A MADRASTA

            Não faz isso, menino. Vou contar a teu pai logo que ele chegar. E já sabes como é. José começava a tremer. Sabia que o pai não perdoava toda vez que a sua madrasta o denunciava por qualquer tolice. O mínimo ficaria de castigo, depois de levar uns croques ou uns puxões de orelhas.

            A madrasta não o tolerava porque José era filho da primeira mulher de Altino, que morrera tempos atrás. Fervia de raiva quando Altino trocava os nomes, achava que ainda não havia esquecida daquela legítima esposa. E por isso, quem pagava era José, que nada tinha haver com os ciúmes da madrasta. Mas com o tempo José chegou ao uso da razão. E não fez como os outros meninos que fogem de casa e se aventura mundo afora.

            Iria sustentar o pinhão na unha, mostrar a madrasta, Maria da Paz, que o mundo não haveria sido feito para ela. E faria o pai compreender quem era ela.

- Que diabo ainda está fazendo acordado endemoniado. Hora de dormir é hora de ir para cama. Dá-me um pouco de descanso, menino peitado.

            - Não estou com sono e não vou para o quarto.

            - A parti de hoje irei dormir quando tiver sono ou quando e muito bem entender. Vai se acabar o cativeiro. Tenho oito anos e não sou nenhum menino buchudo. Quem podia mandar em mim, Deus já levou. Não adianta mandar. E pode enredar a meu pai quantas vezes quiser.    

            - O que? Seu rebelde desobediente. Teu pai vai saber e vai ver a festa que fará contigo. Nem quero ficar por perto.

            - Acabou-se sua alegria. De agora por diante vou me defender. Pensa que sou cego e não entendo as coisas. Pois sim! Pensa que não vi suas conversas com o farmacêutico, mais de uma vez. Um rindo para o outro e fazendo gestos. Vai me pagar o novo e o velho.

            - E eu te mato, seu mentiroso. Vai me pagar esta falta de respeito.

            - Como quiser, mas não engulo mais suas denuncias, caladinho entende. Poderia ter fugido as suas perseguições, mas esta casa é mais minha do que tua. Quando chegou já me encontrou. E agora não tem outra saída. Vou contar a papai tudo que eu sei e vamos ver quem leva a melhor. Pensava que iria enganar meu pai a vida toda?

            - Vem aqui. Não contes nada e eu serei boazinha contigo. Faz de conta que se acabou a ciumada. Embora o que estas pensando não sejam verdade, fica sempre uma dúvida irreparável. Teu pai me conhece e sabe que não sou capaz de uma leviandade. Não irá acreditar. Ele me ama e quando uma pessoa ama outra é capaz de perdoar tudo. Não ganhara nada indo mentir para ele. Converso com o farmacêutico, pedindo-lhe remédios e fortificantes. Além disso, é um homem honesto e direito.

            - Tem nada não, ele acreditara se quiser, mas vou contar o que tenho visto. Ao menos ele ficará prevenindo e sabendo a mulher que mora com ele, quem é. Não esta esquecida de que apanhei e fui castigado muitas vezes só por causa de seus enredos. Chegou à hora de me vingar. Pensas que não vi quando pegou a mão do farmacêutico e apertou-a. Não vai me escapar.

- Iras é levar outra surrota dessas de derreter os miolos. E poderás evitar se ficar caladinho.

- Esta é muito boa! A senhora faz das suas, atraiçoando papai e quem paga sou eu. Veremos. E tem mais. Pensa que não percebi também o seu balançado pro lado do mocinho que entrega o leite? E essas suas saídas quando papai vai para a fazenda. Pensa que não vou atrás e vejo onde entras. Imagina se tivesse se casado com ele, o angu que iria ser. Vou mostrar até os lugares aonde vai. Vai ver que papai vai mandá-la embora. E faz muito bem. Ele merece coisa melhor. Foi muita sorte não ter se casado. Acho até melhor que fuja logo antes dele chegar amanhã. Assim poderá livrar-se do que vai acontecer. Não me ofereça nada, nem tente me enganar, pois tudo será perdido.

            Maria da Paz entrou para seu quarto, transtornada e arrependida. Bem que poderia ter cuidado carinhosamente do José. Não lhe custaria nada e, agora, estaria livre daquela terrível situação. E pensou, pensou e viu que José tinha razão. O pior seria esperar; e o menino estava envenenado e sobrava-lhe motivo. Tomou a maleta, arrumou suas roupas, pegou dinheiro que ia juntando e esperou que o José adormecesse; então abriu a porta e saiu. A maleta pesava-lhe mais do que suas próprias forças. Mudava a maleta de mão e terminou colocando-a a cabeça. Deveria amanhecer longe e andar o dia seguinte vigorosamente. Ao anoitecer entrou na cidadezinha de Algodoais, onde deveria pernoitar ou talvez, permanecer.

José acordou com a casa vazia. Assustou-se, mas terminou concordando que fora o melhor que poderia ter feito. Ia esperar o pai para explicar-lhe a ocorrência. E sentia-se feliz em saber que estava livre daquela mulher perversa e desumana. Por outro lado, o pai libertava-se de uma criatura indigna que o estava traindo em suas ausências.

Altino chegou e José nada lhe disse. Esperava pelas perguntas que teriam de vir necessariamente. Altino, entrou, saiu e nem sinal de Maria da Paz.

- Para onde foi tua mãe?

- Não sei de nada. Não amanheceu. Desapareceu. Levou as roupas e a mala.

- O que fizestes com ela, José?

- Nada. Mas acho que ela fez certo. Não prestava para morar com o senhor.

- Como?

- Era sim uma mulher errada. Não só por lhe mentir me acusando, mas pela vida errada que levava. O senhor nem sabe. Saía para a cidade, entrava em certas casas e por lá se ficava um tempão enorme. Voltava como se não tivesse havido nada. Tinha um paleio também com o farmacêutico, que bem via.

- E por que não me contavas?

- Para ser castigado, como sempre. Ela lhe mentia e eu pagava pelas mentiras que lhe contava. Tinha medo do senhor e ódio dela. Como sempre saía em sua ausência, passei a fiscalizá-la. Sem dizer-lhe nada. E vi o que vi. Ontem me ameaçou novamente de contar-lhe suas histórias mentirosas. E foi ai que criei coragem e disse-lhe o que sabia. Certamente, culpada como era, teve medo e fugiu. Foi ótimo para o senhor e para mim.

- É pena que eu não a encontrasse aqui, para cobrar o desavergonhamento e a traição. E agora como me dói haver castigado injustamente.

- É. O senhor era enganado duas vezes: Eu paguei o pato e o senhor levou chifre. Está aí em que dá boa fé e paixão. E pense bem se tivesse se casado como ela queria.

- Deveria ir procurá-la para uma desforra. Mas o culpado sou eu mesmo, que não procurei antes saber quem era ela. Parecia uma criatura abandonada à procura de alguém que a salvasse. Mas o que era ela senão, uma mulher que buscava alguém para explorar e enganar. Ainda bem, meu filho que tivestes olhos para ver e coragem para ameaçá-la. Levou-me o dinheiro que lhe dei apaixonadamente, com o desejo de segura-la. Mas não há de ser nada. Os maus por se só se destroem. Os castigos que te dava, serviram para salvar-me. Arrependo-me por um lado e bendigo-os por outro.

- Mais tarde poderia ter sido muito pior. A Maria da Paz, quando disse que iria contar tudo que sabia, prometeu-me tudo, inclusive que seria boazinha comigo. Que o senhor não iria dar crédito e eu seria castigado. Preferi apanhar. Já estava calejado, por culpa daquela mulher.

- É José, hás de perdoar o teu pai. Desculpe-me. Vamos agora, viver sós. É melhor.

- Não acho. Penso que o senhor devia casar novamente, com uma pessoa compreensiva e honesta, de boa família e não apanhada na rua com se apanha gato ou cachorro abandonado. Aprendi muita coisa durante todo esse tempo. Estava sempre a pensar o que deveria fazer para livrar-me da situação em que estava. E por fim, resolvi esperar crescer para enfrentá-los. Tive sorte, porém, mas cedo do que pensava, descobri as manhas e socorri-me disso. Passei-lhe bem na cara e ela sumiu. Pois é. O senhor precisa de uma esposa e eu de uma mãe, que não seja madrasta.

- E se não der certo, José. Fui infeliz a primeira vez, na segunda fui traído e a terceira, quem sabe. Há pessoas que não tem sorte e amizade mesmo é coisa tão vasqueira que sempre se está na incerteza. Tentei com a Maria da Paz, por ter pena do seu estado de abandono e quase miséria. De inicio, mostrou espírito de gratidão e parecia-me uma criatura digna. Fez do que fez. Acreditava tanto na perjura que chegava a castigar-me, na convicção de que andavas faltando-lhe com o devido respeito.

Imagino a tua revolta e como me julgavas. Certamente um pai desalmado e injusto. E tinha razão. Confiava demais nos falsos carinhos daquela ingrata e irresponsável.

- Pois olhe, olhe pai, conheço uma moça muito boa e que eu mesmo gosto muito dela. Quem sabe se não daria certinho. Pelo menos é gente de boas qualidades morais.

- Quem, quem?

- O senhor conhece; não é novinha, novinha, mas também não é nenhum couro velho. Vistosona, educada e séria. É a dona Joselita de Abreu. Quem sabe se o senhor falando, ela venha a querer. Toda moça gosta de se casar. E já não se casou porque parece que não dá confiança a ninguém.

- Ou é o gênio dela, José? Sei lá!

- É não. Ela não teve foi jeito para namorar. Encabulada. Tem gente assim.

- E quem foi que te disse que tenho jeito ou coragem para isso.

- Quem não tem, cria, ora essa.

- Vou pensar.

E José sem dizer nada ao pai, foi à casa de dona Joselita. Menino travesso e abelhudo. Gostava dela e, segundo ele, estava fazendo-lhe uma visita. Mas serviu-se da ocasião para falar sobre o pai, a casa, ele sozinho e o pai na fazenda. Era tudo tão triste, sem uma dona de casa. A que existia não prestava e se foi, empurrada.

- E porque teu pai não se casa?

- Pois não é mesmo. Já disse a ele, mas disse que queria pensar e sabia que ninguém o queria mais. Fiquei até com pena dele. Um homem tão bom e tão trabalhador. Quando volta da fazenda fica tão desolado, para um canto, calado, como se não estivesse olhando pra nada. É. Eu chego até a ter medo daquela coisa. Só queria que ele encontrasse uma moça que ainda o quisesse e se casasse. Imagine que até, certo dia me lembrei da senhora. Menino tem cada arrancada, pois não foi.

- E ele o que foi que te respondeu?

- Está louco, José, dona Joselita, tem Juízo, vai lá pensar num homem desventurado como eu. Tem cada ideia, José!

- Mas, pai, gosto tanto de dona Joselita. Pra mim seria ótimo. Mas depois pensei também que a senhora não ia querer. E ficou nisso. Mas papai deve se casar. Uma casa sem uma dona, não tem graça. A Maria de Paz, por ruim que fosse dava certa vida a casa. Imagine-se a senhora. Que beleza!

- Também ando pensando me casar, José. Mas a iniciativa é dos homens. E José ouviu isto e botou o pé para casa. Contou ao pai toda conversa e especialmente aquele final. “A iniciativa cabe aos homens”. Pois bem, eram ir lá, conversar, dar andamento as coisas...

- Vou pensar.

- Novamente, deveria ter pensado foi quando apanhou na rua a Maria da Paz. Se não tem coragem, eu tenho e vou lá levar um recado que o senhor não mandou. Saberei hoje mesmo. Pois não é. Os dois querem se casar e fica nesta lengalenga. Por que não faz uma carta, então. Se também tem medo de fazer, eu faço a minha maneira. Dou o nó e escondo a ponta. Dona Joselita está mesmo no ponto e deve estar lhe esperando. Vamos lá, seu molenga. Para me bater por causa daquela vaca, a mão era ligeira, não vacilava. Eu já sabia toda vez que voltava da fazenda já com a boca cheia d’ água só e só para ser agradável aquela besta de lote.

- Pois bem, tome seu banho, troque de roupa, jante e vamos ver dona Joselita.

 - Não tem educação não. Deixar uma dama esperando, que grosseria, se eu for sozinho será muito pior e quem vai dormir com dona Joselita é vosmincê. Por isto tem que vê-la de perto, sentir o cheiro, olhar a curvas do corpo.

- Dize-me uma coisa, José, onde aprendestes todas as coisas?

- Ora com os companheiros. Tem uns que só falam em mulheres. Vou ouvindo suas tramóias e vou aprendendo. E agora está me servindo, não acha? Cuide, cuide. Dona Joselita pode dormir cedo e quem sabe se o senhor não vai querer ficar logo por lá...

- Está perdido, menino!

- Quanta patifaria!...

- José. Respeita o teu pai.

- Pensei que dizer o que a gente pensa não ofendia.

- É, mas está indo muito longe. Eu em tua idade, não era nem doido para falar nestas coisas.

-Bem, vamos deixar de conversa comprida e vamos ver dona Joselita que deve estar em êta.

Duas batidas na porta e dona Joselita veio abrir.     

- Pronto dona Joselita, papai veio lhe visitar e pedir-lhe para casar com ele.

- Você é maluco, menino endiabrado. Em casa vai me pagar.

- Espere, e é nada demais dizer a verdade... O senhor não disse que eu não devia mentir. Não é mentir.

- É a intromissão, o adiantamento, seu corno.

- Olha aí o senhor dizendo palavra feia...

- Mas afinal o que foi que o senhor veio ver aqui. Crie coragem.

Duas semanas depois estavam os dois em casa do juiz. E José, feliz da vida. Tinha uma nova mãe e o pai derretia-se de contente. A casa recebeu novo arranjo. Pelas janelas todas abertas, entrava mais alegria e mais vida.

           

João Henriques da Silva

(In Memoriam – 20/09/1901 – 16/04/2003)