Esta temática tem como objetivo fomentar uma discussão, à luz da bibliografia disponível, da Lei Nº 11.645 de 10 de Março de 2008, a qual altera a Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que por sua vez foi modificada pela Lei Nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabelecendo as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena" nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, tornando obrigatório o estudo da História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.
Em seu Art. 26, § 1º e § 2º, a Lei 11.645/08 determina: que o conteúdo programático, a que se refere este artigo, incluirá diversos aspectos da História e da Cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos; a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil; a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil; que os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e de História brasileiras.
Destarte, o trabalho reúne reflexões acerca da Lei 11.645/2008 ? MEC, enfocando o posicionamento de instituições de ensino que professam religiões cristãs, bem como dos profissionais que nelas atuam, em detrimento dos aspectos culturais a serem disseminados em sala de aula sobre as raízes históricas do povo negro (África) e dos indígenas. Não obstante, a discussão enseja um aprofundamento maior sobre as temáticas levantadas, sem a pretensão de ferir a diversidade religiosa predominante, lançando um olhar sobre a necessidade de que o avento legal receba um tratamento didático em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Assim, a relevância da proposta consiste na abrangência e também na importância que assume a questão do currículo, desde que sua elaboração encontre respaldo na proposta da referida Lei, buscando tornar conhecidas as origens do povo brasileiro, dialogando com e entre os múltiplos olhares que formalizam as diferentes ramificações religiosas existentes no Brasil, alterando o seu entorno sócio-histórico e cultural.


Igreja e Inculturação

O relacionamento do Evangelho com os povos indígenas e africanos é um assunto tão antigo quanto a história do cristianismo. Desde o início de sua trajetória, a Igreja teve que dialogar não apenas com as grandes civilizações da época, a grega e a romana - identificadas com as cidades -, mas também com os chamados povos da aldeia (pagus, do latim, daí o termo pagão). Estes últimos foram os que mais resistiram à nova religião.
Esse fenômeno do início é emblemático. Coloca-se no sentido oposto à história das missões nos séculos sucessivos, sobretudo a partir de 1.500. De fato, na época moderna o cristianismo conseguiu adeptos entre os seguidores das religiões tradicionais, como na África, mas poucos frutos recolheu entre as grandes religiões, originárias, sobretudo, da Ásia.
Há um elemento em comum entre as culturas dos povos indígenas em qualquer parte do planeta: são profundamente religiosas, ao ponto de a religião impregnar a vida desses povos. Esse aspecto é extremamente importante na hora de a Igreja propor o Evangelho. Caso contrário, pode voltar a repetir o erro de querer começar do marco zero, ou de considerar as outras religiões desprovidas de elementos positivos ou "primitivos".
A história mostra que a Igreja e a maioria dos missionários enquadravam a religião dos povos indígenas e africanos (e também as grandes religiões) no "paganismo" e na idolatria. Assim se expressava José Marinoni, diretor geral do Pontifício Instituto para as Missões (Pime) em 1863.
De tantas grandezas da fé o que sabe o pobre idólatra? Nem o nome. Feito à imagem e semelhança de Deus, ele se degrada à estupidez dos brutos insensatos. Criado para o céu, não vê nada, a não ser a terra, chamado à eterna beatitude, corre, de olhos fechados, à eterna ruína.

Na verdade, a sociedade cristã servia de medida às outras sociedades. É claro que, com tais premissas, o relacionamento dos cristãos com as outras religiões não podia acontecer como entre iguais, mas como entre superior e inferior, entre quem tinha tudo e podia dar e quem não possuía nada e só podia receber. Os missionários tinham a convicção de que a religião ensinada por eles era oposta às religiões "pagãs". Estas deviam ceder lugar ao cristianismo.
Ademais, na obra missionária de evangelização de várias Igrejas, os povos indígenas e africanos nem sempre tiveram suas culturas respeitadas. Ao longo dos séculos, missionários, militares e mercadores foram estritos aliados numa sangrenta colonização de exploração e imposição religiosa dos primeiros habitantes dos cinco continentes.
Onde a conquista pela espada avançava, as populações eram obrigadas a tornar-se cristãs. A necessidade da sujeição pela força era uma convicção muito forte para os missionários que evangelizavam os territórios colonizados. Só algumas vozes proféticas levantaram-se corajosamente em defesa dos indígenas e africanos, causando alvoroço e escândalo no meio da sociedade branca. Mas não conseguiram mudar o quadro geral da prática missionária.
Atualmente, a ação evangelizadora e a reflexão de vários setores de muitas Igrejas têm convicção de que é preciso percorrer outros caminhos para anunciar a Boa Nova de Jesus. O evangelho não deve ser imposto, mas semeado e descoberto na sabedoria dos povos. A Igreja não deve mais ser implantada, mas brotar da terra fértil das diferentes culturas e das tradições milenares.
A palavra "inculturação" tornou-se importante para expressar a radicalmente renovada Igreja Missionária. O evangelho é anunciado para um princípio que anima, guia e unifica as culturas, transformando-as e renovando-as a partir do seu interior até produzir uma nova concepção.
O trabalho dos missionários e das missionárias junto aos diferentes é marcado não mais pela superioridade cultural e espiritual, mas pela proximidade, pela gratuidade e pela solidariedade para com as lutas e os projetos de vida de todas as comunidades. Afinal, o Senhor Jesus, em seu ministério na terra, não fez acepção de pessoas.


Intolerância religiosa

Refletir sobre este tema requer um certo cuidado, mesmo vivendo sob um legado constitucional que reza a liberdade religiosa, conforme assegura o Art. 5º da Constituição Federal de 1988, expondo em seus Incisos VI e VIII, dispositivos sobre liberdade religiosa, que:
VI ? é inviolável a liberdade de consciência e de crença;
VIII ? ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Nesse sentido, vale ressaltar, que o amparo constitucional vem bem antes do advento da Lei 11.645/2008 ? nada mais nada menos que 22 anos ? e, por sua vez, já amplia os horizontes para a liberdade de culto e não meramente a autoridade e supremacia de religião A ou B. Contudo, diante da pesquisa levantada, observa-se que esse legado tem encontrado algumas "reservas", tanto pelos próprios educadores, por entenderem que se assim agirem, estarão ferindo a religião que professam, como pela sociedade de um modo geral, especificamente os segmentos religiosos que têm o cristianismo como base de sua fundamentação e como regra de prática e fé.
O que se percebe, de fato, é que a cultura eurocêntrica recebe o privilégio na priorização dos conteúdos ministrados em sala de aula, fazendo jus a uma demanda nada justificável no que concerne os ideais de liberdade de culto legalmente preceituados. Tal posicionamento dá a entender a resistência em aceitar o outro na sua totalidade, e infelizmente, isso é realidade na educação, pois muitos professores ainda ignoram que o Brasil, antes de sua povoação pelos portugueses, tinha como habitantes os povos indígenas e os africanos, por sua vez, trazidos à força para uma terra desconhecida, para serem escravizados pelos povos brancos, tinham, como quaisquer outros povos a sua cultura, a qual já agregava costumes, rituais e crenças com tal grau de pertinência para esses povos, assim como o cristianismo o é para os seus adeptos.
Um exemplo claro dessa resistência nos dias atuais, pode ser encontrado em alguns sites que relatam sobre a situação constrangedora da professora Maria Cristina Marques, na disciplina de Literatura Brasileira da Escola Municipal Pedro Adami, em Macaé/RJ, ao trabalhar em sala de aula, à luz e proteção da Lei 11.645/2008, o livro "Lendas de Exu", do autor Adilson Martins, ressaltando que a referida obra tem o respaldo do Ministério da Educação e Cultura. O ocorrido teve o seu apogeu diante do posicionamento assumido pela diretora da escola Mery Lice da Silva Oliveira, com o respaldo de alguns pais de alunos, proibindo-a de lecionar na referida escola.
Diante desse abuso de poder, declara a professora que:
Acusam-me de dar aula de religião. Não é verdade. No livro ?Lendas de Exu?, de Adilson Martins, há histórias interessantes, são ótimas para trabalhar com os alunos. Li os contos, como se fosse uma contadora de histórias, dramatizando cada uma delas. Praticamos Gramática, e os alunos ilustraram as histórias de acordo com a imaginação deles. Não dá para entender por que fui tão humilhada. Até mães de alunos, evangélicas, me proibiram de falar sobre a África (Fonte: http://www.joaodefreitas.com.br/cristaos-sim-mas-outros-nao.htm).

Em presença deste esclarecimento, fica explícito o nível de acepção encontrado na própria educação, cenário para o qual a Lei em referência está voltada. Valendo lembrar, que é uma forma de justiça e de valorização, seja do negro ou do indígena, trazer para o interior da sala de aula questões e debates que tornem conhecidas as origens do povo brasileiro, tanto em relação à historicidade desses povos, bem como os personagens outrora "escondidos", dado a aculturação da origem de um povo miscigenado como a população brasileira.
Na tentativa de compreender, com mais propriedade, a temática em discussão, ganha destaque aqui o trabalho desenvolvido pela Convenção Batista Brasileira, por intermédio da Junta de Missões Mundiais, cuja temática para este ano assevera: "Por Cristo vou até os confins da Terra" (Fonte: www.porcristovou.org.br). Como a campanha ocorre em nível mundial, seus chamamentos em relação à África declaram: "África: além da fome, das guerras e da pobreza que causam sofrimento, as crenças tribais e a feitiçaria mantêm milhões de africanos escravizados. Por Cristo, ajude a mudar essas realidades" (Fonte: http://www.porcristovou.org.br/download/outros_materiais).
Como é viável perceber, uma campanha nessa dimensão, amparada sob o slogan de a Junta de Missões Mundiais ter como a visão de "ser um referencial de excelência na expansão do evangelho a todos os povos" (Fonte: http://www.jmm.org.br), é notório lembrar que a intenção dos evangélicos não se estende apenas ao aspecto social, mas, sobretudo, o cultural que, por sua vez, afeta diretamente o religioso.
O que aqui se discute, não está voltado para qual segmento religioso seja o mais correto ser adepto, mas à forma de impedir que seja ao menos divulgada a cultura do outro, denotando um certo temor, no que concerne ao posto de adeptos, como os evangélicos e católicos se manifestam diante do que a Lei 11.645/08 ampara. É importante que fique claro o posicionamento que a discussão alcança: não se trata de fazer julgamentos preconceituosos acerca de A ou B, no entanto, é salutar conhecer as origens de povos que não escolheram fazer parte de toda essa miscigenação que caracteriza a sociedade brasileira.
Diante dessa exposição, é importante lembrar que, para o educador, nos dias atuais, em que constantes debates são construídos em torno da superação do racismo, ao agir em oposição aos aparatos que legislam que é tarefa deste raio profissional criar situações didáticas e focos de leituras "independentemente do seu pertencimento étnico-racial, crença religiosa ou posição política" (BRASIL, 2004, p. 16), que a resistência em se abster ao tema, comprova não simplesmente a sua intolerância sobre a religião do outro, mas um extremo grau de ignorância ao que os legados educacionais delegam.
Nesse sentido, "a escola, enquanto instituição social responsável por assegurar o direito da educação a todo e qualquer cidadão, deverá se posicionar politicamente... contra toda e qualquer forma de discriminação" (Idem, p. 16), chamamento este, que evidencia tanto o perfil profissional de um educador concatenado com as exigências sociais como comprometido com a pauta de políticas afirmativas, selando à sua prática a implementação de um conjunto de medidas e ações voltadas a ver o outro sob o olhar da igualdade e, agindo assim, comprovará o seu potencial de sujeito construtor de oportunidades de conhecimento e como defensor da inclusão social.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei 11.645 de 10 de Março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que por sua vez foi modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, estabelecendo as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena" nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados.

______. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília/DF, outubro de 2004.

______. Lei No 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.

______. Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

______. Constituição Federativa da República do Brasil de 1988. Brasília/DF.

Campanha da Junta de Missões Mundiais 2010 ? África. Disponível em <http://www.jmm.org.br>, acesso em JUN/2010.

Direito para cristãos, sim, mas outros, não! Disponível em < http://www.joaodefreitas.com.br/cristaos-sim-mas-outros-nao.htm>, publicado em 06/11/2009, acesso em MAR/2010.

Igreja e inculturação. Disponível em <www.pime.org.br/evanincultigreja>, acesso FEV/2010.

Por Cristo vou até os confins da Terra. Disponível em <www.porcristovou.org.br>, acesso JUN/2010.