Introdução

 

Se como afirma Heisenberg “a mecânica newtoniana começa com o conceito de substância” (2009, p. 35), quando se trata de mecânica quântica esse conceito parece não mais corresponder aos fundamentos ontológicos da teoria. Nesse ponto, talvez devamos seguir o caminho que nos indica Lee Smolin, ao afirmar que “o universo é feito de processos e não de coisas” (2002, p. 58). Newton fundamentou a sua mecânica na ideia de que um corpo consiste em uma determinada “quantidade de matéria”, a qual pode ser designada como a sua massa. Com a mecânica quântica, a própria noção de “quantidade de matéria” precisa ser reexaminada, já que existem partículas sem massa, como os bósons, que propagam todas as forças do Universo. Portanto, consideramos que uma ontologia que privilegie os processos mais do que as substâncias seja essencial para o estabelecimento dos fundamentos metafísicos da teoria quântica.

 

O Primado do Substancialismo na Ciência Moderna

 

De Aristóteles a Kant, e talvez um pouco mais além, o conceito de uma substância individual desempenhou um papel de destaque nas tentativas dos metafísicos de caracterizar a realidade e pensar reflexivamente sobre os termos de tal caracterização. Qualquer tentativa de realizar uma análise da substância deve debruçar-se sobre os esforços desses grandes filósofos do passado na caracterização desse conceito.

Não se pode negar a importância da metafísica de Descartes para o desenvolvimento da ciência moderna, pelo menos no aspecto epistemológico. Ao considerar a existência de duas substâncias distintas, a mental e a material, e ao estabelecer o método para a ciência, o filósofo francês traçou as linhas gerais que o pensamento científico posterior adotaria.

A metafísica cartesiana instaurou uma teoria do conhecimento, na qual o mundo material (a res extensa) assumiu a categoria de objeto para a res cogitans, constituída como subjetividade consciente, e que se tornou o pólo cognoscitivo do conhecimento. Destarte, o conhecimento se dirigia inteiramente ao mundo material. Todo o seu esforço intelectual, como a criação de uma nova geometria, procurava atender à sua visão do universo físico, concebido como um mecanismo regular e preciso.

O materialismo moderno começou com essa visão de Descartes. O universo era concebido como uma máquina que opera a partir de princípios mecânicos. Restava saber como esses princípios mecânicos funcionavam. É então que entra em cena Sir Isaac Newton.

A teoria cartesiana dos vórtices não logrou êxito ao não explicar os epiciclos de Kleper, abrindo espaço para a mecânica newtoniana. Os elementos da ontologia de Newton são a massa, o espaço e o tempo absolutos (BURTT, 1983, pp. 189-201), no qual essa matéria se move, e as forças ou leis naturais que regem o movimento. Outras categorias fundamentais do ser, como mente, vida, organização ou finalidade, não são reconhecidas. Elas passam a ser vistas como efeito colateral, como arranjos particulares de partículas no espaço e no tempo.

As bases do materialismo físico moderno encontraram, assim, em Descartes e Newton os seus melhores construtores. Entretanto não podemos esquecer o concurso da metafísica da substância, iniciada por Aristóteles, na Antiguidade, no desenvolvimento de uma tal imagem do universo que perdurará até o início do século XIX.

O Advento da Metafísica do Processo

Como afirmam Einstein e Infeld, durante 200 anos, a partir de Galileu, “força e matéria foram os conceitos básicos de todos os esforços para compreender a natureza”(2008, p. 53), o que demonstra a grande influência dos conceitos mecanicistas-materialistas sobre a ciência moderna. Esse quadro só começou a se modificar no século XIX, com as pesquisas sobre os fenômenos elétricos e magnéticos, e a subsequente construção teórica do eletromagnetismo. Mas foi, sobretudo, com o desenvolvimento da física atômica e, principalmente, com a criação da mecânica quântica, que os alicerces materialistas, herdados da ciência moderna, sofreram seus mais graves abalos. Os novos conceitos físicos advindos da física de partículas já não mais se adequavam aos princípios de uma metafísica substancialista. O novo formalismo matemático da mecânica quântica, essencialmente probabilístico – não nos esquecemos, aqui, da mecânica estatística, mas daremos ênfase ao caráter probabilístico da teoria quântica –, demandava uma nova metafísica, onde figurassem outros elementos básicos, constituindo uma ontologia totalmente diferente daquela sustentada pela metafísica da substância. Foi nesse novo cenário científico que surgiu a metafísica do processo.

A filosofia do processo deve ser compreendida muito mais como uma tendência do pensamento filosófico do que como uma escola filosófica, como afirma Nicholas Rescher:

Como qualquer movimento filosófico de maior escala, a filosofia do processo tem divisões internas e variações. Uma diferença importante em questão aqui se encontra no debate de que tipo de processo é tomado como fundamental e paradigmático. Alguns participantes (especialmente Henri Bergson) veem os processos orgânicos como o tipo central e outros processos, modelados em ou impressos sobre eles. Outros (especialmente William James) basearam suas idéias de processo em um modelo psicológico e viram o pensamento humano como idealisticamente paradigmático. Ou, voltando-se da substância para a metodologia, pode-se observar que alguns pensadores do processo (por exemplo, Whitehead) articularam as suas posições em termos encontrados na física, enquanto outros (especialmente Bergson) confiavam mais em considerações biológicas. E depois, também, é claro, há pensadores do processo sociocultural como John Dewey. Mas, não obstante essas diferenças, há uma família de semelhanças de temas e ênfases que, no entanto, deixam os ensinamentos dos teóricos do processo na posição de variações sobre uma abordagem comum. Então, no final está- ou deveria estar - claro que a unidade da filosofia do processo não é doutrinária, mas temática, não é um consenso ou uma tese, mas sim uma mera questão difusa do tipo e abordagem (RESCHER, 2006, p. 33, tradução nossa).

 Sua principal característica é uma tomada de posição metafísica (RESCHER, 1996; BROWNING & MYERS, 1998). Em linhas gerais, as principais características da filosofia do processo são: a afirmação de que a existência física é, no fundo, processual; e a ideia de que os processos, mais do que as coisas, representam melhor os fenômenos encontrados no mundo natural. Nicholas Rescher assim enumera os seus conteúdos:

O processo tem primazia sobre as coisas. A substância é subordinada ao processo: as coisas são simplesmente constelações de processos.

O processo tem prioridade sobre a substância. As coisas estão sempre subordinadas ao processo porque o processo engendra, determina e caracteriza internamente as coisas que existem. Mas os processos transcendem o reino das coisas já que há, também, processos não ligados à substância. (1996, p. 2, tradução nossa).

Se a abordagem da metafísica do processo coloca em evidência a mudança, o fluxo e a novidade, do seu ponto de vista, a ciência não pode ser concebida como um corpo de teorias a respeito da natureza. O que de fato interessa não são as teorias, mas o procedimento dos cientistas para a sua construção. Por conseguinte, a ciência é um processo contínuo de descoberta do novo.

A descoberta do novo que caracteriza a ciência não se encontra na natureza, mas no nosso conhecimento a seu respeito. O que significa dizer que o conhecimento científico sempre se renova. Mesmo as nossas melhores teorias científicas atuais não passam de um conhecimento conjuntural, isto é, localizado no espaço e no tempo do seu acontecimento. Assim como as antigas teorias não resistiram a uma análise observacional mais exata, por causa do avanço tecnológico, também as teorias atuais cederão seus lugares a novas teorias, elaboradas a partir de novos instrumentos e de novas medições, ocasionadas pelo aperfeiçoamento permanente da tecnologia.

As teorias respondem a questões circunstancialmente arroladas. Antes do começo do século XX, por exemplo, a teoria atômica não poderia responder como se comportam os elétrons em suas órbitas em volta do núcleo. A razão disso é simples: ela não possuía os meios para tal explicação. Newton e Dalton não dispunham da tecnologia que estava à disposição de Bohr e Heisenberg.

De certo, as questões que a investigação científica responde ou tenta responder hoje não serão as mesmas que os cientistas do século XXII terão de lidar. A novidade do conhecimento científico revela-se quando novas questões são levantadas.

Mas, se por um lado podemos afirmar que as questões científicas do futuro não serão exatamente as mesmas que existem hoje, por outro lado, não há como prever que tipos de questões entrarão na pauta da ciência. Não sabemos se princípios que são rejeitados pela ciência atual passarão a ser adotados pela ciência futura. Nenhuma previsão pode ser considerada rigorosa, senão apenas um exercício de adivinhação quanto ao futuro das questões científicas.

A metafísica do processo nos adverte, pois, que, em matéria de ciência, o máximo que podemos fazer é admitir o estado de fluxo constante no qual se encontram mergulhados o conhecimento e a investigação científica:

Tal perspectiva indica que a ciência não é um corpo de conhecimento – um agregado de informações armazenadas com estabilidade em livros e revistas e em discos de computador, mas antes uma atividade, um empreendimento, uma disciplina – um esforço vivo de busca e pesquisa, de investigação, de investimentos na resolução de questões. (RESCHER, 1996, p.140, tradução nossa).

Conclusão

            Atualmente, há um renovado interesse acadêmico pela metafísica do processo, mormente entre aqueles que desenvolvem pesquisas no campo da fundamentação filosófica das teorias científicas contemporâneas. Podemos tomar como exemplo os esforços envidados nessa direção pelo Center for Process Studies, que publica, semestralmente, o periódico Process Studies e tem realizado vários congressos sobre a interface metafísica do processo-ciência.

Devemos ressaltar, também, a tentativa de Reginald T. Cahill, físico da Flinders University, na Austrália, de apresentar uma física do processo como “uma modelagem radical da informação teórica da realidade, nascida da análise das diversas limitações existentes; das limitações dos sistemas de informações formais descobertos por Gödel, Turing e Chaitin, a partir das limitações de modelagem geométrica do tempo nos modelos construídos por Galileu, Newton e Einstein, e pelas limitações da teoria quântica e seu fracasso em explicar o processo de medição” (2003, p. 11).

Outros autores vêm trabalhando com essa interface há muito tempo. Dentre eles podemos citar Shimon Malin (2003), Henry Stapp (2003), Michael Epperson (2004), dentre outros.

A metafísica do processo tornou-se uma valiosa ferramenta para aqueles que procuram trabalhar na confluência entre filosofia e ciência, possibilitando novas investidas teóricas na busca do aperfeiçoamento da nossa compreensão da realidade à nossa volta.

Referências:

BURTT, Edwin A. As Bases Metafísicas da Ciência Moderna. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983.

 CAHILL, Reginald T. Process Physics. In Process Studies Supplement, Nº 5, 2003, pp. 1-131. Disponível em <http://www.mountainman.com.au/process_physics/HPS13.pdf>. Acesso em: 18/09/2011.

 EINSTEIN, Albert; INFELD, Leopold. A Evolução da Fisica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.

 EPPERSON, Michael. Quantum mechanics and the philosophy of Alfred North Whitehead. New York: Fordham University Press, 2004.

 HEISENBERG,Werner. A Ordenação da Realidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

 MALIN, Shimon. A natureza ama esconder-se. São Paulo: Horus Editora, 2003.

 RESCHER, Nicholas. Process metaphysics: an introduction to process philosophy. Albany: State University of New York Press, 1996.

 _____. Process philosophical deliberations. Heusenstamm bei Frankfurt: ontos verlag, 2006.

STAPP, Henry P. Mind, Matter and Quantum Mechanics. Berlin: Springer-Verlag, 2003.

SMOLIN, Lee. Três Caminhos para a Gravidade Quântica. Rio de janeiro: Rocco, 2002.