A MEDICINA E O PATRIMÓNIO: ENFERMARIAS E MOSTEIROS*

 

António Lourenço Marques

 

 

Abordar o tema da medicina, no dia mundial dos monumentos e sítios, inspirado no mote particular - a relação entre a ciência e o património - pode sugerir várias apresentações. Não ignoramos como a Medicina, ela mesma, comporta uma fonte inesgotável de elementos que integram a herança cultural das sociedades, um facto bem exemplificado, por exemplo, na diversidade de objectos que habitualmente integram os museus de história da medicina. Vêem-se aí muitos instrumentos, que ao longo do tempo caracterizaram a evolução dos caminhos do diagnóstico e da terapêutica, e outros como os trajes dos médicos, os livros representativos, os desenhos alusivos, os modelos anatómicos, as figuras de cera, etc., etc. Esta profusão de objectos reflecte a riqueza de uma actividade fundamental, que sempre acompanhou o Homem, ao longo dos tempos.

Escolhi, no entanto, para ilustrar o tema, um motivo do património, que não pode ser guardado em museus nas suas formas directas, mas que marcou decisivamente um dos capítulos mais relevantes de toda a história da medicina, na medida em que constitui uma base fundamental para a concretização da assistência aos doentes. Refiro-me à fundação dos hospitais, e uma vez que nos encontramos nesta formosa Abadia de Alcobaça, vou lembrar o papel que os mosteiros tiveram nesta história, com referência, ainda que breve, à influência directa da Ordem de Cister, à qual este monumento – o Mosteiro de Alcobaça -se liga.

 

 

O hospital, que é pois uma instituição de relevo no espaço social da saúde, dentro da tradição ocidental, passou por diversas fases, de acordo com a função que sucessivamente foi adquirindo, face às necessidades às quais dava resposta, de acordo com as mentalidades, as crenças e os valores presentes em cada época.

Assim, na sua história no Ocidente, os hospitais foram inicialmente centros de práticas religiosas e asilos de pobres, depois centros para morrer e, só por fim, tiveram a função exclusiva de prestação de serviços aos doentes e passaram a ser centros de tecnologia médica, de investigação e de formação dos profissionais de saúde. No início, prevaleceram as causas religiosas e só muito mais tarde, o hospital se especializou no tratamento dos doentes. Infelizmente, poucos testemunhos físicos dos seus exemplares mais primitivos resistiram à erosão do tempo. Temos de encontrar outros testemunhos, nomeadamente, documentais para conhecer quais foram as suas características próprias.

Não é fácil determinar quando surgiram efectivamente os primeiros verdadeiros hospitais. Visto o problema num ângulo muito amplo, assinala-se por exemplo, que os templos de Saturno, no antigo Egipto – cerca de 4.000 anos a.C. – integravam já um espaço para loucos. Também há inscrições na Índia do século IV a.C. (Dinastia Maurya) que assinalam a existência de lugares próprios em que se prestavam serviços de cirurgia, de maternidade e onde se preparavam e distribuiam medicamentos.

O asclepión da antiga Grécia é às vezes referido na linha da evolução dos hospitais do Ocidente, mas este elemento dos templos gregos não parece ter tido características que suportem definitivamente tal hipótese. Os templos de Esculápio, o deus grego da medicina, eram santuários e ao mesmo tempo sanatórios. Os doentes podiam fazer lá determinados tratamentos, sob a direcção dos sacerdotes, mas é difícil falar-se em hospitalização de doentes com o sentido de permanência, para cuidados ao longo do tempo.  

De facto, foram os romanos o primeiros povo ocidental a fundar instituições com fins exclusivamente médicos, embora não tenham tido sequência. Os “valetudinaria” romanos, que datam do tempo de Augusto, foram locais para receber doentes exclusivamente militares. Eram construções com numerosas celas, muito pequenas, dispostas em forma de rectângulo, mas estas construções apenas podem considerar-se como protótipos muito remotos dos futuros hospitais.

Consideram os historiadores que a verdadeira história dos hospitais tem as sua raízes no cristianismo, tendo sido a Igreja a sua matriz inicial. Como exemplo da forma mais primitiva do hospital desta tradição aponta-se o xenodoquio de Pammachio, que existiu no Porto de Roma, datado do ano 398 d. C.

Há uma relação entre o significado do termo derivado do grego, “Xenodochium”, que significa hospitalidade e o termo hospes, donde deriva a palavra o hospital. De facto, a hospitalidade era um dos principais deveres dos homens livres, das civilizações da Grécia e de Roma. Negar pousada a qualquer peregrino ou viajante desconhecido era considerado um acto impiedoso. Logo que os forasteiros chegavam exaustos à casa do hospedeiro, eram recebidos, primeiro, com a oferta de água para se lavarem e logo a seguir com uma refeição para se retemperarem. Só depois era lícito perguntar o nome ao desconhecido. Criava-se a partir dessa altura o chamado vínculo hospicial pelo qual o futuro hóspede ficava ligado ao hospedeiro, com laços indissolúveis, criando-se uma relação que tinha em vista garantir que o auxílio e o socorro passassem a ser recíprocos, e com vigência para todo o sempre. Era uma obrigação que se transmitia, inclusive, aos descendentes, e que tinha também efeitos em tempo de guerra, obrigando ao respeito mútuo, caso hóspede e hospedeiro se encontrassem em campos opostos. Pois Xenodochium, de raiz grega, foi a palavra que se utilizou correntemente como sinónimo de hospital até à Idade Média.

O cristianismo estabelece na sua doutrina, como um dos princípios mais importantes, que os crentes devem preocupar-se pelo próximo. Foi este preceito do amor ao próximo que inspirou a criação de instituições destinadas a fazer face às necessidades de ajuda espiritual e material aos semelhantes. Estamos perante um dos princípios mais firmes da religião cristã, fundamentado pela Teologia e pela Filosofia. Na cultura grega, por exemplo, a physis era um conceito que significava que a ordem natural era algo imanente à própria natureza e que essa ordem podia ser compreendida pela razão. Para o cristianismo, por seu lado, a ordem das coisas e também a ordem social era uma determinação superior, que correspondia à vontade de Deus. Decorria desta crença básica uma consequência fundamental. O respeito pela igualdade de todas as pessoas, e daí o interesse pelos pobres, pelos peregrinos e pelos doentes, assumindo a Igreja o dever de ter uma atenção especial para com eles. As Obras de Misericórdia, que concretizam a atenção material e espiritual que os cristãos deviam dedicar ao próximo, reflectem bem esta filosofia. Na sua origem, “a assistência aos doentes foi mais uma obra de caridade ou de misericórdia, do que de justiça, e mais património da Igreja do que do Estado”. Eram os sacerdotes e não os médicos os verdadeiros agentes das práticas destinadas aos doentes nesses locais.

Acresce que o cristianismo foi a primeira religião que não considerou a doença como consequência de actos pecaminosos. O doente não era um diminuído, como a cultura grega considerou. Tinha a dignidade humana como criatura de Deus, e a doença podia acrescentar-lhe méritos tendo em vista os interesses espirituais. Como se fosse um eleito da divindade, para que aceitando o sofrimento da vida terrena, merecesse alcançar melhor a vida extra-terrena, crença fundamento do cristianismo. Nas sociedades pagãs, os doentes incuráveis não eram atendidos. A visão do cristianismo mudou radicalmente esta atitude, passando os doentes incuráveis a merecer particular atenção. Além disso, a assistência médica devia ser uma actividade desinteressada e os cuidadores não deviam evitar o risco da própria vida ao tratarem os doentes. Foram aspectos muito importantes que solidificaram a nobreza da prestação dos cuidados médicos.

No entanto, o objectivo original das instituições que iniciaram a tradição hospitalar era o de ajudar todos os necessitados através de uma morada que assegurasse a hospedagem (dormida) e os cuidados debaixo de um tecto protector. O objectivo de cuidar dos doentes em exclusivo não existia nestas primitivas fundações. Necessitados eram muitos grupos, desde os pobres, os velhos, os débeis, os peregrinos, os viandantes e todos deviam ser tratados por igual.

Tais estabelecimentos, que se ergueram à volta dos templos religiosos ou os integraram, receberam o nome de hospital, a palavra de raiz latina  - hospes = hóspede (ou também hospedeiro). Este significado atesta claramente a importância que se atribuiu ao hospital como um local de acolhimento ou um albergue. Os cristãos consideravam os locais como casa de Deus, destinada, em primeiro lugar, à protecção dos que procuravam auxílio e ao exercício religioso.

No entanto, foi esta palavra “hospital”que se conservou até aos nossos dias nos idiomas europeus como no português, no francês “hôpital”, no inglês “hospital”, no italiano “ospedale” e no espanhol “hospital”. Também na língua alemã, a palavra “hospital” foi corrente, simplificando-se no sul da Alemanha, na Suíça e na Áustria pela palavra “spital.

No ambiente monacal foi utilizada também  a denominação latina infirmari (infirmitorium),  enfermaria em portuguê, “infirmary” ou “farmery” em inglês, e “infirmerie”  em francês, para os edifícios de  acolhimento dos doentes. Esta palavra tem, no entanto, um estreito parentesco com o conceito de hospital. Muitos mosteiros, desde o século VI ao século XIII, integraram uma enfermaria.     

 

O espírito religioso destas instituições manteve-se vivo durante muito tempo, como atestam também outras expressões atribuídas aos hospitais, ainda hoje em uso. É o caso do “Hôtel-Dieu”, e “Maison Dieu” em França, “God’s House”, em Inglaterra e “Godshuis” nos Países Baixos. Estes conceitos traduzem claramente a ideia de que o hospital devia ser uma casa sob a protecção especial de Deus.

Como assinalam as lendas medievais, para que alguém fosse considerado indigente ou necessitado tinha que, por motivos de idade ou da fragilidade corporal, não poder assegurar o próprio sustento, e ser obrigado a mendigar para sobreviver. A missão universal do hospital era, como dissemos, permitir o auxílio a estas pessoas, e só em casos excepcionais, nos tempos mais primitivos teve particularidades especificamente relacionadas com o tratamento de doentes, mesmo nos casos em que os aposentos eram a eles destinados, em exclusivo. Na sua condição de albergue, dispensava dormida ou oferecia morada permanente. Os cuidados dos doentes eram um dever da família e não eram objecto de protecção oficial do Estado. Por conseguinte, nos hospitais encontravam-se, sobretudo, indigentes, na mais ampla acepção da palavra, que esperavam encontrar tecto, sustento, assistência, vestuário e, sobretudo, consolo espiritual. De uma forma geral, determinava-se de antemão o número de pessoas que podiam ser acolhidas nessas habitações. (As primitivas unidades não tinham mais que 10, 15 ou, quando muito, 25 camas). Os moradores do hospital permaneciam nele até à morte, tendo atendimento vitalício. Estas instituições fundadas, regra geral, por bispos ou autoridades civis, tinham uma grande visibilidade social e os seus moradores eram obrigados a cumprir estritas regras espirituais. Este foi o facto decisivo para a determinação das formas arquitectónicas dos hospitais da Idade Média.

A planta monacal de Saint-Gall, que data do ano 820, aproximadamente, é um dos mais antigos e memoráveis testemunhos documentais da arquitectura hospitalar medieval. É um documento em pergaminho, que talvez não corresponda à construção primitiva do mosteiro, mas que funcionava como modelo ideal de todos os mosteiros. A natureza dos edifícios, a sua disposição e as respectivas inter-relações constituíram um modelo ideal a reproduzir nos séculos seguintes. Tem edifícios destinados a albergue, a casa dos hóspedes ilustres, a casa para os pobres e peregrinos e as vivendas para monges estrangeiros, e tem também edifícios destinados aos doentes, o hospital dos monges, com cozinha e a sala de banhos, a casa das sangrias, a casa dos médicos, a farmácia e ao lado o jardim de plantas medicinais. Este conjunto de edifícios de um só andar, em forma de pavilhões, relaciona-se intimamente com a igreja e com a clausura.

O aposento de maior importância é o hospital dos monges (denominado infirmarium ou infirmitorium). É um complexo que reproduz, em menor escala, o esquema da clausura: à volta de um pátio interior rectangular encontram-se quatro secções que integram todos os aposentos necessários unidos entre si pelas arcadas do pátio.

Esta enfermaria tinha uma capela própria havendo uma relação directa com ela e com o próprio altar. O conjunto relacionava-se também com a grande igreja do mosteiro, facto da maior importância, e cuja solução arquitectónica se encontrou precisamente através da construção do claustro comum, com quatro faces ou alas.

Esta particularidade estrutural prende-se à própria ideologia espiritual da Idade Média. Era mais importante solucionar esta questão - a relação dos espaços com a igreja, para cumprir as necessidades espirituais dos habitantes - do que propriamente desenvolver os aspectos arquitectónicos relacionados com a existência de doentes, e que se traduzissem em vantagens na assistência médica ou nas comodidades dos aposentos, ou ainda nas condições higiénicas. Este modelo manteve-se estático, precisamente, porque preservava e servia fins essencialmente religiosos. A arquitectura hospitalar e a arte giraram sempre em volta da mesma questão: os residentes, onde se incluíam também os doentes, precisavam de consolo e de ajuda através da fé, e o elemento arquitectónico religioso, que passava pela existência obrigatória da igreja, tinha que permitir este fim. A invenção do claustro foi, efectivamente, a solução mais conseguida com grande sucesso.

Muitos mosteiros medievais se inspiraram neste plano que encontramos na planta de Saint Gall: a enfermaria dos monges, com o seu correspondente pátio  rodeado de claustro, com capela ou igreja e os anexos correspondentes ao hospital. Também aparece em alguns mosteiros beneditinos, o “hospitale pauperum” junto à porta do mosteiro. Os monges cistercienses completaram ocasionalmente este conjunto com uma enfermaria para os leigos. A Ordem dos Cistercienses, que tinha uma organização muito severa e uma direcção rigorosa, teve uma particular importância na construção de hospitais monacais. Existem poucos testemunhos arquitectónicos destas construções, mas os grandes mosteiros tinham habitualmente três complexos hospitalares: o hospital dos monges, exterior à clausura, o hospital dos leigos e o hospital dos pobres, situado à entrada do mosteiro, também chamado hospitium, que era um albergue para os viajantes e peregrinos.

Há referências à existência de uma “enfermaria onde era prestada assistência aos que fossem lá demandar”, na primitiva Abadia de Alcobaça, fundada por D. Afonso Henriques, em 1153, pelo capítulo geral de Citeaux e povoada pelos monges de Claraval. A notícia da existência da enfermaria é referida na obra de Frei Fortunato de S. Boaventura, a Historia Chronologica e Critica da Real Abadia de Alcobaça. Não haverá vestígios arquitectónicos da enfermaria, mas a história destes mosteiros que as integravam habitualmente fazem-nos dar crédito à menção do importante historiador do Mosteiro de Alcobaça.

Gostava de concluir, realçando a importância que teve na génese dos nossos hospitais o sentimento do amor ao próximo, defendido pelo cristianismo, e o significado da palavra hospes ou hospedagem, de xenodoquium e de enfermaria. É uma herança absolutamente fundamental que ficou até aos nossos dias e que ainda faz parte das características essenciais do hospital moderno. Em primeiro lugar, são locais onde a ajuda aos outros, fragilizados pela doença, é uma característica basilar, sendo um fundamento indispensável do trabalho do pessoal sanitário. Em segundo lugar, o cunho universalista: o hospital aceita todas as pessoas doentes, sem discriminação de qualquer natureza. E em terceiro lugar, a necessidade de incluir os doentes dentro de um espaço único, pois só assim é possível haver a funcionalidade que os serviços médicos exigem.

Não podia deixar de referir, como exemplo vivo da aplicação de alguns destes princípios, como se houvesse ainda uma inspiração que bebe nas suas origens, a criação das modernas unidades de cuidados paliativos. São edifícios próprios ou integram-se como enfermarias de hospitais gerais. Acolhem os doentes incuráveis, sem qualquer discriminação; o seu objectivo é confortar (qualidade de vida), utilizando a medicina para controlar os sintomas das doenças e aliviar o sofrimento. Preocupam-se por todas as necessidades do doente e dão também atenção às suas famílias. Os problemas psicológicos, os constrangimentos sociais e as preocupações espirituais têm naturalmente atendimento. Não estamos, pois, longe das ideias que apontámos atrás e que tiveram peso na fundação dos primitivos hospitais. Acrescenta-se hoje o progresso científico extraordinário que o tempo vai acumulando. Mas, como sempre, também os caminhos de hoje não são totalmente lineares. Os desafios continuam.

 

BIBLIOGRAFIA

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Bernardo Villa Nova, Mais subsídios para a história de Alcobaça. Alcobaça (1962).

 

*Texto da conferência proferida na Sala do Capítulo do Mosteiro de Alcobaça, no Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, 18 de Abril de 2009.