A Linguagem Invisível das Multidões
Por Samuel Pedrozo Borges | 22/07/2025 | CrônicasA multidão se move. Não porque escolheu, mas porque foi moldada para isso, e o movimento não começa com os pés, mas com um gesto que não se vê, uma inclinação imperceptível, uma expectativa imposta por um sistema que não se nomeia. Um olhar de lado, um franzir coletivo, um silêncio mais denso que o habitual - e, de repente, todos se adiantam. A massa responde, mesmo sem saber por qual motivo, é o tipo de reação que não se ensina com palavras, mas com convivência, a cultura do hábito, da repetição, do medo disfarçado de normalidade.
Existe uma linguagem que conduz tudo isso e ela não está escrita em lei, mas é tão eficaz quanto, não aparece em discursos, mas determina cada passo. Ela vive nas entrelinhas das regras sociais, nos rituais diários, na pressão que empurra, na omissão que paralisa, é a linguagem invisível das multidões. E não precisa convencer ninguém - basta fazer funcionar.
A coletividade, nessa lógica, não é somatória de forças, mas de fraquezas. Ela avança como bloco, mas por dentro está oca, o espetáculo da coesão social esconde a fragilidade individual e tudo parece estável, confiável, contínuo. Mas basta um toque para revelar que a estrutura é feita de farelo e o que se vê é a forma, o que se tem é esgotamento, a imagem de estabilidade é um disfarce meticuloso, pois quando se exige mais do que se aparência, tudo rui.
A culpa não está nos processos, mas nos processados, não falta orientação - falta capacidade. As diretrizes sociais estão postas, as expectativas são claras, os papéis foram definidos, mas isso pouco importa quando os indivíduos que integram essa maquinaria falham sistematicamente. Falham não por acidente, mas por formação, a debilidade está no alicerce humano, e ela não é ocasional - é essencial.
As pessoas caminham sem saber por quê. Elas levam bandeiras que não entendem e reproduzem frases nas quais não acreditam. Trabalham para sistemas que as corroem, pois a linguagem da coletividade não exige convicção, apenas presença, os gestos vêm antes da compreensão e a resposta precede a consciência. E assim se perpetua a ilusão de funcionamento e a aparência de civilidade, de organização, de progresso.
Mas tudo é artifício, um espetáculo encenado sobre terreno podre onde em algum momento — e sempre chega esse momento — alguém falha, alguém hesita, alguém tropeça. E não é por falta de informação, mas por cansaço, por desatenção, por ausência de real preparo. Uma atitude fora de compasso, uma ação isolada fora do esperado, e o tecido social se rasga, primeiro devagar e depois em torrente.
Os mais atentos percebem que algo está se desfazendo e que a harmonia era apenas um verniz. Tentam sustentar os ritos, manter os papéis, repetem aquilo que acreditam ser o certo, mas, já é tarde. A confiança evaporou, a coesão se tornou poeira e a linguagem da sociedade já não ressoa, porque aqueles que a deveriam sustentar já não a compreendem - ou nunca compreenderam.
Não é a ausência de liderança, nem a falência de um ideal coletivo, é apenas a pequenez das peças, o despreparo dos que deviam manter de pé o edifício comum. A estrutura faliu porque foi entregue a mãos fracas, a vozes inseguras, a olhos que se desviam. E a ruína não será dramática - será burocrática, silenciosa, mas a multidão continuará andando, sem notar que caminha para o nada.
A cidade ainda pulsa, há carros, discursos, funções. Mas não há sustentação, tudo se move por inércia, os sistemas ainda operam, mas estão ocos e são mantidos por quem já não acredita, já não compreende, já não reage. E mesmo assim, seguem porque a linguagem invisível das multidões ainda os empurra, ainda os convence, sem dizer uma só palavra, pois é preciso continuar mesmo sem sentido, mesmo sem fim.
E o fim chega, não com estrondo, mas com apagamento. Um dia alguém tenta acessar algo e não consegue, outro tenta reagir e não encontra eco, um outro chama, e ninguém responde. A estrutura social, tão bem desenhada, simplesmente deixa de operar e todos fingem que não viram. A multidão não reage, apenas se dissolve.
A linguagem invisível das multidões, afinal, não serve para salvar, apenas serve para adiar e um dia, não adia mais. O colapso se instala, não como erro mas como conclusão natural de uma sociedade construída por mãos que não sabiam o que faziam e agora, também, não sabem o que fazer com o fim.
Samuel Pedrozo Borges