A JURIDICIDADE DO SILÊNCIO.
Publicado em 01 de setembro de 2015 por JOSÉ GILMAR ARAUJO SANTOS
Poucos, talvez, afora os operadores do Direito, tenham percebido o quanto o silêncio tem elevada importância para a coletividade e para o indivíduo, ganhando foros de juridicidade e acarretando implicações diversas.
Tal qual à garantia constitucional da liberdade de expressão, o silêncio é uma manifestação da vontade, apresentando, assim, uma função jurídica e sociocultural indispensável do ponto de vista individual e coletivo. Sem ele, por exemplo, torna-se difícil ler e meditar numa Biblioteca Pública; com ele a convalescença, em hospitais, encontra forças. Num minuto de silêncio, é possível fazer um protesto político ou reverenciar ou homenagear alguma personalidade ou fato de repercussão histórica. Com o silêncio, o indivíduo pode encontrar a paz consigo próprio e refletir sobre o mundo em que vive. Ele pode ser útil à prudência balizando a liberdade de expressão.
Todos nós temos o direito ao sossego quando estamos em nossa casa. Muitos dos problemas atuais de convivência social decorrem do barulho originado na propriedade do vizinho ou na via pública. Imagine o alto volume do equipamento de som no imóvel ao lado, a reforma do outro vizinho que vai noite adentro, grupos musicais ensaiando, o sino da igreja em altas badaladas etc. Nesses casos, a falta do silêncio ou da moderação do barulho dá margem à poluição sonora que se tornou um dos grandes problemas ambientais nos grandes centros urbanos, tornando-se numa questão de saúde pública.
As modestas observações aqui lançadas visam trazer à tona um instituto pouco abordado na seara jurídica, não tendo, assim, a pretensão de firmar dogmas a respeito, mas tão somente propiciar uma discussão sobre o tema à luz do Direito.
O silêncio, como manifestação da vontade coletiva e individual, tem relevância jurídica, produzindo efeitos que afetam tanto o direito objetivo quanto o subjetivo. Aquele diz respeito ao ordenamento jurídico e este ao direito ou faculdade individual. Nessa perspectiva, importa-se assimilar, juridicamente, o silêncio não somente como ausência de expressão oral, mas também como não-agir.
Assim sendo, destacamos, de início, que o silêncio poderá ser o responsável pelo ingresso de uma lei no mundo jurídico. É o que se depreende do parágrafo terceiro do art. 66 da Constituição no qual o silêncio do Presidente da República importará sanção da nova lei. Se o Presidente da República deixar o prazo se exaurir sem praticar o ato formal da sanção, a lei produzida pelo Congresso Nacional entrará, automaticamente, no mundo do Direito Objetivo.
No plano do direito ou faculdade subjetiva, o silêncio produz efeitos de ordem material ou processual. No primeiro caso, é elemento da vontade que pode entrar na formação dos negócios jurídicos, acarretando ao indivíduo uma obrigação contratual em certas circunstâncias especiais[1]. Veja a lição do civilista Sílvio Rodrigues: “Excepcionalmente, entretanto, tem-se admitido a função vinculadora do silêncio quando, em virtude de circunstâncias especiais, a inércia de uma das partes deve ser compreendida como aceitação. Diz-se, então, ocorrer silêncio circunstanciado ou qualificado.” ( In: Direito Civil – Dos contratos e das declarações unilaterais da vontade, volume 3, 30ª edição, Ed. Saraiva, 2007, pág. 68.)
Por outro, pode o silêncio induzir a invalidade do negócio jurídico, viciando a manifestação da vontade e impondo ao seu autor uma responsabilidade civil pelos danos eventualmente causados. Nesse sentido, dispõe o Código Civil, nos artigos 147 e 150. Também, na teoria dos vícios redibitórios, o silêncio intencional produz consequências jurídicas ao alienante[2].
Mas, o Código Civil prevê o silêncio culposo? Sim, conforme se depreende da leitura do art. 186, que alcança a ação ou omissão, decorrente de dolo, negligência, imperícia ou imprudência, sendo estas últimas modalidades culposas a caracterizar o ato ilícito.
É possível se vislumbrar, portanto, no campo do Direito Civil, a existência do silêncio doloso ou voluntário e o culposo. Aquele afeta fato ou qualidade do negócio jurídico ou a boa funcionalidade da coisa alienada e o segundo pode dar causa a violação do direito; ambos demandam, em comum, a reparação pelos danos causados.
Na ótica do Direito Penal, o silêncio, em certos casos, pode ter relevância na configuração do fato típico. Em algumas hipóteses, percebe-se que se constitui uma clara omissão dolosa, um não agir como meio de se alcançar o resultado pretendido. É o que se observa em certas condutas como a da apropriação indébita(art. 169), do estelionato(art. 171), da falsidade ideológica(art. 299), da prevaricação(art. 319 e 319-A), da condescendência criminosa(art. 320), etc.
No processo penal, o silêncio leva-se a presumir a inocência, garantindo a liberdade individual. Aquele que for indiciado em Inquérito Policial ou acusado em Processo Penal tem o direito de ficar calado. As esferas Policial e Judicial não podem cercear-lhe tampouco julgar prejudicado quem o exercitar. Ninguém é obrigado a produzir provas contra si e o envolvido no crime é considerado inocente até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. (o art. 5º, da CF/88: “LVII e LXIII)
Mas, cuidado se deve tomar para não ficar calado quando se estiver na condição de testemunha ou de parte litigiosa.
A testemunha tem a obrigação legal de responder ao que lhe é indagado, quando compromissada de falar a verdade. Sem motivo justo amparado pelo ordenamento jurídico, a testemunha que ficar calada, quando indagada sobre o que viu ou ouviu, poderá responder por crime de falso testemunho. Isso porque calar-se constitui elemento constitutivo do delito previsto no art. 342 do CP[3].
Ao se demandar alguém ou se for demandado em juízo, deve-se responder sempre, afirmativa ou negativamente, ao que for perguntado ou se manifestar quando necessário; do contrário, pode ser considerado revel ou serem os fatos alegados presumidos verdadeiros. Vislumbra-se aí o velho brocardo popular de que “quem cala, consente”. Assim, fala o Código de Processo Civil, nos artigos 319, 343§1º e 345.
Nesse viés, ao contrário do ocorre no Processo Penal, em que o silêncio não representa confissão, no Processo Civil, esse efeito poderá ocorrer por expressa previsão legal.
Portanto, do pouco que aqui fora descortinado, deixa-nos claro que o nosso silêncio vale ouro, requerendo prudência para sua manifestação, uma vez que não só juridicamente gera efeitos como socialmente pode nos comprometer, pois 'quem cala, consente'.
- 1. Art. 111 do Código Civil: “ O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa.”
[2] Art. 443, do CC.: “Se o alienante conhecia o vício ou defeito da coisa, restituirá o que recebeu com perdas e danos; se o não conhecia, tão-somente restituirá o valor recebido, mais as despesas do contrato.”
[3] Art. 342. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral.”