Theodoro de Castro tinha esse nome porque os pais adoravam a Deus e nada como um filho com esse nome para fazer jus a vida eterna no Paraiso. Depois de uma longa enfermidade, Theodoro partiu totalmente convicto de que após dar o último suspiro, viajaria de primeira classe até a morada eterna. Ao ser considerado morto, os parentes puseram-se a chorar a sua perda enquanto ele mergulhou num sono profundo, daqueles que não lembramos nem dos sonhos.
Despertou muitas horas depois, mas não enxergava nada, nem uma luz no fim do túnel. Levantou os braços e percebeu que estava num caixão cheio de flores e com pouquíssimo ar para respirar. Gritou, clamou ao criador para que o tirasse daquela agonia. Tudo em vão. Morreria mesmo no túmulo, sufocado. Dobrou as pernas e forçou a tampa do ataúde e ouviu um barulho de madeira rachando. Já não se fazem mais caixões como antigamente, pensou. Continuou forçando até que abriu e sentiu um pouco mais de ar. Lembrou-se dos parentes que foram sepultados no jazigo da família. Logo após a colocação do caixão no compartimento, os pedreiros cuidavam de cimentar as bordas da laje para a vedação. Deve estar ainda fresco o cimento e com um empurrão talvez conseguisse soltar a laje, pensou. Foi o que fez e um barulho aconteceu no jazigo, com algo grande caindo no vão. Se tivesse alguém passando por perto estaria correndo até hoje com o susto.
Agora tinha mais ar para respirar, mas sabia que não teria muito tempo de oxigênio naquele pequeno espaço e tratou de empurrar a laje que cobria o jazigo. Logo percebeu que era bem mais pesada e que precisaria fazer um esforço homérico para movimentá-la. Com os pés apoiados nos dois lados do jazigo conseguiu finalmente movimentar a laje, deslocando-a para o lado, abrindo um espaço para sair daquele inferno. Fazia muitas horas em que havia sido sepultado e sentiu o estômago roncar de fome. Precisava comer alguma coisa e enfiou as mãos nos bolsos de forma automática. Nada, nem um vintém. Provavelmente alguém revistou os bolsos antes de vesti-lo. Os povos antigos, por via das dúvidas, deixavam alguns trocados nos bolsos dos mortos para as despesas da grande viagem. Infelizmente os seus parentes não tiveram essa preocupação. É um sinal de que não acreditavam nessa tal viagem. Na Terra morreu, na Terra permaneceu.
Pensou em voltar para casa, mas daria um susto danado na mulher e nos filhos. Eles já estavam se adaptando a nova situação. A mulher fazendo as contas da herança deixada pelo falecido. Seria, pensou ele, uma confusão terrível na vida deles e decidiu que não voltaria mais para casa. Depois, a certidão de óbito já fora emitida, deram baixa na aposentadoria e coisas do gênero. Daria um jeito de sobreviver fazendo uns biscates aqui e ali, só para comer e dormiria no jazigo da família, pois tinha o direito de ali passar os dias que ainda lhe restavam. E saiu caminhando pelo cemitério como alguém que estava por ali visitando o túmulo de algum ente querido.
As salas de velórios estavam sempre bastante cheias, pois vários defuntos sendo velados ao mesmo tempo por causa da pandemia. Velados mesmo nem tanto, pois já não se usam mais velas, mas luzes acesas imitando-as. As velas tinham a utilidade de queimar os gases gerados pela putrefação dos corpos, principalmente quando as exéquias eram bastante demoradas. No final, transformaram-se em um ritual religioso, totalmente distanciado do seu sentido original. Por sorte, nos velórios modernos serviam comes e bebes para os parentes e amigos. Theodoro aproveitou e se fartou, além de encher os bolsos com doces e salgados e alguma coisa para beber mais tarde.
Visitou todos os velórios, cumprimentando os parentes e fazendo uma pequena oração. Saiu do cemitério e caminhou pelas ruas próximas, visualizando onde seria sua nova vizinhança. Ficarei por aqui até o momento em que Deus me chamar de forma definitiva. Acreditou que estava passando por uma provação e que em breve faria a viagem definitiva para a seara do Senhor. E assim, passou um bom tempo entre o túmulo, as ruas próximas e os velórios, onde conseguia alguma coisa para se alimentar. Suas roupas envelheceram, sua barba e cabelos cresceram, ficando quase irreconhecível. Precisava melhorar a sua aparência, pois caso contrário poderia ser expulso dos bufês dos velórios das famílias mais aquinhoadas. Observava os defuntos mais ricos e tratou surrupiá-los, retirando anéis e roupas novas, tendo sempre o cuidado de deixar tudo arrumadinho para que ninguém percebesse. Uma bela aliança de brilhantes lhe rendeu um bom dinheiro, o suficiente para ter sempre a mão um barbeador elétrico e uma máquina de cortar cabelos. Fazia a sua toalete nos banheiros dos velórios quando não havia ninguém por perto.
Um dia alguém o chamou pelo nome. Opa! Será que fui reconhecido? Tentou despistar, mas a pessoa o seguiu até alcançá-lo. Era um velho conhecido que o saudou alegremente comentando que ouvira falar que ele havia falecido. “Pois é, não é? As pessoas fazem algumas confusões. Estive meio doente uns tempos atrás, mas estou bem, tocando a vida”. Conversaram um bom tempo sobre coisas do passado e negócios do futuro e até aproveitou a companhia do conhecido para tomar um cafezinho expresso na cantina do Cemitério.
E assim, o velho Theodoro viveu alguns meses entre os velórios e o jazigo da família. A noite deitava-se no seu caixão que tinha até um certo conforto, pois era dotado de revestimento almofadado e tinha até um cobertor para as noites mais frias. Numa tarde, sentiu-se mal e tratou logo de voltar para a sua tumba. Deitou-se, fechou o ataúde e sentiu que havia chegado a sua hora. Colocou-se na posição protocolar de defunto, respirou fundo e esperou sua hora, que não iria demorar, que de fato, aconteceu.
Algum tempo depois, faleceu uma pessoa da família, uma tia que já estava bem idosa. Na hora do sepultamento, verificou-se que o compartimento onde Theodoro foi sepultado, estava aberto, mas os coveiros evitaram de comentar com os familiares e trataram de fechá-lo novamente. Pensaram se tratar de ladrões de túmulos, um problema recorrente nas grandes metrópoles.
Theodoro, dessa vez, foi mesmo. A única coisa estranha, foi o seu conhecido ter encontrado a viúva e comentado que vira o colega num velório há uns dois meses atrás. A viúva ficou espantada e garantiu a ele que o marido já era morto há mais de seis meses e que ele devia estar enganado. Não estava e garantiu isso a viúva. Iracema ficou transtornada com aquela conversa e como era pessoa muito impressionável, ficou a crer que o marido ainda não havia encontrado o seu caminho e ficava vagando pelo cemitério. A velha frase hamletiana, “Há mais mistérios entre o céu e a Terra do que pensa sua filosofia”, encontrou abrigo na mente daquela senhora.
Ao comentar a história com uma pessoa da família, soube por ela então que no enterro da tia, ouviu os coveiros comentarem que houve algum problema em uma sepultura do jazigo da família. Como não sabia de quem era o túmulo, não comentou com mais ninguém, pois o problema é comum em São Paulo. Intrigada, a viúva foi com um dos filhos até o cemitério e constatou que de fato havia ocorrido algum problema, mas foi informada que os coveiros trataram de fechar novamente o túmulo. Descobriu-se depois, conversando com os funcionários do cemitério, que eles viam uma pessoa, bastante parecida com o Theodoro, vagando pelos velórios e cemitério. Acreditava-se que era um fantasma que saia diariamente da tumba para tomar o ar fresco da manhã.
Como observador do caso, posso afirmar que não houve nada de sobrenatural, mas apenas a história de um morto mal falecido que se descobriu, ao acordar de uma catalepsia, dentro de um ataúde. A sorte quis que sobrevivesse mais alguns meses alimentando a imaginação dos crédulos.