A Introspecção Psicológica de Clarice Lispector em Perto do Coração Selvagem

Paulo Roberto de Farias Souza¹

Resumo

Este artigo visa identificar o valor introspectivo e intimista da autora brasileira Clarice Lispector, uma vez que, essa é a característica que a denomina. Fundamenta-se na teoria e textos de Waldman (1983), Cândido (1944), Milliet (1944) e citações da própria autora. A obra base deste trabalho é o livro Perto do Coração Selvagem, obra inaugural, 1943, que garantiu a escritora o prêmio Graça Aranha como melhor romance de estreia. Dar-se-á relevância também aos conceitos de Wundt (1912) no que se refere a introspecção enquanto o voltar-se para si no intuito de conhecer-se e a partir daí, resolver seus conflitos. E Kannan (2007) numa perspectiva mais intimista sobre a introspecção na obra de Clarice. Observa-se aqui um olhar voltado para as entrelinhas dedicando-se em encontrar valores e realidades da própria autora na personagem protagonista da obra. A melhor forma de analisar e encontrar Lispector na sua  criatura, vivendo e revivendo experiências antigas e novas proporcionadas pelo ato da escrita é mergulhar no mistério do não dito, do implícito para assim analisar a profundidade de experiências pessoais depositadas na obra.

Palavras – Chave:  Introspecção. Clarice Lispector. Perto do Coração Selvagem.

Abstract

This article aims to identify the introspective and intimate value of the Brazilian author Clarice Lispector , since this is the feature called that . Based on the theory of texts and Waldman (1983 ) , Candide ( 1944) , Milliet ( 1944) and quote the author herself. The base work this work is the book Near Wild at Heart , inaugural work , 1943, assured the writer Aranha award for best debut novel . Also give will be relevant to the concepts of Wundt (1912 ) as regards insight while back to itself in order to meet up and thereafter resolve their conflicts . And Kannan (2007 ) in a more intimate perspective on insight into the work of Clarice . Observe here one facing the lines look dedicating itself to find values ​and realities of the author herself in the main character of the work . The best way to analyze and find Lispector in his creature , living and reliving old and new experiences provided by the act of writing is to dive into the mystery of the unsaid , the implied thus to analyze the depth of the work deposited personal experiences .

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 ¹Graduando do Curso de Licenciatura Plena em Letras da FADIMAB- Faculdade de Ciências e Tecnologias Prof. Dirson Maciel de Barros.

 

Key words:  Introspection, Clarice Lispector, Near the Wild Heart.

Introdução

Este artigo tem por finalidade através da análise de discurso e pesquisa de caráter qualitativo identificar na obra “Perto do Coração Selvagem” experiências vividas pela personagem que são semelhantes as da autora Clarice Lispector, marcando assim o valor introspectivo da obra. Para isso é de fundamental importância fazer um estudo biográfico da escritora, ou melhor, um levantamento de informações que mostrem momentos marcantes e traumáticos da sua vida e que estejam introduzidos nas linhas e entrelinhas da obra.

A obra corpo do trabalho, já mencionada acima, foi publicada no ano de 1943 e garantiu a autora uma premiação como melhor romance de estréia. Nela, Clarice traz como personagem principal, Joana, que tudo questiona e vive uma busca incessante por sua identidade. Vê-se também a forma utilizada pela escritora para expressar os sentimentos humanos explorando experiências interiores da personagem e o fluxo de consciência que consiste na manobra utilizada pelo autor para descrever o pensamento de um personagem continuamente.

Além do fluxo de consciência encontramos de forma inovadora, a introspecção psicológica, característica aqui abordada, denomina-se introspecção como a experiência que proporciona ao indivíduo uma observância retrospectiva de si mesmo avaliando conceitos, valores, sensações e pensamentos. Na Literatura, essa experiência é perceptível pela maneira que o autor explora o interior dos personagens.

Através da perspectiva psicanalística de Kanaan (2007), da escuta dos textos e da observância das entrelinhas que realizar-se-á essa análise da obra. Descobrindo em Wundt (1912) o que se trata introspecção psicológica, conceituando e mostrando como se dá na vida do homem.

 

Um olhar sobre a autora – Clarice por Clarice

“...é curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer. Porque no momento em que tento falar não só não exprimo  que sinto como o que sinto se tranforma lentamente no que eu digo. Ou pelo menos o que me faz agir é o que eu sinto mas o que eu digo...”   (LISPECTOR, 1998. p. 21)

Clarice Lispector, nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia,  em 10 de Dezembro de 1920. Após dois meses de seu nascimento chega ao Brasil.  Sempre que questionada sobre sua nacionalidade dizia ser brasileira, pois declara: “Sou brasileira naturalizada, quando, por uma questão de meses, poderia ser brasileira nata. Fiz da língua portuguesa a minha vida interior, o meu pensamento mais íntimo, usei-a para palavras de amor.” (Waldman,1983. p. 9-10) assim ela demonstrava não ter nenhuma ligação com a Ucrânia. Escreve desde a infância, assim que fora alfabetizada, “Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas.E eu, teimosa, continuava escrevendo.” (LISPECTOR, 2001). Mesmo passando pelas experiências de ter seus escritos recusados não desiste e mostra que mesmo criança  já existia nas veias um sangue escritor, voltado à arte da palavra e escrita. Surge na Literatura Brasileira em 1943 com a publicação do seu primeiro romance, Perto do coração selvagem. Mas, foi a partir deste momento que  ela consagrou-se como a principal autora da prosa brasileira na segunda metade do século XX. Clarice traz em suas obras características intimistas, a partir das quais atinge as camadas mais profundas da consciência de suas personagens. Sua literatura sonda o psicológico de suas criaturas de forma reveladora, expondo as dúvidas e inquietações mais íntimas das mesmas.

            Ela é uma autora que traz em seus escritos uma grande exigência de entendimento e compreensão. Os seus leitores precisam ir além do que está escrito, precisam mergulhar nas entrelinhas impulsionados pela escuta do interior, inconsciente, sentidos internos de cada palavra escrita e não escrita que estejam subentendidas. Clarice não se prende a gênero, não fixa-se a regras, como podemos conferir no trecho que segue : “ Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.” (LISPECTOR, 1973, p. 14).  Sua arte transpassa as fronteiras de uma leitura simplificada, sendo assim, uma de suas maiores marcas. Conforme (KANAAN. 2007, p.34-47) a complexidade de seus textos, a interiorização exposta em cada um de seus personagens, sentimentos e pensamentos são colocados em suas obras numa contextualização muito própria e profunda da sua própria alma.  Situações na existência de suas criaturas  idênticas as que ela mesma vivera também revela o peso introspectivo presente nas obras.  Por isso, sua literatura é considerada uma raridade; a mesma,  aborda  temas urbanos e universais, a inter-relação, a condição social da mulher, uma  linguagem inovadora e repleta de figuras de linguagem.

            Clarice desde a infância era mergulhada em dores e conflitos internos. Desde seu nascimento  ela traz marcas profundas, uma vez que ela nascera, ou seja, fora desejada pelos pais como tentativa de cura para sua mãe. Pois, ela era portadora de sífilis, doença contraída durante a Guerra Civil Russa ao ser estuprada. Porém, o nascimento dela não salvou a mãe que morre quando Lispector tem nove anos de idade. Tal fatalidade mexe muito com a autora ao ponto de refletir na sua literatura, na sua forma de escrever ficando evidente em suas criaturas tudo que ela não entendia e nem aceitava. Muitas dessas criaturas passam por conflitos que na verdade não são delas, mas, da criadora – Clarice. Depositando assim todo conflito existencial vivido por ela mesma, sendo esse um processo de reconciliação consigo e com a vida o que pra ela causara muito sofrimento, “antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor.”  (Lispector, 2004)

            No trecho acima podemos perceber a ausência, a falta de alguém que cuide, ame, aconselhe, ou melhor, a falta de alguém responsável que se encarregasse desses cuidados -  na verdade, Clarice sofria e sentia em cada instante a ausência de sua mãe, Mania Lispector. Por isso sentia-se solitária.  Ela sofria por não ter quem a educasse, quem desempenhasse na sua vida o que só uma mãe, no caso, sua própria mãe poderia fazer.

            Ao passar de algum tempo a ferida já existente no seu interior  aumenta, pois, seu pai, Pinkouss Lispector morre inesperadamente, após uma cirurgia simples para retirada de sua vesícula biliar devido a complicações no procedimento cirúrgico. Esse foi o motivo que fez Clarice afastar-se da sua religião judáica.

            Após a morte de seu pai Clarice escreve diversos contos que foram publicados, posteriormente, em uma de suas obras. Ela não destacou-se apenas como escritora. Formou-se em Direito em 1943, e no mesmo ano casou-se com Maury Gurgel Valente seu colega de faculdade com o qual teve dois filhos. Ele segue a carreira diplomática e com isso Clarice é obrigada a acompanhá-lo em cada viagem que fizera. Lispector também foi jornalista, escrevia e publicava suas  reportagens em jornais, como: “Diário do Povo” de Campinas – SP e colabora escrevendo artigos para revista dos alunos da faculdade, “A Época”. Trabalhou como secretária num laboratório onde fazia tradução de textos científicos para revista e desempenhou a mesma função num escritório de advocacia. Clarice Lispector foi uma mulher de muitas facetas, em cada uma delas mostrava um pouco de si.

            Na Literatura ela escreveu diversas obras distribuídas em romances, contos e Livros de Literatura infantil. Clarice faleceu em 9 de dezembro de 1977 aos 56 anos de idade, já que completara 57 anos um dia depois do seu falecimento, vítima de câncer no ovário, diagnóstico que ela não conhecia. Foi enterrada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro.

 

Um Olhar sobre a Obra: Perto do Coração Selvagem

“Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável.Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é  imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade.”  (LISPECTOR, 1998, p. 21)

Perto do Coração Selvagem foi a obra inaugural de Clarice. Ele foi responsável por consagrá-la como a principal autora intimista da Literatura Brasileira no séc. XX e por lhe garantir o prêmio Graça Aranha como melhor romance de estreia. A Obra marca um novo tempo na Literatura do Brasil uma vez que a característica mais abordada nos textos literários da época era o regionalismo. Eis que surge a inovadora Clarice Lispector - de nome estranho, esquisito e considerado por alguns um pseudônimo conforme afirma Sérgio Milliet, “nome estranho e até desagradável, pseudônimo, sem dúvida.” (MILLIET, 1981, p. 27) – com característica marcante e inovadora para o período.

 O livro traz como protagonista uma personagem feminina, Joana.  Este monumento clariceano é dividido em duas partes, na primeira Joana é uma criança curiosa que questiona e se questiona por tudo, menina sonhadora , carente de amor e que tem sempre consigo respostas prontas e bem irônicas diante de determinadas situações, a mesma diz pensa ter uma grande tendência ao mal como podemos ratificar no trecho:

“A certeza de que dou para o mal, pensava Joana. O que seria então aquela sensação de força contida, pronta para rebentar em violência, aquela sede de empregá-la de olhos fechados, inteira, com a segurança irrefletida de uma fera? Não era no mal apenas que alguém podia respirar sem medo, aceitando o ar e os pulmões? Nem o prazer me daria tanto prazer quanto o mal, pensava ela surpreendida. Sentia dentro de si um animal perfeito, cheio de inconsequências, de egoísmo e vitalidade.” (LISPECTOR. 1998, p.18).

 Na segunda parte do romance vemos uma Joana adulta cheia de lembranças, revoltas, ódio e sentimentos que oscilam constantemente, vejamos:

“Lembrou-se do marido que possivelmente a desconheceria nessa ideia. Tentou relembrar a figura de Otávio. Mal, porém, sentia que ele saíra de casa, ela se transformava, concentrava-se em si mesma e, como se apenas tivesse sido interrompida por ele, continuava lentamente a viver o fio da infância, esquecia-o e movia-se pelos aposentos profundamente só. Do bairro quieto, das casas afastadas, não lhe chegavam ruídos. E livre, nem ela mesma sabia o que pensava.” (LISPECTOR. 1998, p.18)

O enredo desenvolve-se em torno da personagem e é marcado pela introspecção psicológica e pelo fluxo de consciência a partir do qual a menina expõe seus conflitos internos que oscilam entre a infância e a vida adulta. Joana é uma menina criada pelo pai já que a mãe, Elza, tivera falecido. Alguns anos depois o pai também morre e a menina passa a morar com a tia, que é irmã do seu pai. O relacionamento de Joana com sua tia não são dos melhores, a presença da garota sufoca a tia. Certo dia, ela vai com a sobrinha as compras e lá Joana rouba um livro, com isso sua  tia pede ao marido que a encaminhe a um colégio interno, onde as diferenças, entre Joana e o mundo que a cerca,  se acentuem. Diante de toda confusão e inquietação o livro é praticamente uma autobiografia narrada por uma personagem. Nele vê-se também as paixões vividas pela personagem de início por um professor que a acompanha, aconselha e na maioria das vezes tenta lavá-la a entender-se e  o amor por  Otávio com o qual ela se casa, fica grávida e descobre que o marido tem uma amante, Lídia, que também está grávida  dele. Com o decorrer do tempo ela se separa e vive todo um conflito existencial, questionamentos constantes relacionados a razão de ser e de existir. Após a desilusão ela se envolve com um desconhecido que aparece de forma estranha. Faz uma viagem sem destino em busca de si mesma chegando a caracterizar o livro como um enigma da vida.

De acordo com alguns teóricos a obra foi um marco na literatura brasileira. O romance de Lispector foi esperado ansiosamente pelos críticos. Foi bem visto segundo  Antônio Cândido (1992), que diz a respeito da autora:

“a intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior  poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo,  mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização.”

Diante de tal afirmativa profética de Cândido, no ano de estreia da autora, podemos perceber o quanto foi valioso o lançamento de tal escritora jovem, sentimental e de linguagem intimista. Assim previa o quanto representaria Clarice, em sua forma de escrita, na Literatura Brasileira. Sem dúvida destacou-se pela profundidade de suas obras e profissionalismo extraordinário, como afirma Nélida Piñon:

“Clarice Lispector é uma extraordinária profissional, que não adquiriu consciência do próprio estado. Sua obra é produto sério e regular, diariamente enriquecido por uma sonda introduzida em sua consciência, e pela qual se realiza permanente a comunicação entre o mundo e sua matriz de criação.” (LISPECTOR. 2007, p.46)

A Introspecção

A introspecção que encontramos tão presente e viva nas obras clarecianas fora objeto de estudos  na Psicologia, antes mesmo de ser marca na Literatura, aqui de modo particular, na Literatura de Clarice Lispector.

Com Wundt², filósofo, médico, professor e psicólogo alemão do séc. XIX  a introspecção é considerada como a abordagem primordial de pesquisa na psicologia científica, uma vez que, “nossa mente não é nada mais que a totalidade de nossas experiências internas, ou seja, nossa ideação, afetividade e volição reunidas em uma unidade na consciência.” (WUNDT,1912 apud PEREIRA, 2008, p. 9 ). Para ele, o entendimento sobre o homem a partir da psicologia provém da experiência interna. Ficando bem evidente que no processo introspectivo da psicologia o objeto de estudo é o próprio homem. Tal processo consiste em proporcionar ao indivíduo uma observação retrospectiva do seu eu/interior, revendo conceitos, valores, sensações e pensamentos,   

 

sendo assim, chamado de introspecção controlada. Ou melhor, é uma observação individual da consciência que tem por finalidade proporcionar ao indivíduo um autoconhecimento.

Assim podemos concluir que a introspecção é uma experiência que faz parte da vida humana, podendo ser percebida a partir dos conflitos existenciais dos homens. Quem sou?, De onde vim?, Para onde vou? São questionamentos que permeiam a mente humana.

Na Literatura, a introspecção se dá no momento em que os autores preferem  explorar o interior dos seus personagens, abandonando a preocupação excessiva pela estética, pelos gêneros e dedicam-se na busca da subjetividade de suas criaturas. Embora a introspecção já fosse utilizada em obras anteriores a Clarice, com ela as experiências são mais radicais e profundas ficando evidente o conflito existencial que permeiam a vida da autora  e dos seus  personagens, tornando-se assim seu diferencial. Diferencial que se dá não somente pela volta ao passado e principalmente pela fidelidade ao que vivera, mas também por um desejo de futuro, como afirma Lúcia Castelo Branco (1991), “não exatamente marcada por um retorno ao passado, por uma fidelidade ao vivido, mas quem sabe, também guiada por um ‘desejo de futuro’ e quem sabe, também composta de lacunas, silêncios, rasuras, esquecimentos, talvez essa escrita se aproxime muito mais da ficção do que comumente se costuma admitir.”

Com ela percebe-se que os acontecimentos da vida humana, não resume-se apenas aos fatos externos do homem , mas principalmente aos fatos internos dos mesmos. É preciso saber o que acontece no lado externo do homem, no seu espaço físico, seu hábitat, no entanto, é necessário conhecer, entender, compreender e dominar o interior, ou seja, os pensamentos e sentimentos conforme Clenir Bellezi de Oliveira (1999) afirma, “Lispector se interessava por processos interiores e pela revolução que esses processos promovem nas relações do ser mesmo e com o mundo.” ( OLIVEIRA, Clenir Bellezi de, 1999. p.540)

Esses mistérios encontrados na obra  da autora caracteriza tal romance como, Romance Introspectivo. Sendo perceptível o modo de narrar capturando os pensamentos da personagem.  Essas particularidades assemelham Clarice Lispector com grandes nomes da literatura inglesa, como James Joyce e Virginia Woolf, dos quais, relata nunca ter lido obra alguma. Conforme afirma Luiz Costa (1998):

“Não tenho receio no afirmar, todavia, que o livro da Sra. Clarice Lispector é a primeira experiência definida que se faz no Brasil do moderno romance lírico, do romance que se acha dentro da tradição de um Joyce ou de uma Virginia Woolf. Apesar da epígrafe de Joyce que dá título ao seu livro, é de Vírginia Woolf que mais se aproxima.” ( LIMA, Luiz Costa. 1998, p. 117)

            Mesmo sendo comparada a mestres da Literatura estrangeira, Clarice não perde sua maestria na Literatura do Brasil e é aceita como a mais séria tentativa no estilo. Vejamos:

“mais séria tentativa de romance introspectico. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação: pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira do avesso, sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques.”  (MILLIET,Sérgio. 1944, v 2, p. 25)

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²Wilhelm Wundt (1832 – 1920) nascido em Neckarau é considerado o pai da psicologia moderna experimental por estabelecer em 1879 na cidade de Leipzig o primeiro laboratório para estudo experimental de certos fenômenos psicológicos, como atividade consciente de pessoas normais. Para ele, a consciência era o objeto de estudo da psicologia. . O método fundamental usado  em suas pesquisas psicológicas foi a Introspecção, na qual utilizava sujeitos treinados, que, seguiam normas estritas, que obedeciam regras explícitas: O observador deve ser capaz de determinar quando o processo pode ser introduzido; Ele deve estar num estado de prontidão ou de atenção concentrada; Deve ser possível repetir a observação varias vezes; As condições experimentais devem ser passíveis de variação em termos da manipulação controlada dos estímulos. A Introspecção  é a observação de uma consciência individual por si mesma; exame do próprio estado mental, percepção anterior; conhecimento das emoções através da observação interna e reflexão por parte do próprio sujeito. O indivíduo é ao mesmo tempo sujeito do conhecimento e objeto de estudo num processo de auto observação.

A Introspecção em Perto do Coração Selvagem

Segundo Kanaan (2007) Clarice é uma autora que traz em seus escritos uma grande exigência de entendimento e compreensão. Seus leitores precisam ir além do que está escrito, precisam mergulhar nas entrelinhas impulsionados pela escuta dos sentidos internos de cada palavra.   Ainda sobre esta perspectiva Kanaan (2007) diz que  a leitura da autora deve ser realizada a partir da escuta do texto, pois dessa forma haverá uma comunicação entre inconscientes. 

“Semelhante à escuta clínica, a escuta do texto  deve levar em conta uma ‘comunicação entre inconscientes’, procurando depreender das entrelinhas do discurso, seja oral seja escrito, o desejo de seu autor. Como na experiência clínica, não há como se furtar ao embate dos corpos que se cria nesta relação e do qual nascem os sentidos; não um sentimento qualquer, mas aquele impregnado por uma série de experiências, vivências e expectativas de ambos interlocutores.” (KANAAN. 2007, p. 35)

Ou seja, para podermos entender Clarice precisamos lê-la nas entrelinhas de sua obra, observando com afinco as próprias experiências vividas pela autora e que estão expressas na vida de sua personagem, Joana. Ratificado no seguinte trecho da obra:

“Ainda não se libertara do desejo-poder-milagre, desde pequena. A fórmula se realizava tantas vezes: sentir a coisa sem possuí-la.”  (LISPECTOR. 1998, p. 23)

            Clarice era uma mulher cheia de vida, porém, repleta de marcas e a que aqui vemos é uma marca trazida desde a infância.  Valendo-se de que a menina Clarice nascera como tentativa de cura (milagre) para salvar sua mãe, que era doente por ter sido violentada sexualmente, e não conseguindo promover a cura esperada pelos pais nunca se perdoou e também nunca abandonou o sentimento de culpa. E isso também é marca na personagem de Clarice, uma vez que, ela também é órfã de mãe e perde seu pai pouco tempo depois e passa a viver com familiares. Segundo Kanaan (2007), “Clarice sabe que se trata de uma superstição da qual os pais lançam mão buscando uma cura. Isso não impede, contudo, que ela sofra. “Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas, eu não me perdoo”(ibid., p.153). Onipotência? “Queria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe” (ibid., p. 153).” Segundo a mesma perspectiva de Kanaan (2007) a mesma onipotência que encontramos em Joana, personagem do primeiro romance clariceano, Perto do Coração Selvagem, é fruto de um sentimento de impotência diante das coisas que escapam a seu controle e a levam ao desespero. Clarice, aqui, traça um paralelo entre sua infância e a de sua personagem .

Dessa forma, pode-se afirmar que a introspecção na obra da autora não é apenas uma característica, mas, uma introspecção dela mesma por introduzir fatos de sua vida dentro da vida de sua personagem sendo essa uma experiência inovadora para nossa literatura. Lispector não disse isso, mas, ficou explícito nas entrelinhas é o dito pelo não dito. E assim, viaja pelo interior mostrando a radicalidade sentimental da obra,

“As personagens são, então, compelidas a uma dolorosa viagem interior que fatalmente resultará numa transformação íntima radical.” ( OLIVEIRA, Clenir Bellezi. 1999, 540)

            Após, todas as experiências vividas pela autora depois da morte de sua mãe, o destino lhe prega outra situação muito difícil, a morte do pai. Fato que também é vivido pela pequena Joana, vejamos:

“Sem medo, não cinzento e choroso como viera até agora, mas nu e calado embaixo do sol como a areia branca. Papai morreu. Papai morreu. Respirou vagarosamente. Papai morreu. Agora sabia mesmo que o pai morrera. Agora, junto do mar onde o brilho era uma chuva de peixes de água. O pai morrera como não se vê o fundo do mar, sentiu. Não estava abatida de chorar. Compreendia que o pai acabara. Só isso. E sua tristeza era um cansaço grande, pesado, sem raiva. Caminhou com ele pela praia imensa. Olhava os pés escuros e finos como galhos juntos da alvura quieta onde eles afundavam e de onde se erguiam ritmadamente, numa respiração. Andou, andou e não havia o que fazer: o pai morrera.” (LISPECTOR, 1998. p. 39)

A dor da perda e as sensações da garota provocam nela um grande desejo pela liberdade, uma liberdade que traga-lhe alívio, ou melhor, buscava algo que nem mesmo ela conseguia definir.  Desejava sentimentos que a libertasse do sofrimento e da prisão da própria memória, imaginação. Vejamos no trecho que diz:

“Mas, mesmo assim, na solicitude branca e ilimitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Presa, presa. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.” (LISPECTOR, 1998. p.70)

Muitas circunstâncias e temas vividos na infância por Joana e Clarice também são reencontrados na fase adulta, principalmente, o tédio, a solidão, a prisão no outro, o querer livrar-se de todos os laços afetivos , assim, a obra torna-se um testemunho da autora através da voz, das ações e da vida da personagem, ratificando em Kanaan (2007) “Nesse sentido, a trajetória de Joana é o testemunho de como Clarice procura superar tudo aquilo que verbaliza ou se vê impedida de verbalizar sua personagem. Encenando os traumas de Joana, Clarice resgata sua infância e pode, pelo distanciamento autoral, atribuir a ela um sentido menos traumático.” Ou seja, a cada capítulo, a cada escrita Clarice traz um sentido traumático menor com a finalidade de sanar seus próprios traumas, mas também, é uma forma de mostrar-se através de um ser criado por ela mesma recriando sua história e trazendo caminhos diferentes mesmo que tão semelhantes e repletos de mistérios.

No último capítulo da obra podemos observar com clareza o conceito introspectivo de Wundt (1912) no qual, a introspecção é a plenitude das experiências internas , no sentido da idealização e da afetividade formadas a partir do nosso eu. Por este olhar também ratifica-se a introspecção no trecho que segue:

“Deus meu eu vos espero, deus vinde a mim, deus, brotai no meu peito, eu não sou nada e a desgraça cai sobre minha cabeça e eu só sei usar palavras e as palavras são mentirosas e eu continuo a sofrer, afinal o fio sobre a parede escura, deus vinde a mim e não tenho alegria e minha vida é escura como a noite sem estrelas e deus por que não existes dentro de mim? Por que me fizeste separada de ti? Deus vinde a mim, eu não sou nada, eu sou menos que o pó e eu te espero todos os dias e todas as noites, ajudai-me, eu só tenho uma vida e essa escorre pelos meus dedos e encaminha-se para a morte serenamente e eu nada posso fazer e apenas assisto o meu esgotamento em cada minuto que passa...” (LISPECTOR, Clarice. 1998, p. 198)

Neste momento da narrativa do monumento clareciano, narrativa esta em primeira pessoa, evidenciando a voz de Joana que expressa toda sua agitação interna questionando e suplicando a Deus a solução do seus dilemas, percebemos a partir do que conhecemos da vida da autora um grande grito de Clarice, principalmente quando diz que sua vida escorre pelos seus dedos, ou seja, este é o dilema da autora desde o nascimento. Nasceu para ser a solução e não foi, dessa forma não tem mais a quem recorrer senão a Deus e gritar-Lhe tudo que sufoca. Podemos dizer baseado no conceito de Wundt (1912) acima citado que em mais um momento a autora deposita uma grande carga sentimental pessoal na personagem que segue dizendo,

“...sou só no mundo, quem me quer não me conhece, quem me conhece me teme e eu sou pequena e pobre, não saberei que existi daqui a poucos anos, o que me resta para viver é pouco e o que me resta para viver no entanto continuará intocado e inútil, por que não te apiedas de mim? Que não sou nada, dai-me o que preciso, deus, dai-me o que preciso e não sei o que seja, minha desolação é funda como um poço e eu não me engano diante de mim e das pessoas, vinde a mim na desgraça e a desgraça é hoje, a desgraça é sempre, beijo teus pés e o pó dos teus pés, quero me dissolver em lágrimas, das profundezas chamo por vós, vinde em meu auxílio que eu não tenho pecados, das profundezas chamo por vós e nada responde e meu desespero é seco como as areias do deserto e minha perplexidade me sufoca, humilha-me, deus, esse orgulho de viver me amordaça, eu não sou nada, das profundezas chamo por vós, das profundezas chamo por vós das profundezas chamo por vós...” (LISPECTOR, Clarice. 1998, p. 198 -199)

            Este capítulo é intitulado “A viagem”, nele a autora relata uma viagem que Joana faz depois de tudo que tinha vivido com Otávio, com a tia, enfim, tudo que experimentara em toda sua vida. Essa viagem era uma forma de fugir de sua realidade dolorosa, mas que a fazia cada vez mais entrar em si própria e se ver suas dores inflamáveis e expostas,

“...fundindo-se mais em sensações do que pensamentos. Mudava sem transição, em saltos  leves, de plano a plano, cada vez mais altos, claros e tensos. E de instante a instante caía mais fundo dentro de si própria, em cavernas de luz leitosa, a respiração vibrante, cheia de medo e felicidade pela jornada, talvez como as quedas quando se dorme.” (LISPECTOR, Clarice. 1998, p. 192)      

As sensações oscilam entre medo e felicidade. Percebe-se que  esse é o forte de Clarice mexer com os sentimentos do seu público, explorar sua imaginação fazendo-os viver toda tensão, experiências afetivas e a complexidade de sua obra. E assim, para a autora escrever torna-se uma prática de salvação, porque “... salva a alma da presa, salva a pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a menos que se escreva.” (Lispector, 1984, p. 191). Ou melhor, ela escreve para si e para o outro como afirma Kanaan (2007) Clarice pode, por meio da criação literária, não apenas desprender-se da concretude do que o fato representa em si, ela acaba por construir uma obra e uma existência “bela” para si, a seus olhos e aos olhos dos outros.

 

Considerações Finais

Ao término da jornada deste artigo na tentativa de encontrar na obra de Clarice trechos que comprovassem o valor introspectivo tanto do livro quanto da autora, observa-se que Lispector escreveu o romance embasada na sua história, sua personalidade e humanidade como afirma Álvaro Lins: “o que deve fixar, antes de tudo, em Perto do Coração selvagem, será exatamente, aquela personalidade da sua autora, a sua estranha natureza humana (...). Imagino que a sua concepção do mundo ficaria desfigurada dentro do romance tradicional.” (LINS, 1944, p. 189) O valor introspectivo da literatura de Clarice dá-se por que ela não se desfaz de si mas insere-se dentro de suas criaturas. Essa forma de escrever faz e fez dela essa deusa da nossa literatura. Através de Joana pode-se conhecer Lispector, seus devaneios, medos, anseios e principalmente o conflito que ela mesma travava dentro de si, enfim, na obra  Clarice revela-se por inteira sem medo.

 

 

Referências

LISPECTOR, Clarice (1944) . Perto do coração selvagem : Romance – Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

________(1973). Água Viva. Rio de Janeiro: Artenova.

________(2004). Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Editora Rocco.

________(1984). A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

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