No Brasil, o princípio da não culpabilidade, também conhecido como a presunção de inocência foi interposto pelo legislador constituinte na Constituição de 1988, nos termos do art. 5°, inciso LVII: “Art. 5°, LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; ” Deste modo, tal princípio é de parâmetro universal, visto que esse é um direito estabelecido na Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 11:
“Art.11, 1 - Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. ”
Como se ainda não bastasse, o Brasil adota a Convenção Americana dos Direitos Humanos, mais conhecido como Pacto São José da Costa Rica, por meio do Decreto Legislativo nº 27, de 26 de maio de 1992. Assim, destaca-se o seu art.8º, I:
“Art. 8°, I - Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. ”
Entretanto, tal direito causa controversas na esfera administrativa, visto que o Estado se utiliza da lei para estabelecer a ordem e harmonia no trânsito, visando um sistema de sanções no âmbito administrativo, com multas pecuniárias até a suspensão do direito de dirigir. Assim, ao analisar o Código de Trânsito Brasileiro, mais especificamente o art. 165-A, vê-se que tal dispositivo leva a uma contradição do princípio da não culpabilidade, encontrando-se nos seguintes termos:
Art. 165-A. Recusar-se a ser submetido a teste, exame clínico, perícia ou outro procedimento que permita certificar influência de álcool ou outra substância psicoativa, na forma estabelecida pelo art. 277:
Infração – gravíssima:
Penalidade - multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses:
Medida administrativa - recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4º do art. 270.
Contudo, vê-se que tal infração é imposta somente pela recusa do teste, exame clínico ou qualquer outro dispositivo que vise constatar a influência do álcool ao dirigir, independente da arbitrariedade do pedido, visto que existe legislação específica para a situação em que o condutor esteja realmente
alcoolizado, constatado mediante teste competente, ou então, de acordo com um termo de constatação de sinais de embriaguez.
Portanto, vê-se que o condutor é considerado culpado, sem a realização de qualquer teste, sendo penalizado somente pela mera recusa do teste, e ainda, pode-se ver uma afronta ao princípio "nemo tenetur se detegere" (o direito de não produzir prova contra si mesmo), disposto também no art. 5°, LXIII “Art. 5 - LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; ” Direito também respaldado na Convenção de Direitos Humanos de 1969, no seu Art. 8° “direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a confessar-se culpado”. Portanto, vê-se que tal dispositivo interposto no CTB entra em total confronto com o disposto na Constituição, visto que apenas a mera recusa ao teste é razão de penalização, sendo necessário pagar multa pecuniária e tendo seu direito de dirigir suspenso, de forma que o Estado intervém diretamente na vida privada do cidadão, interferindo no seu modo de locomover, por não se auto incriminar, não precisando demonstrar sinais de embriaguez. Logo, vê-se que o Estado intervém na vida privada do condutor, ao “praticamente impor” a realização de teste competente para verificação de embriaguez, quando este solicitado, mesmo que de forma arbitrária. Ademais, vê-se que tal abordagem remete a uma antiga e controversa temática, até que ponto o estado pode intervir na vida do cidadão, seja obrigando-o a votar, ou então, a realização do respectivo teste. Por fim, destaca-se o pensamento do jurista doutor em Direito Penal pela USP João Paulo Orsini Martinelli:
“Quem elabora as leis são as pessoas que estão no poder, e não se pode permitir que estas digam como a sociedade deve se comportar”
Deste modo, é necessária uma revisão a tal dispositivo, visto que demonstra uma total afronta aos direitos e garantias constitucionais, estabelecidos na legislação vigente, bem como, tratados internacionais em que o Brasil é signatário.
Bibliografia:
INTERVENÇÃO DO ESTADO. Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/quando-o-estado-se-mete-onde-nao-deve-bi9jrio8514vgs0ode6soz6fi Acesso em: 12/04/2018.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p.
BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. Arnaldo Luis Theodosio Pazetti. São Paulo: RIDEEL, 2017.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2011.