A influência da religião na formação do sujeito

 

Francisco Elitom Rodrigues da Silva[1]

RESUMO.  A temática “religião” não está entre os principais assuntos abordados por Michel Foucault no seu percurso filosófico de investigação do saber, onde ele faz uma abordagem genealógica do poder e mostra o percurso metodológico e de inovação tecnológica pelo qual passou a estrutura do poder ao longo do período compreendido entre os séculos XVII e XIX, na Europa antiga. Contudo ele considera um tema relevante no contexto da configuração das novas tecnologias do poder, as quais o mesmo chamou de mecanismos de dominação. Nesse percurso genealógico o pensador Francês investigou a evolução desses novos mecanismos numa trajetória de contínuas adaptações às necessidades de dominação. Embora Foucault não tenha abordado de forma sistemática a religião como fator predominante nas relações de poder, sua pesquisa filosófica acerca do assunto revela a importância dos seus princípios na constituição de uma arquitetura de poder cada vez mais eficiente no processo de dominação do indivíduo. Dessa forma, a religião como instituição instrumental no processo de “adestramento” do homem aparece, de forma mais explícita, especialmente em duas de suas principais obras, a saber: “A história da sexualidade I e em Vigiar e Punir”, onde o autor faz uma análise genealógica das metamorfoses tecnológicas do poder que ocorreram nos últimos séculos nas formas de punir e de controlar os indivíduos e de como esse controle se deu dentro de uma arquitetura do poder que vai desde ambientes fechados até o controle individual em espaços abertos. É, portanto, na perspectiva filosófica de uma arquitetura do poder à luz do pensamento foucaultiano que se empreendeu a presente pesquisa com o fim de compreender melhor a metamorfose dos métodos punitivos a partir de uma tecnologia política do corpo, onde se poderia ler uma história comum das relações de poder e das relações de objeto e de sua relação com os princípios religiosos como fator importante na constituição das novas tecnologias do poder. Nesta perspectiva, o presente trabalho tem como propósito fundamental investigar a influência da religião na formação do sujeito e comprovar as hipóteses de que a religião constitui um dos mais importantes mecanismos de controle e dominação do poder, a partir da visão foucaultiana, no processo de construção do sujeito. Assim, para melhor dar conta dessa empresa, este artigo teve como percurso metodológico o típico de uma pesquisa filosófica: levantamento bibliográfico, análise de textos específicos e de outras leituras complementares relacionadas ao tema, tais como periódicos e outros textos afins. O mesmo será, portanto, dividido em dois tópicos principais, cujo primeiro mostrará a importância dos princípios religiosos na constituição das formas disciplinares como mecanismos de controle e “docilização” dos corpos. O segundo tópico visa mostrar o papel da religião na formação do sujeito e sua importância na manutenção estrutural de suas relações de desigualdades. Dessa forma, o presente trabalho objetiva mostrar a visão foucaultiana a cerca dessa temática, sem, no entanto, pretender esgotar o assunto, mas contribuir minimamente com outras pesquisas que possam vir a surgir a cerca do asunto.

PALAVRAS-CHAVES: Religião. Sujeito. Docilização. Poder.

 

A contribuição moral da religião na construção do sujeito disciplinado

 

Michel Foucault, ao tratar da relação entre poder e dominação, trouxe uma visão inovadora quanto às relações políticas que regem a sociedade moderna. Ele aponta o “adestramento” do corpo como um mecanismo necessário para a manipulação do poder, de modo que, para este filósofo, o treinamento do comportamento pelo pleno emprego do tempo, a aquisição de hábitos, as limitações do corpo implicam entre o que é punido e o que pune uma relação bem particular (FOUCAULT, 1987, P-106).  Segundo esse pensador foi necessário o surgimento de uma estrutura a qual chamou de “nova tecnologia do poder”, que englobou um conjunto de técnicas, ações e instrumentos meticulosamente planejados para atingir suas finalidades e se apoderar do indivíduo como objeto de dominação, tornando-o “dócil” e útil à sociedade, sem, no entanto, ser necessário fazer uso da força, uma vez que, nas palavras de Rousseau, “o homem nasce livre e encontra-se por toda parte acorrentado” (ROUSSEAU, 2013, p-23). Na opinião desse pensador, quando um povo é obrigado a obedecer pela força ele faz bem, mas assim que pode sacudir o jugo o faz melhor ainda.

A religião é, sem dúvida, um dos mais antigos  instrumentos de dominação que compõe a arquitetura tecnológica do poder. Enquanto instituição intermediadora dos conflitos espirituais do homem, ela está presente na História da humanidade desde os primórdios das relações socais dos indivíduos. Segundo NETTO, 1999, ela teve sua origem ainda com o homem neolítico.

No princípio essa instituição teve um caráter bem mais de proteção e de subsistência que propriamente de organização sistemática da prática da fé, posto que, segundo registros Históricos, o homem primitivo tinha nos seus rituais a esperança da subsistência, da proteção e da gratidão pelas boas colheitas. Já na mitologia Grega, o indivíduo atribuiu características humanas às divindades como forma de tentar entender, justificar sua própria existência no mundo.

Assim, nesse primeiro momento da História supracitado ainda não era possível se falar em uma religião sistemática, organizada com propósitos bem definidos como os da religião dos tempos posteriores, mas numa religiosidade rústica, cujos indivíduos professavam a fé sem, no entanto, estarem ligados institucionalmente a uma organização formal, ou seja, o fator religioso ainda encontrava-se desprovido dos princípios políticos regentes da sociedade moralmente organizada.

Dessa forma, pode-se perceber que, ao longo da História da humanidade, o fator religião esteve presente na vida dos homens e teve, a princípio, uma ligação muito forte à própria subsistência dos mesmos. Contudo, na medida em que as relações sociais e de produção foram ficando mais complexas, o fator religioso passa cada vez mais a interferir diretamente na vida e organização social destes indivíduos.

São vários os exemplos para ilustrar esta afirmação, mas podemos pegar apenas dois: um do mundo oriental e outro do mundo ocidental, ambos do período medieval. No primeiro caso, podemos citar o exemplo do Japão feudal, onde o fator religioso se confundia com o político, cujo Estado adotava o Xintoísmo como religião oficial e obrigava a população a professá-la. Já no caso do período feudal ocidental, o protagonismo foi do catolicismo, que monopolizou a prática da fé por muito tempo e interferiu em diversos setores sociais de sua época, tais como no político e no econômico.

No auge da sua dominação na Europa, o poder clerical esteve presente em quase todos os setores e decisões dessa época, promoveu a guerra, justificou a miséria e determinou os princípios morais desse período. Contudo, pode-se dizer que isso não foi uma peculiaridade apenas do período medieval, ou de tempos remotos da História da humanidade. Tudo isso ainda ocorre, de fato, no presente momento histórico, seja no mundo oriental ou ocidental, porém de forma bem mais sutil, cujo objeto de dominação não é mais o daquele período.

Na verdade o que se percebe é que, embora a religião não interfira mais de forma direta na vida social e política dos indivíduos, seus princípios morais continuam sendo a base fundamental da organização da sociedade vigente, o que, segundo Foucault, tais princípios foram determinantes na formulação de uma nova tecnologia de poder, a disciplina, capaz de revolucionar as relações de poder sendo, assim, mais eficaz no processo de “adestramento" do corpo.

De acordo com o pensamento foucaultiano, a disciplina é, sem dúvida, um instrumento fundamental e necessário para “moldar” os indivíduos aos interesses dominantes do poder, cujos mesmos devam participar de uma estrutura de poder renovada capaz de atender tanto as necessidades individuais quanto as de ordem regenciais dessa nova estrutura. Todavia, os meios mais eficazes, segundo esse filósofo, pelos quais isso pode se concretizar de forma prática é por meio da religião, num primeiro momento, e, como complemento, por meio da educação escolar, onde os indivíduos aprendem e põem em prática as regras de comportamento fundamentais para a vigência e manutenção da organização social vigente. Assim, segundo Foucault, a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos e de utilidades) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência), (Foucault, 1975, p-119).

 Esta nova tecnologia do poder, segundo esse filósofo, surgiu como uma necessidade organizacional do espaço e do tempo, como forma de controle do corpo, dentro de uma perspectiva econômica do poder e fez parte do que ele chamou de “tecnologia do poder”, que são todos os mecanismos e meios utilizados na manipulação dos corpos pelo poder.

Nessa perspectiva, Foucault ressalta o papel da disciplina como fator indispensável nessa nova arquitetura do poder de dominação, cujo espaço de aplicação desse novo instrumento de poder é contemplado com o surgimento de importantes  instituições sociais, como os hospitais, as carceragens e as escolas, que, segundo ele são instrumentos fundamentais no processo de formação do sujeito enquanto ser social capaz de conviver em harmonia com o poder, cuja raiz de toda essa estrutura está fundamentada nos princípios disciplinares da religiosos.

Portanto, essa disciplina que se aplica à vida prática dos indivíduos não teve outra gênese, senão, segundo Foucault, nos princípios e costumes religiosos, cuja determinação da postura moral do indivíduo dentro de uma organização religiosa submete os indivíduos a um disciplinamento rígido que tem como ponto de partida o controle dos impulsos e das paixões dos indivíduos diante de códigos e posturas impostas como condição necessária para o reconhecimento dos mesmos enquanto elementos participantes desse grupo. Dessa forma, pode-se dizer que,

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente. [...], a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’, (FOUCAULT, 1987, p-119). 

        

O processo de “adestramento” [2] do indivíduo, segundo Foucault, não ocorreu de forma instantânea, mas lenta e gradual ao longo da História social do homem, cujo aperfeiçoamento das técnicas de dominação passou pelo processo de “docilização”[3] do corpo, de modo que sua força de reação foi transformada em força produtiva. Para tanto foram criados e reestruturados constantemente os mecanismos de dominação, que incluiu instituições como a escola, a família e a igreja. Dessas, a última foi, segundo Foucault, uma das mais eficazes nesse processo. Sua função era, antes, de ordem ideológica na preparação moral do indivíduo para a aceitação das demais regras institucionais. Sua ação pedagógica, não obstante, se fundamentava nos princípios religiosos de obediência e desobediência, de punição e recompensa.

Tais princípios têm um reflexo prático na vida social do indivíduo na forma de disciplina, postura correta. Assim, Foucault ressalta a importância desses princípios religiosos na formação da disciplina como instrumento necessário na formação do sujeito. Segundo ele, durante séculos, as ordens religiosas foram mestras de disciplinas: eram as especialistas do tempo, grandes técnicas dos ritmos e das atividades regulares (FOUCAULT, 1987, p-288). A disciplina, segundo o filosofo francês, tem como principal objetivo criar um tempo útil, que possa envolver o indivíduo integralmente, cujo fim não é apenas a produção material, mas também o enfraquecimento da força reativa do mesmo, uma vez que a exatidão e a aplicação são, antes de tudo, as virtudes fundamentais do tempo disciplinar.

A princípio, o que essa nova metodologia de dominação propôs foi uma utilização exaustiva do tempo, de modo que o próprio indivíduo passou a ter consciência de que, nas palavras de Foucault, “é proibido” perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos homens (FOUCAULT, 1984, p-131). Essa consciência foi sendo criada ao longo de um processo contínuo de adestramento do corpo que, segundo Foucault,

Antes de tomar essa forma estritamente disciplinar, o exercício teve uma longa História: é encontrado nas práticas militares, religiosas, universitárias – às vezes ritual de iniciação, cerimônia reparatória, ensaio teatral, prova [...]. Sua organização linear, continuamente progressiva, seu desenrolar genético ao longo do tempo têm pelo menos no exercício e na escola introdução tardia. Sua origem é sem dúvida de origem religiosa (FOUCAULT, 1987, p-137).    

                                             

Esse novo instrumento de poder, a disciplina, tem, portanto, o papel de transformar o corpo em um elemento manipulável de acordo com os interesses dominantes do poder instituído. Torna-o uma máquina operável, cujo efeito seja elevado ao máximo pela articulação combinada das peças elementares de que ela se compõe, ou seja, seu papel agora é de “compor” forças para obter um aparelho eficiente (FOUCAULT, 1987, p-138).

Pode-se concluir, portanto, que nesse novo contexto de formação do sujeito, a religião atua como princípio fundamental na criação de uma disciplina que se faz valer por meio de atitudes favoráveis ao controle, cuja quantificação e qualificação do tempo definem a posição do corpo, dos membros e das articulações. Segundo Foucault, esse processo é tão rigoroso que para cada movimento é determinada uma direção, uma amplitude, de modo que o tempo penetre o corpo e, com ele, todos os controles minuciosos do poder. Dessa forma, o poder dominante encontrou, nessa nova forma de controle, uma importante forma de sujeição, mais sutil e mais eficaz, de modo que a função da disciplina torne-se, com isso, menos de retirada que de síntese, menos de extorsão do produto que de laço coercitivo com o aparelho de produção.

A religião como instrumento necessário na formação do sujeito

    

A religião, enquanto instituição social tem se feito presente nos mais diversos setores sociais, especialmente o cristianismo, no caso ocidental, onde se percebe a presença de seus princípios e dogmas inseridos no âmbito das relações institucionais do poder, nos mais diversos setores da administração da coisa pública, mesmo que, na teoria a carta magna de alguns países, como no caso do Brasil, por exemplo, traga no seu texto o princípio da laicidade.

A instituição religiosa[4] como fator fundamental na manipulação do poder foi muito marcante durante a idade média na Europa, onde essa instituição teve forte influência na constituição das relações de poder de sua época, formando o que Maquiavel chamou de “principados eclesiásticos” (MAQUIAVEL, 2011, p-48). A atuação da mesma, lado a lado, com o poder monárquico e com a burguesia ascendente, durante o período das grandes navegações, teve seu ápice na justificativa da escravidão e na catequização dos nativos nas Américas coloniais, ao mesmo tempo em que garantiu o aculturamento desses povos e a imposição dos valores europeus nesse novo mundo, promovendo, assim, a submissão dos mesmos ao etnocídio e ao genocídio. Tudo isso sob a justificativa religiosa de que isso era necessário para salvar aquele  novo povo do pecado e conduzi-lo à salvação, mesmo que para isso fosse necessária a utilização de métodos extremamente cruéis e violentos que levou aquelas comunidades ao risco de extinção.

Pode-se dizer que a religião, enquanto meio de professão[5] da fé, tem sua gênese bastante remota na História da humanidade. A princípio a mesma teve um caráter muito mais mítico, relacionado à proteção e à subsistência, do que propriamente de organização sistemática de uma prática da fé, uma vez que o homem primitivo, devido a sua relação direta de dependência da natureza no provento da própria existência, estava mais preocupado com as questões ligadas à compreensão dos fenômenos naturais do que propriamente às de ordem espiritual. Já na mitologia Grega percebeu-se certa evolução nas relações do homem com o sagrado. O indivíduo passa a atribuir características humanas às divindades como forma de tentar entender ou justificar sua própria existência. Assim, sentimentos como amor, ódio e paixão, por não ter para eles uma explicação palpável, os mesmos elegeram divindades responsáveis por lhes dá uma resposta confortável às suas indagações a cerca disso e lhes acalentar os espíritos.

Nessa metamorfose das relações do indivíduo com o sagrado ao longo da História não pode passar despercebido à influência das mudanças ocorridas no processo de produção e da relação deste com a natureza no provento da própria subsistência. São, portanto, fenômenos intimamente interligados com a concepção de mundo deste indivíduo e que interfere diretamente na sua relação com o sagrado.

Seguindo as determinações religiosas, no período medieval, milhares de pessoas marcharam até as terras árabes em busca de riqueza e gloria. E, “em nome de Deus”, milhares de pessoas foram trucidadas nos porões da “santa” inquisição ou queimadas vivas em praças públicas para a purificação de seus pecados.

A disputa pelo poder eclesiástico foi responsável por intensa disputa de forças opostas dentro das próprias bases do cristianismo entre católicos e protestantes, na Europa antiga, cujo pano de fundo desse litígio de forças não era outro senão o controle do poder pelas referidas instituições religiosas.   

Nesse embate de forças opostas pelo domínio do poder espiritual sobre os indivíduos, cujo processo de “arrebatamento” dos mesmos cria um ambiente hostil, onde a dúvida e o medo submetem-nos a uma pressão psicológica e desconforto espiritual insuportável capaz de lhes impulsionar à associação religiosa como refúgio para o seu espírito.

A função catequética da religião, contudo, tem sua importância do ponto de vista pedagógico, onde a submissão do indivíduo a seus princípios dogmáticos tem, antes, a função de formar atitudes, de prepará-lo para vida num ambiente moralmente planejado, cuja base de sustentação do mesmo é constituída pela obediência, pelo medo e pela promessa. Obediência a Deus e medo de perder a salvação.

Portanto, diante das incertezas do homem a cerca da sua própria existência, do medo do desconhecido, principalmente da morte, a religião atua como um consolo espiritual dos indivíduos, uma válvula de escape para o conflito espiritual da humanidade. É nessa atmosfera que a Igreja, enquanto instituição social atua como intermediadora e monopolizadora das questões espirituais, agindo sob a promessa da graça.

Com isso, esta instituição ganha credibilidade e legitimidade, de modo que a constituição do espaço político moralmente correto, da criação de atitudes do sujeito tem sua base fundamentada nos princípios religiosos, o que Foucault chamaria de “processo de adestramento” do corpo, ou seja, os costumes e princípios religiosos têm, antes, a função de preparar o indivíduo para o exercício da vida política, ou para a convivência social, para o exercício da cidadania.

Isso mostra, portanto, a importância dessa instituição como mecanismo indispensável na construção de uma dinâmica organizacional do poder regente na sociedade. Tal importância, na visão do filósofo Francês Michel Foucault, coloca as instituições religiosas na mesma categoria instrumental da regência do poder na sociedade, cujas instituições envolvidas nesse processo, como a escola; o hospital e a carceragem, por exemplo, ele as chamou de “novas tecnologias do poder”. Todas estas, segundo ele, são instrumentos úteis e indispensáveis no processo de “docilização” do corpo e na formação dos indivíduos para a vida política e social. Nessa instituição estão as bases fundamentais da constituição de uma nova sistemática do poder, cuja peculiaridade está na criação de um ambiente disciplinar mais eficaz e mais sutil no processo de dominação do poder, de modo que, segundo Michel Foucault, sua eficácia está no fato de que a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos de obediência, (FOUCAULT, 1987, p- 119). Dessa forma, a disciplina, na opinião desse autor,  fornece os meios necessários para o bom “adestramento” dos corpos, tornando-os dóceis ao controle do poder.

Assim, além do seu caráter pedagógico, as religiões funcionam ideologicamente como potentes fatores de estabilização e conservação do sistema social vigente. Dessa forma, a tendência das religiões foi sempre de se transformarem em núcleos herméticos, controlados por uma burocracia clerical para quem os fins justificam os meios, (NETTO, 1999, p-32). Com isso, percebe-se que o caráter disciplinador da religião foi, sem dúvida, de grande importância para a constituição sistemática das organizações sociais, tanto do ponto de vista político quanto econômico e social. Tais hipóteses podem ser comprovadas de modo prático nos diversos fatores que constituem a organização do Estado político vigente, de forma implícita ou explícita.  Pode-se perceber, neste espaço político, a identidade ética e moral, fundamentada em princípios religiosos, como, por exemplo: a obediência hierárquica; o cumprimento de regras; a ideia de punição e perdão. São estas, antes de tudo, categorias do mundo religioso.

Portanto, na visão filosófica do arqueólogo do saber, a religião assume um papel muito importante na formação do indivíduo político, cujo disciplinamento do mundo religioso corresponde à preparação do indivíduo para assumir determinados papeis sociais de comportamento e organização da vida pública. Contudo, isso pode ser perigoso quando utilizado estrategicamente por determinados grupos para a manipulação das massas em prol de interesses próprios, tanto dentro das instituições religiosas, quanto fora das mesmas.

É, portanto, na perspectiva de que a religião seja o refugio do homem aflito, uma forma de alienação da humanidade. Em referência ao Cristianismo, Nietzsche, em O Anticristo, fala que a religião corrompeu o homem forte, tomou o partido de tudo que é fraco, baixo, fracassado, instituiu como ideal a oposição aos instintos de vocação da vida forte, (NIETZSCHE, 1895, p-21). Ou seja, a religião, leva as pessoas à propagação da fé e à aceitação dos seus dogmas religiosos pelo medo de “irem para o inferno”, ou de perderem a salvação. Porém, apesar de ainda persistir essa ideologia nos dias atuais, em alguns casos, as religiões tendem a se reinventarem. A reformulação do sagrado é, portanto,  uma preocupação prioritária no mundo religioso atual devido à proliferação de denominações religiosas nos últimos tempos e o surgimento de certa atmosfera cética nesse ambiente por parte das pessoas diante, muitas vezes, da desilusão da promessa.

Diante disso, a buscarem um novo “espanto” para o sagrado, cujo culto ao mesmo deve renascer e se adequar à nova dinâmica do mundo orquestrado por princípios capitalistas do mundo globalizado. O fato é que, apesar dessa dinâmica das relações de poder no mundo eclesiástico, os princípios religiosos continuam fortemente presentes nas relações sociais dos indivíduos, de modo que a religião, enquanto instituição fundante dos princípios disciplinares, a partir da visão foucaultiana, é, portanto, capaz de produzir o sujeito, de realizar, através de suas técnicas como regime de verdade, a sujeição dos indivíduos, pelo exercício relacional da dupla ontologia saber e poder.

Nesse processo de formação do sujeito, a religião se apresenta como uma espécie de "guia" espiritual capaz de conduzir o indivíduo à compreensão da própria existência e ao conforto de sua alma. Para dar conta dessa empresa, a mesma criou e aperfeiçoou seus próprios mecanismos de dominação, fundamentados na ideia de recompensa e punição. Dessa forma, uma dupla evolução destes mecanismos tende a fazer da carne a origem de todos os pecados e a deslocar o momento mais importante do corpo e a complacência do espírito (FOUCAULT, 1984, p-152).

Assim, um dos pontos de aplicação do poder passa do corpo física, ao sexo, o qual a Igreja o apresenta como sendo um enigma inquietante, aquilo que, por excelência deveria ser confessado sob pena de cometer o indivíduo grave transgressão contra Deus caso venha a omiti-lo. Contudo, isso não constitui um fato recente na História das relações de poder. Segundo Foucault,

Desde a idade média, pelo menos, as sociedades ocidentais colocaram a confissão entre os rituais mais importantes de que se espera a produção da verdade: a regulação do sacramento da penitência pelo concílio de latrão em 1215, o desenvolvimento das técnicas de confissão que vem em segunda, o recuo, na justiça criminal, dos processos acusatórios, o desenvolvimento das provações de culpa (juramentos, duelos, julgamentos de Deus) [...]. Tudo isso contribuiu para dar à confissão um papel central na ordem dos poderes civis e religiosos (FOUCAULT, 1984, p-58).

Contudo na visão desse pensador francês, é preciso estar muito iludido com o ardil interno da confissão para atribuir à censura, à interdição de dizer e pensar, um papel fundamental no processo de socialização do indivíduo. Dessa forma, a obtenção da confissão e seus efeitos são recodificados na forma de operações terapêuticas (FOUCAULT, 1984, p-58). Porém, vale ressaltar que isso não ocorreu de forma simples e espontânea, mas que seguiu um percurso metodológico lento e gradual ao longo da História, cujo processo de evolução se deu com maior intensidade, segundo Foucault, desde meados do século XVI, onde tal rito, a confissão, fora, pouco a pouco, se desvinculando do sacramento da penitência e ganhando uma roupagem mais pedagógica, passando a intermediar as relações interpessoais dos indivíduos nos mais diversos ambientes, sejam eles familiares ou científicos, como na medicina e na psiquiatria, por exemplo.

De acordo com esse pensador, existiu, na confissão cristã, e, sobretudo na direção do espiritual e no exame e consciência, na procura da união espiritual e do amor de Deus, toda uma série de procedimentos que se aparentam com uma arte erótica (FOUCAULT, 1984, p-59). Assim, no processo de formação do sujeito pela firmação instrumental da confissão, o sujeito constituído é, portanto, aquele que obedece e é sujeitado, cujo poder, como puro limite à liberdade do indivíduo, é, todavia, a forma e sua aceitabilidade.

Nessa nova atmosfera metodológica de formação do sujeito, pode-se destacar o protagonismo das grandes instituições de poder que se desenvolveram no período da idade média, cuja influencia da igreja foi determinante para o exercício do poder político e, muitas vezes, até mesmo adversária poderosa na disputa pelo controle desse poder. Tais instituições de poder, de acordo com Michel Foucault, tomaram impulso sobre um fundo de multiplicidade de poderes preexistente e, até certo ponto, contra eles.

Como forma de firmação de uma arquitetura instrumental do poder fundamentada em princípios religiosos capaz de “docilizar” o corpo e tornar sua força útil, sem, no entanto, correr o risco de estimular uma força de reação capaz de enfrentar a força dominante, a igreja precisou subjugar o corpo, torná-lo impuro e limitado, o que Foucault chamou de "tecnologia da carne". Dessa forma as instituições religiosas constituíram, com isso, todo um mecanismo de controle e dominação fundamentado no princípio de uma aliança entre o ser limitado e o ilimitado, de uma verdade construída, tornando a busca constante por essa verdade uma necessidade permanente do indivíduo para se auto-afirmar como sujeito.

Nesse contexto, a sexualidade tomada como mecanismo de poder pela Igreja sela a aliança entre dominados e dominantes, ao mesmo tempo em que externaliza a batalha interna do indivíduo consigo mesmo, onde este luta incansavelmente contra seus próprios desejos e impulsos da carne, de tal forma que é necessário negar sua própria natureza animal para afirmar-se como sujeito sociável, moralmente aceito no grupo politicamente organizado. Assim, as instituições religiosas apropriaram-se dessa situação de conflito, na qual os indivíduos buscam sua identidade enquanto ser social, e exerceram seu poder de dominação e "docilização" do indivíduo, controlando suas forças e preparando-os para a “boa” convivência social. Contudo, diz Foucault, a cronologia do surgimento e aperfeiçoamento dessas técnicas vem de mais longe. Deve-se, na opinião desse filósofo, buscar seu ponto de formação nas práticas de penitência do Cristianismo medieval, ou antes, segundo ele, na dupla série constituída pela confissão obrigatória, exaustiva e periódica imposta a todos os fieis pelo concílio de Latrão, e pelos métodos do ascetismo, do exercício espiritual e do misticismo desenvolvidos com particular intensidade a partir do século XIV.

Referencias Bibliográficas  

FOUCOULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: vozes, 31-edição. Tradução de Raquel Ramalhete, 2006. PP-262.

FOUCAULT, Michel. Historia da Sexualidade I: A vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque, 1988, PP152.

MACHADO, Roberto. Ciência e Saber: A trajetória da Arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro: edições graal, 2-edição, 1981. PP-218.

ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Petrópolis: Col. L&PM POCKET. Tradução de Paulo Neves, 2013, pp151.

MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Rio de Janeiro. Nova fronteira. Tradução de Lívio Xavier, 2011, PP-125.

NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. São Paulo: Escala. Coleção grandes obras do pensamento universal, vol. 52.  Escala. Tradução de Antonio Carlos Braga, 1995, PP-127.

Artigo: Antonio Ozair da Silva: Política e religião: entre o mal e o bem Revista espaço acadêmico-setembro de 2005> disponível em http://www.espacoacademico.com.br/052/52pol.htm> em 17/03/2014> 19:38.

Artigo: Política, espaço e cultura: as ligações entre poder e religião > disponível em http://confins.revues.org/7115#tocto1n1> em 17/03/2014> 21:00.

Revista: Discutindo filosofia, ano-1, numero-6. PP-41

Para a crítica da filosofia do direito de Hegel> disponível em http://www.lusosofia.net/textos/marx_karl_para_a_critica_da_filosofia_do_direito_de_hegel.pdf > em 22/07/2014.

O anticristo> disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/anticristo.pdf > 22/07/2014.



[1] Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará – UECE, aluno do curso de especialização latu sensu em filosofia da religião da Universidade Vale do Acaraú-UVA.

[2] O termo adestramento é abordado por Foucault no sentido pedagógico, de instrução, de treinamento prévio do indivíduo para ser inserido na sociedade e obedecer às regras morais instituídas como princípio fundamental do seu reconhecimento como sujeito político.

[3] É um termo conceitográfico foucaultiano que aparece frequentimente ao longo de sua obra filosófica que trata das relações de poder, cujo significado é o de tornar dócil o indivíduo pela supressão de suas forças reacionárias, tornando-as antes forças produtivas. 

[4]Refiro-me à Igreja católica, que protagonizou as diretrizes das relações de poder no período medieval, controlou o conhecimento e interferiu nos mais diversos setores das relações humanas.

[5]O termo professão é adotado aqui no sentido de propagação da fé institucionalizada, internalização dos valores morais religiosos.