. “Fazendas protestantes” se desenvolveram durante o século 17, sob a liderança de Oliver Cromwell, sendo como “ilhas protestantes num mar irlandês católico”. Nos anos 1690, um sistema de governo protestante inglês foi designado para materialmente desavantajar a maioria católica e os dissidentes protestantes, sendo estendido durante o século 18. Esta organização protestante estabeleceu-se, então, a partir da deposição da classe dominante irlandesa. Em 1801, com os Atos de União (ou a Lei da União), a Irlanda tornou-se parte do Reino Unido, sendo governada diretamente de Londres. Muito embora fossem uma minoria numérica, os protestantes, radicados nos condados de Down e Antrim, no norte, e na cidade industrial de Belfast, dominaram a vida cultural, econômica e política da Irlanda.

Isso, contudo, mudaria em breve. Na década de 1880, movimentos por um governo autônomo da Irlanda se desencadearam, sobretudo, por influência de Charles Steward Parnell (1846–1891) e outros, que chamaram tal governo de “Home Rule”. Na década de 1890, o nacionalismo irlandês começou a ganhar força. Uma sensação nova de identidade cultural irlandesa foi criada, injetando também nova energia no movimento pelo “Home Rule”. Um fato de muita importância foi que o movimento passou a considerar também a língua inglesa um agente de opressão cultural, o que resultou na fundação, em 1893, da Liga Gaélica, a fim de promover o estudo e uso da língua irlandesa. Também houve forte oposição a todas as formas de influência inglesa na Irlanda, inclusive jogos como o rúgbi e o críquete. Este clima, portanto, não deixou de afetar também a família de C. S. Lewis. Uma vez que a demanda por um governo nacional autônomo foi se fortalecendo e ganhando credibilidade, muitos protestantes sentiram-se ameaçados, temendo, além da erosão de seus privilégios, um confronto civil. Dessa forma, a comunidade protestante de Belfast, no início da década de 1900, era bastante insular, evitando contato social e profissional com seus vizinhos católicos onde isso fosse possível. De fato, o próprio irmão mais velho de C. S. Lewis, Warren, recordou-se mais tarde, numa biografia do irmão não publicada, que ele mesmo (Warren) jamais conversara com um católico de seu círculo social antes de ingressar no Royal Military College em Sandhurst, em 1914. Uma tendência hostil e segregacionista  para com os católicos foi por Lewis adquirida sendo ainda uma criança de peito. E, de fato, Alister McGrath também pontua que muitos consideravam Lewis, e ainda o consideram, alguém que se situa fora da verdadeira identidade cultural irlandesa devido às suas raízes na província protestante de Ulster (área que, hoje, corresponde aos condados da Irlanda do Norte, mais três condados hoje parte da República da Irlanda: Cavan, Donegal e Monagham).

As tensões e questões sociais e políticas, portanto, que rodeavam a vida de Lewis em seus primeiros anos, não serviram de grande inspiração para sua produção literária. O que realmente lhe serviu de inspiração foi a paisagem física da Irlanda. Esta foi, inquestionavelmente, uma das influências que moldaram a fértil imaginação de Lewis. A Irlanda, de fato, é também conhecida como a “Ilha Esmeralda”, exatamente por seus elevados níveis pluviométricos e suas névoas, o que lhe proporcionam um solo úmido e uma relva verde viçosa. E é certamente interessante que Lewis tenha transferido, mais tarde, a sensação de confinamento pela chuva que ele sentia em “Little Lea” (como chamavam a “Leeborough House”, casa para onde a família Lewis se mudou em 1905) a quatro criancinhas, presas na casa de um velho professor, incapazes de explorar o exterior por causa da “incessante chuva, tão densa quando se olhava pela janela que não se podia ver nem as montanhas e as florestas e nem mesmo o regato do jardim”. Talvez, e muito provavelmente, a casa do professor em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa tenha sido concebida com base em Little Lea.

Aquelas paisagens, todavia, como Lewis declarou, moldaram também a prosa e a poesia de muitos antes dele. Talvez, acima de tudo, o clássico de Edmund Spenser (1552–1599), The Faerie Queene, obra elisabetana que Lewis apresentava com frequência em suas aulas em Oxford e Cambridge. Para Lewis, essa obra clássica de “demandas e andanças e insaciáveis desejos” refletem claramente os muitos anos vividos por Spenser na Irlanda. Era impossível não perceber “o ar suave e úmido, a solidão, as vagas formas da colina” ou “os emocionantes crepúsculos” da Irlanda. Para Lewis, o período subsequente na vida de Spenser, agora na Inglaterra, o levou à perda de seu poder de imaginação. “Os muitos anos vividos na Irlanda”, escreveu ele, em sua obra Studies in Medieval and Renaissance Literature, “estão por trás da poesia superior de Spenser, e os poucos anos vividos na Inglaterra estão por trás de sua poesia inferior”.

Por fim, conclui-se que toda a familiar imaginação e a incrível produção literária, poética, e acadêmica de C. S. Lewis não podem ser separadas de suas origens irlandesas, que o marcaram de forma profunda e inexorável. “Os suaves contornos dos montes e das colinas” do condado de Down estão por trás de toda a sua experiência de perplexidade diante de algo indescritível e inalcançável, um anseio profundo por um objeto além do alcance. A projeção de Lewis como uma figura inglesa, embora resultado esperado de sua crescente popularidade e das associações naturais, embora imprecisas, como o ambiente acadêmico, cultural, religioso e social da Inglaterra do século 20, constitui-se de um impedimento inesperado para um maior alcance no entendimento de sua persona. Lewis foi alguém que foi inserido num ambiente estranho e hostil (ao menos para o garotinho que, pela primeira vez, pisava em solo inglês, como descrito em sua auto-biografia Surpreendido pela Alegria), e talvez não imaginasse que ali faria ele sua vida. Muito provavelmente, jamais imaginara ele que, como um cidadão inglês, teria uma vida tão “romântica” e interessante, tão curiosa e inesperada, como as histórias que o entretinham no “velho lar”, o país natal. Lewis lutou na Primeira Guerra, tornou-se professor em Oxford, catedrático em Cambridge, conheceu Joy Davidman e viveu experiências felizes e singelas ao seu lado. Mas jamais fora o vínculo e ligação profundos rompidos. Para se entender Lewis, deve-se saber de suas origens. Sem a Ilha Esmeralda, porção enorme de sua obra se perde, e a influência que têm causado elas por mais de um século desaparece. Sua terra natal não lhe serviu de mero “lugar de nascimento”, mas de uma base encantadora para sua vida imaginativa sem par.


Referências Bibliográficas:

McGrath, Alister. A vida de C. S. Lewis: do ateísmo às terras de Nárnia. São Paulo: Mundo Cristão, 2013.

Obras de C. S. Lewis:

A Preface to “Paradise Lost”. London: Oxford University Press, 1942.

Studies in Medieval and Renaissance Literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

Surpreendido pela Alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1998.

The Collected Letters of C. S. Lewis. Edited by Walter Hooper. Vols. 1 & 2. San Francisco: HarperOne, 2004 e 2005.