A liturgia do recesso

 

Votar, apenas votar, e depois virar as costas, não resolve, não realiza o ideal democrático. Ao contrário, frustra-o.

 

Erra, e erra crassamente, quem vota e diz que já cumpriu o seu dever.

 

O voto é apenas o começo. A saúde do regime exige permanente vigilância, cobrança, participação.

 

Ao votar, o eleitor injeta sangue no organismo social. Ao virar as costas após o voto, corta as jugulares.  

 

Corre livremente a convicção de que o brasileiro não faz outra coisa senão isso mesmo: votar, e virar as costas.

 

E nas costas do descaso, costuma-se dizer, o mister político cavalga livre de condicionamentos éticos.  

 

É quando, então, instala-se o regime da verdade pela força, que se resume no lema sabe quem manda, antítese do platônico manda quem sabe.   

 

Com facilidade percebe-se o endosso   dessa formulação teórica  no desenrolar do caso Sarney, a quem o Presidente Lula resolveu outorgar,  ex abrupto,  a salvaguarda  incondicional da probidade.

 

Nada obstante, diga-se a bem da justiça, o brasileiro não vira as costas  por preconceito. Essa atitude não caracteriza má vontade especifica contra políticos. Poderia até dizer-se que se trata de uma reação lógica, tendente a rejeitar qualquer elemento estranho ao modelo de vida traçado   pelas ideologias dominantes.

 

Com efeito, a vida moderna não dá nenhuma chance à concorrência ─ uma vida sedutora, dócil a brindes e a toques leves, confortável, festiva, excitante, sensual, articulada  na alternância   do trabalho e do lazer. 

 

Além disso, a rejeição não é caprichosa, nem gratuita. Quem rejeita, não saca a descoberto. Quem rejeita trabalhou o dia inteiro, a semana toda, deu um duro danado, e, como ninguém é de ferro, acha-se no “sacro” direito de decretar, após o expediente, tolerância zero a qualquer assunto que ameace deturpar  a pauta das amenidades, ou, dito de outro modo, que ameace profanar a liturgia do recesso.     

 

Não! Definitivamente não cabe ao brasileiro a culpa de sua própria alienação. Contudo, encerrar a exposição, alegando tratar-se de um fenômeno cultural, equivale a fechar o caixão com o paciente ainda vivo.

 

Por isso, a curiosidade impele a manter a questão em aberto, até que se delineiem com maior nitidez os agentes interessados na manutenção do modelo cultural alienante.

 

Bem, pode parecer coincidência, mas nos últimos tempos todas as políticas convergem para garantir o trabalho e incentivar o lazer.