A divindade do feminino, como dizem os ocidentais, tem mil rostos. Ou milhões, incontáveis. É a Mãe Divina, partilhada em todas as mulheres santas que temos o privilégio de venerar. Santa Sara Kali é também Ela em uma de suas faces.

Sua lenda, assim como toda boa história que foi contada oralmente, tem muitas versões. Costurando algumas, remonta dos tempos em que Jesus Cristo peregrinava com seus discípulos. Acredita-se que José de Arimatéia, rico seguidor de Cristo, tenha cedido Sara, então escrava egípcia, à Maria Jacobina (ou de Cleófas, irmã de Maria de Nazaré), Maria Salomé (mãe dos apóstolos João e Tiago) e Maria Madalena. Sara conviveu com Jesus e, por ser um espírito missionário de luz rara, absorveu seus ensinamentos com rapidez.

Uma narrativa diz que todos os ferreiros de Jerusalém se recusaram a fazer os três cravos para a cruz. Por conta disso, os romanos capturaram um ferreiro cigano de nome Jacó, que foi obrigado a fazê-los e cravá-los no mestre. Jacó, inconsolável, pedia perdão enquanto o fazia, mas Kristesko (Cristo) o disse: “confie naquela que sairá das águas. Ela ajudará muito o seu povo.” A notícia correu com os pés nômades de muitas crenças dos clãs ciganos e perdurou. Santa Sara Kali era aguardada.

Aconteceu então que José de Arimatéia cedeu o sepulcro de sua família para o sepultamento do corpo de Jesus, ato proibido para aqueles que eram condenados. Como José era uma figura importante, rico Senador de Jerusalém, os romanos não podiam matá-lo. Colocaram-no junto com outros fiéis, em um barco sem remos e provisões no Mar Mediterrâneo. Nele, as chamadas Três Marias (Jacobina, Salomé e Madalena) junto a Sara oravam pela salvação. No decorrem dos dias todos se desesperaram, menos a Santa Negra, que jurou usar véu a vida toda se os passageiros fossem poupados, como símbolo de seu casamento sagrado com a fé cristã.

Eis que no dia 25 de maio a terra é avistada! O barco naufraga e todos são socorridos por pescadores de um vilarejo francês hoje chamado Saintes-Maries-de-la-Mer (Santas Marias do Mar). Sara, contudo, foi salva por um grupo cigano que acampava no local e com eles viveu, acolhida, até o fim de sua vida.

Com sábia metáfora, Sara levou Jesus ao povo cigano. O homem que peregrinava e levava o amor, a caridade e a fé por onde passava. Nada diferente dos clãs ciganos, que absorviam diferentes crenças pagãs e monoteístas e as espalhavam pela terra.

A mãe cigana sagrada nunca se casou e nunca tirou seu lenço da cabeça, como havia prometido. É por isso que até hoje tradicionalmente a oferta dos fiéis a ela é de um lenço, deixado na cripta onde ela é sepultada em Saintes-Maries-de-la-Mer. O mês de maio é marcado pelas peregrinações dos ciganos de todo o mundo para a visita da cripta, culminando no dia da chegada do barco à praia, o 25 de maio.

Padroeira do povo cigano, historicamente um dos povos nômades que mais sofre com perseguições e extermínios ao longo da história, Mãe Sara é também negra. Kali no idioma romanês dos clãs Rom e Sintos significa negro ou negra, referente aos povos originários do continente africano que também, em suas diferentes etnias, sofrem perseguições e extermínios.

Mas como sabemos na espiritualidade nada acontece à toa. Assim como a Umbanda utiliza o arquétipo do caboclo e do preto velho para quebrar paradigmas sociais preconceituosos e dar voz aos marginalizados, a figura de Santa Sara Kali é igualmente catalizadora do poder de pertencimento e resistência. Ela une, cuida, acalenta, sustenta, dá forças. Abre os braços e coloca embaixo de seu véu.

Recorra a Santa Sara, muito procurada por mulheres em busca de engravidar, pela saúde, prosperidade, amor e superação. Sua benção se estende do extremo oriente às Américas, ainda nos pés e nos corações gitanos. Salve a Mãe Negra, Mãe Sagrada Cigana, Santa Sara Kali! Optchá!

 

Oração:

 

Nos seus pés eu me prostro, ó mãe divina e benevolente.

A sua força eu evoco, porque a Senhora habita a minha mente!

 

A força gitana, de luta e compaixão, na barra da sua saia eu encontro.

No seu ventre eu encontro. Meu coração canta em reencontro.

 

Santa Sara Kali, roga pela minha família. Roga pelas minhas máculas. Nina-me no seu véu sagrado!

 

Traz o povo cigano pra perto de mim!

Que pôde aprender com vós os mistérios da vida. Que eu tenha a humildade de aprender com eles, de ouvi-los.

 

Mãe me coloca no caminho a verdade.

Faz-me ver com seus olhos puros.

A sua benção divina! Optchá!