A História da Filosofia organizada e redigida por Bernadette Siqueira Abrão e revista por Mirtes Ugeda Coscodai consiste em um empreendimento formidável, mesmo que tenha um cunho considerado apenas iniciático, pergunto: quem conhece todos os fatos na ordem cronológica em que eles ocorreram? Deste modo, é fundamental ter sempre à mão uma obra como esta: fundamental para compreender o que ocorreu e essencial para balizarmos o que poderá vir a ocorrer enquanto acontecimento filosófico, isto é, enquanto algo que nos faz pensar. Uma curiosidade sobre esta obra, ela foi toda pensada por mulheres: autora e revisora já indicadas, mas também: coordenação editorial de Janice Florido, chefe de arte por Ana Suely Dobón e paginação de Dany. A apresentação da autora é sincera e prática, mas fundamentalmente indica o que caminho que ela -- ou deveria dizer elas -- percorreram.  

A obra fora dividida em quatro partes: 1. Das origens à Idade Média (com quatro capítulos); 2. Renascimento e filosofia moderna (com três capítulos); 3. Do iluminismo ao liberalismo econômico (com cinco capítulos); 4. O pensamento contemporâneo (com três capítulos). Deste modo, a partir de sua simplicidade é muito fácil localizar-se uma informação dentro da obra. 

Passemos à primeira parte, nela, já indicada acima -- Das Origens à Idade Média --, bastante ambiciosa, traçar uma linha que vai de Tales de Mileto até o fim da Escolástica. Ainda nesta primeira parte, no primeiro capítulo, que dá nome a este texto -- 1. A Jornada Inicial: O Pensamento Oriental -- está disposta em quatro seções: 1. O pensamento oriental (com três parágrafos); 2. A Mesopotâmia, da Deusa-Mãe a Zoroastro (com três parágrafos); 3. A Índia antes de Buda (com três parágrafos); e, 4. Os mundos complementares da China (com quatro parágrafos). Passemos à análise do texto:

[1] É difícil precisar o instante -- se é que houve um -- em que a história do pensamento começou. Poder-se-ia considerar, talvez, os mitos e as lendas que nos chegaram como primerias tentativas de explicação do mundo e de seus fenômenos, mas essa seria uma empresa arriscada. Essa fase da aventura humana perdeu-se em milênios de caminhada, e hoje, envolta em mistérios, pouco ajuda a elucidar como o homem iniciou a jornada que o acabaria levando à filosofia e à ciência.

"É difícil precisar o instante", pois não temos clareza do momento em que os mitos de Homero e de todos os outros deixaram de serem suficientes para explicar à realidade e deste modo, a partir desta insuficiencia, alguma pessoa ou algumas pessoas passaram a questionar "a vontade dos deuses", pois tudo era compreendido a partir de sua vontade. Não é possível, atualmente, afirmar "o instante -- se é que houve um --", pois compreendemos nossa existencia como um acontecimento repleto de precisão, seja na resolução da televisão, do cinema, do smartfone e de todas essa parafernália que nos acompanha a cada instante. Mas esta precisão é muito recente. Outro dia, quando acompanhava um dos jogos da NBA 2019-2020, entre Atlanta Hawks 115 x 123 Denver Nuggets, pude ter a oportunidade de verificar a altíssima precisão dos árbitros quanto ao tempo de ataque de 24 segundos, em que a bola não pode ser recuada à quadra de defesa; e por aí vai. Então, afirmamos que na filosofia são raríssimos os momentos em que podemos afirmar que algo na "história do pensamento começou". Visto que quase nada é pensado instantaneamente, mas é sempre um processo, uma descoberta seguida de várias constatações e provas. 

Geralmente, afirmamos que são "os mitos e as lendas que nos chegaram como primerias tentativas de explicação do mundo e de seus fenômenos", observe que a autora utilizou a expressão "talvez" antes desse conjunto de expressões, pois ela afirma com muita cautela, porque antes dos mitos e das lendas houveram as pinturas rupestres. E estas sim, são mais antigas que esses primeiros escritos. Mas existem ainda outros "acontecimentos" que, também talvez, seja mais antigas que as pinturas rupestres nas cavernas, que são as construções egípcias. Então, afirmar que os mitos e as lendas são, categoricamente, os primeiros escritos consiste em uma empreitada ou "uma empresa arriscada", como afirma a autora. Portanto, ela apresenta seu texto, não como uma constatação, mas como um dado que usualmente é tido como verdadeiro.

Muito provavelmente houveram outras fases "da aventura humana" antes dos mitos e das lendas, como rapidamente pudemos indicar, mas o que está em discussão são os registros escritos. Este sim, são importantes na constatação do que fora realmente pensado. Embora podamos afirmar que muito "perdeu-se em milênios de caminhada", mas permanece um registro muito importante do que fora feito e registrado neste período. Mas tudo isso permanece "envolta em mistérios", pois tudo que afirmamos é especulação, seja ela com ou sem bons indícios de provas materiais destes acontecimentos, ou mais precisamente deste acontecimento fundamental: o pensamento filosófico. Mas mesmo envolta em mistérios, mitos e lendas e estes mesmos como objetos de análise de nossa filosofia; foram eles, e é apartir deles que dispomos um contexto para comparar o que é filosófico do que é mito ou lenda. E é a partir desta distinção que se chegou à filosofia, mas é também a partir da filosofia que chegamos à ciência. 

[2] Para resolver esse impasse, estudiosos e especialistas elegeram como ponto de partida os séculos VI e V antes de Cristo. Nesse período, testemunha do surgimento de homens como Sócrates (Grécia), Buda (Índia) e Lao-tsé (China), toma forma um pensamento mais aberto à nossa compreensão, o qual, herdeiro das tradições culturais de um passado ainda mais remoto, é também marco de uma etapa que levaria o homem a procurar o sentido do mundo e da vida na própria realidade, na própria natureza. É o momento em que os deuses vão perdendo seu papel como origem de todas as coisas, e que o raciocínio passa a ocupar o espaço antes destinado ao mito. É o que fazem, por exemplo, os pensadores que viviam nas colônias gregas da Jônia, em meados do século VI a.C.. E a partir daí nasce o que mais tarde seria conhecido como filosofia ocidental.

A autora é cuidadosa ao afirmar que na tentativa "para resolver esse impasse", pois é desagradável, mesmo do ponto de vista pessoal, tratar de algo, trabalhar com algo tão importante sem saber sua data de início, sem saber os rumos de sua origem ou de seu nascimento. Embora origem seja distinto de nascimento, pois nascer é fazer produzir algo em um dado tempo, é o mesmo que florecer. O origem está envolta com mais elementos, pois pode ser um processo e é essa sua principal distinção de nascimento, pois a origem indica o processo, o contexto ou vários momentos em que faz com que algo passe de sua inexistência à existência. E quando ela afirma que "estudiosos e especialistas elegeram como ponto de partida", trata-se de uma escolha, isto mesmo, uma dentre outras possíveis, a que se mostra mais próxima, mais legítima. Pois, o que marca essa proximidade é a repetição da pergunta pela origem (archè) da natureza (physis). A origem para Homero estava dada na vontade dos deuses, então a vontade de um deus ou de uma deusa era suficiente para explicar porque alguém nasceu, porque uma tribo ganhou uma disputa por água doce. Então, a physis deixa de ser a vontade tornada realidade, para que a natureza seja explicada por ela mesma. E foi justamente nos "séculos VI e V antes de Cristo" que iniciaremos nossa jornada. "Nossa" porque também nós ao sermos iniciados temos que começar a caminhar em algum lugar e escolhemos junto com a autora esse período.

O século VI a.C. foi o período dos pensadores pré-socráticos, como costumeiramente são conhecidos, mas também como pensadores pré-platônicos ou pensadores originários. Já o século seguinte, o séc. V a.C., teve como "testemunha do surgimento de homens como Sócrates (Grécia), Buda (Índia) e Lao-tsé (China)", fundadores de um novo modo de pensar deu-se com estes três homens. Sócrates em passar de perguntas cosmológicas sobre a origem do mundo e do cosmos, para perguntas éticas, políticas, epistemológicas, mas principalmente por questionar: o que é ALGO. Ou seja, ele passou a perguntar sobre o ser das coisas, isto é, o ser, a essência, a natureza dos entes em geral. Mas não somente dos entes, das coisas, mas de tudo o que existe: a justiça, a amizade, o amor e a liberdade. Com Buda, algo diferente acontece, ele pergunta-se pela essência do ser humano e afirma que esta pode vir a ser conhecida por aquele que percorre um caminho de autoconhecimento que se dá pela meditação constante, seu pensamento foi compreendido como ensinamentos religiosos. Quanto a Lao-tsé seu pensamento permanece entre os dois mundos da filosofia de Sócrates e o da relgião de Buda, pois ele também pergunta-se sobre a essência do ser humano, e assim como Buda, ele afirma que o conhecimento de si se dá por intermédio da meditação constante e de uma vida simples e de silêncio, que nem sempre estamos dispostos a percorrer. Essas três testemunhas apresentam uma forma de "pensamento mais aberto à nossa compreensão" -- mais aberto porque deixa à vontade dos deuses como explicação e compreensão do mundo como "herdeiro das tradições culturais de um passado ainda mais remoto", pois o tempo é sempre carente de uma compreensão plena e satisfatória, tanto que o passado é melhor explicado que o presente, o momento mesmo em que vivemos. E os séculos VI e V a.C. constituem um na etapa da jornada que "levaria o homem a procurar o sentido do mundo e da vida na própria realidade, na própria natureza", na própria realidade porque é o único ou principal meio em que um pensador tem para contrapor uma vontade divina ao que efetivamente ocorre ou está ocorrendo. E na natureza que se encontra um refúgio para o que é divino, mesmo que ela possa ser compreendida como algo divino, será sua constituição mesma que irá distanciá-la das vontades divinas que explicam tudo e todos.

Consequentemente, será a partir dessas tentativas de explicar o mundo a partir da realidade e da natureza que constituirá "o momento em que os deuses vão perdendo seu papel como origem de todas as coisas" - a vontade de um deus será mais suficiente para explicar o mundo, a realidade e a natureza; os pré-socráticas vão recorrer a elementos os mais naturais possíveis a água (Tales de Mileto), o ar (Anaxímenes de Mileto), o fogo (Heráclito de Éfeso) e a terra (Demócrito). Essa substituição da vontade dos deuses como explicação da constituição da realidade será substituída pelo "raciocínio [que] passa a ocupar o espaço antes destinado ao mito". O mito é uma explicação da realidade que não carece de provas, de argumentação racional, mas pode ser e geralmente é fundamentado a partir da vontade ou mesmo da raiva de algum deus grego ou deusa grega.

A autora não cita os nomes dos primeiros pensadores originários neste momento, mas indica que essa mudança da explicação da vontade dos deuses por uma explicação que recorre ao natural "é o que [eles] fazem" - a atividade do filósofo é explicar a realidade, a constituição do mundo em viviam. E a tradição em que recorre à autora, são os "pensadores que viviam nas colônias gregas da Jônia, em meados do século VI a.C." que indicaram o início de nossa jornada pela filosofia, uma filosofia que é ocidental, pois os pensamentos de Buda e de Lao-tsé não caminham pela vida do questionamento sobre a constituição ou mesmo da essência ou natureza, mas por um caminho mais meditativo, mais místico e, portanto, menos filosófico. Hoje, convencionou-se de se tratar destes como forma de pensamento e que, portanto, por serem formas de pensamentos, podem ser compreendidos como formas ou forma de filosofia.

E será a partir desse novo modo de questionar de Sócrates, mas também a partir de todo o questionar antes de Sócrates, que irá marcar quando efetivamente "nasce o que mais tarde seria conhecido como filosofia ocidental" - sempre centrada na pergunta pelo fundamento, pela essência, pela natureza, pela origem, pela arqueologia e pela genealogia do que faz pensar.

[3] No Oriente, o panorama é outro. Lá, filosofia, mito e religião entrecruzam-se por muito tempo. Enquanto os gregos tentavam descobrir o que é o homem, o pensamento oriental avançava no sentido de sistematizar doutrinas. Na Mesopotâmia, em 4000 a.C. assírios e caldeus estruturaram uma visão de mundo que perdurou até Zoroastro propor um deus único e fazer uma reforma religiosa, no atual Irã. Na Índia, os textos dos Vedas (Livro do Saber) já influenciavam as mentes em 1500 a.C., e o hinduísmo, o bramanismo e o budismo vieram à tona a´te o século VI a.C.. A China, onde a dinastia Chang introduziu transformações culturais em 1600 a.C., mais tarde assistiu à expansão do misticismo do Tao e à sistematização religioso-político-familiar de Confúcio, que moldou a sociedade chinesa dos séculos seguintes. 

[3] No Oriente, o panorama é outro. Lá, filosofia, mito e religião entrecruzam-se por muito tempo. Enquanto os gregos tentavam descobrir o que é o homem, o pensamento oriental avançava no sentido de sistematizar doutrinas. Na Mesopotâmia, em 4000 a.C. assírios e caldeus estruturaram uma visão de mundo que perdurou até Zoroastro propor um deus único e fazer uma reforma religiosa, no atual Irã. Na Índia, os textos dos Vedas (Livro do Saber) já influenciavam as mentes em 1500 a.C., e o hinduísmo, o bramanismo e o budismo vieram à tona a´te o século VI a.C.. A China, onde a dinastia Chang introduziu transformações culturais em 1600 a.C., mais tarde assistiu à expansão do misticismo do Tao e à sistematização religioso-político-familiar de Confúcio, que moldou a sociedade chinesa dos séculos seguintes.