A INCONGRUÊNCIA ENTRE AS QUALIDADES NO CERTIFICADO E A MENTE DO PORTADOR NO CONTEXTO ANGOLANO

Por Eugénio Joaquim Próspero | 16/05/2025 | Educação

A INCONGRUÊNCIA ENTRE AS QUALIDADES NO CERTIFICADO E A MENTE DO PORTADOR NO CONTEXTO ANGOLANO

 



                          Eugénio Joaquim Próspero

                          Huambo, Maio de 2025

 






Resumo:

O presente artigo analisa de  forma crítica a discrepância existente entre as qualificações formais – representadas pelos certificados e diplomas – e as competências reais dos indivíduos, no contexto educacional e profissional angolano. Esta incongruência revela-se como um dos principais entraves ao progresso sustentável do país, à medida que fragiliza a confiança nas instituições de ensino, compromete a qualidade dos serviços prestados e limita a competitividade no mercado de trabalho (MORAIS, 2020). O estudo parte de uma abordagem multidimensional, reflectindo sobre os factores estruturais, como a fragilidade na supervisão da qualidade do ensino, a escassez de recursos pedagógicos e a proliferação de instituições de ensino com fins predominantemente comerciais (MESCTI, 2023); culturais, como a valorização exagerada do “papel passado” em detrimento da competência prática (FREIRE, 1996); e éticos, incluindo práticas de corrupção, venda de monografias e favorecimento indevido em avaliações e certificações (UNESCO, 2022). Além de diagnosticar as causas desse descompasso, o artigo evidencia os impactos nefastos dessa realidade, como a má formação de profissionais, a frustração de expectativas no ambiente de trabalho, o descrédito no sistema educacional e o desestímulo à meritocracia. Argumenta-se que a valorização do mérito, do conhecimento genuíno e das competências efectivas é essencial para a construção de uma sociedade mais justa, produtiva e ética (FREIRE, 1996). Diante desse cenário, o trabalho propõe alternativas viáveis para a ressignificação do valor do conhecimento autêntico, como a reestruturação dos currículos, o fortalecimento da avaliação contínua e prática, a valorização do corpo docente, o estímulo à formação ética e cidadania e a criação de mecanismos de certificação baseados em competências demonstradas, e não apenas na titulação formal (UNESCO, 2022). Conclui-se que o combate à superficialidade na formação exige reformas profundas, que passam pela reinvenção das práticas pedagógicas, pelo reforço da ética educacional e pela transformação da mentalidade social sobre o verdadeiro significado de possuir um certificado (MORAIS, 2020).Possuir um diploma não deve ser visto como um fim em si mesmo, mas como reflexo de um percurso formativo sólido, ético e comprometido com a excelência. Tom crítico e reflexivo. Veja a seguir:

 




Palavras-chave: Qualificações formais; Competências reais; Educação; Ética; Angola; Certificação; Mérito.

 




Abstract:

This article critically analyzes the discrepancy between formal qualifications—represented by certificates and diplomas—and individuals’ actual competencies within the educational and professional context of Angola. This incongruence emerges as one of the main obstacles to the country’s sustainable development, as it undermines trust in educational institutions, compromises the quality of services provided, and limits competitiveness in the labor market (MORAIS, 2020). The study adopts a multidimensional approach, reflecting on structural factors such as weak supervision of education quality, scarcity of pedagogical resources, and the proliferation of educational institutions with predominantly commercial purposes (MESCTI, 2023); cultural factors, such as the excessive value placed on having a certificate over practical competence (FREIRE, 1996); and ethical issues, including corruption, the sale of dissertations, and undue favoritism in assessments and certifications (UNESCO, 2022). In addition to diagnosing the causes of this mismatch, the article highlights the harmful impacts of this reality, such as poor professional training, frustration of expectations in the workplace, discredit in the educational system, and discouragement of meritocracy. It is argued that valuing merit, genuine knowledge, and actual skills is essential for building a more just, productive, and ethical society (FREIRE, 1996). In light of this scenario, the paper proposes viable alternatives for re-signifying the value of authentic knowledge, such as restructuring curricula, strengthening continuous and practical assessment, valuing the teaching staff, promoting ethical and civic education, and creating certification mechanisms based on demonstrated competencies rather than merely formal qualifications (UNESCO, 2022). It concludes that combating superficiality in education requires profound reforms, including the reinvention of pedagogical practices, strengthening educational ethics, and transforming the social mindset about the true meaning of holding a certificate (MORAIS, 2020). Holding a diploma should not be seen as na end in itself, but as a reflection of a solid, ethical, and excellence-driven educational journey. The article adopts a critical and reflective tone.

 




Keywords: Formal qualifications; Real competencies; Education; Ethics; Angola; Certification; Merit.

 





1. Introdução

A educação, em seu sentido mais nobre, deveria formar indivíduos capazes de pensamento  crítico, agir com competência e transformar a sociedade. No entanto, observa-se, em Angola, uma crescente dissociação entre os certificados emitidos pelas instituições de ensino e as competências reais dos seus portadores. Em muitas situações, o diploma representa mais uma formalidade social ou um trampolim para cargos públicos do que uma prova de mérito ou domínio de determinado saber. Tal descompasso ameaça não apenas o progresso individual, mas compromete, de modo amplo, o desenvolvimento nacional.

Paulo Freire (1996) já advertia para o perigo da “educação bancária”, onde o foco recai na memorização e acumulação de conteúdos, e não na sua problematização e aplicação. Essa lógica favorece a obtenção de certificados sem a devida maturação crítica e prática do conhecimento. Em Angola, essa realidade ganha contornos mais graves diante da expansão desregulada do sector educacional, marcada pela proliferação de instituições privadas muitas vezes voltadas mais ao lucro do que à formação sólida (MESCTI, 2023).

Essa conjuntura também se insere num contexto cultural que supervaloriza o diploma como símbolo de status e ascensão social, em detrimento das reais competências do indivíduo. A crença de que “o importante é ter o papel” contribui para um ciclo vicioso em que a forma suplanta o conteúdo, e o título suplanta a capacidade. Morais (2020) observa que “o certificado tem se tornado uma espécie de moeda social, descolada do mérito, que abre portas mesmo quando a competência está ausente”.

Ademais, práticas antiéticas como a venda de trabalhos acadêmicos, a corrupção nos processos de avaliação e a facilitação na atribuição de notas contribuem para a banalização do mérito (UNESCO, 2022). Esses desvios éticos não apenas comprometem a formação dos estudantes, como corroem a confiança pública nas instituições de ensino e seus egressos.

Diante disso, torna-se urgente repensar a lógica vigente e retomar os princípios de uma educação comprometida com a ética, a competência e o desenvolvimento humano integral. Este artigo propõe-se, portanto, a analisar as causas e implicações da incongruência entre os certificados e as competências reais no contexto angolano, bem como sugerir alternativas para a valorização do saber autêntico.

 






2. O Valor do Certificado: Símbolo ou Substância?


Na teoria, o certificado representa a conclusão de um percurso académico que habilita o indivíduo para o exercício de uma profissão ou actuação científica. No entanto, na prática angolana, esse símbolo tem sido desvalorizado pelo esvaziamento do seu conteúdo. Em muitas situações, ele serve apenas como passaporte para cargos, promoções ou reconhecimento social, independentemente da real capacidade do seu portador.

Segundo Freire (1996), “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção”. Essa premissa tem sido ignorada por modelos educativos que priorizam a burocratização da avaliação, em vez de promoverem um processo crítico e transformador. A busca por certificados torna-se, assim, uma corrida por títulos em vez de uma jornada de aprendizagem.

Conforme Chauí (2003), o diploma muitas vezes se transforma em um fetiche que mascara a verdadeira função do conhecimento, que é a libertação do sujeito pela reflexão crítica e pela autonomia. No contexto angolano, essa crítica é atual, uma vez que muitos portadores de certificados não foram expostos a desafios cognitivos suficientes para o exercício competente e ético de suas funções.

 



3. A Mente do Portador: Lacunas de Competência e Ética


O verdadeiro problema surge quando se constata que muitos diplomados não conseguem articular ideias, interpretar textos complexos, tomar decisões técnicas adequadas ou mesmo comunicar-se com clareza e coerência. Essas lacunas não são meramente técnicas, mas também éticas e de atitudes.

Como defende Morin (2000), a educação deve integrar os saberes e promover o pensamento complexo, capaz de articular diferentes dimensões do conhecimento. A ausência dessa formação integral contribui para a proliferação de profissionais que, embora certificados, não são preparados para os desafios contemporâneos.

Muitos profissionais demonstram um comportamento antagónico à ética, com práticas como o plágio, a corrupção no local de trabalho e a má prestação de serviços. Essa situação agrava-se quando o portador do certificado assume funções de liderança, comprometendo a gestão pública ou privada com decisões infundadas e autoritárias.

Nas palavras de Cortella (2008), “ética é o conjunto de valores e princípios que usamos para decidir as três grandes questões da vida: quero? Devo? Posso?”. Quando esses princípios são ignorados por quem detém um certificado, a sociedade como um todo sofre as consequências de lideranças desprovidas de moral e comprometimento público.

 



4. Causas da Incongruência no Contexto Angolano


Mercantilização do Ensino

A explosão de instituições privadas sem a devida fiscalização resultou numa formação de baixa qualidade, muitas vezes orientada para o lucro em vez da excelência académica. Como alerta Morais (2020, p. 44), “a proliferação de instituições de ensino superior, em muitos casos, não tem sido acompanhada de critérios rigorosos de qualidade, o que compromete a formação oferecida”.

 



Ensino Básico e Médio Deficiente

Muitos estudantes chegam ao ensino superior sem domínio de competências básicas, como leitura, escrita, cálculo e pensamento lógico. Essa base frágil compromete todo o processo subsequente. O Relatório da UNESCO (2022) destaca que “a desigualdade no acesso e na qualidade do ensino básico compromete a progressão educacional dos estudantes nos níveis subsequentes”.

 



Cultura de Aparência

Na sociedade angolana, o diploma é frequentemente visto como um símbolo de status social, o que incentiva sua obtenção por qualquer meio, mesmo que ilícito ou imoral. Como destaca Morais (2020, p. 51), “há uma valorização exagerada do diploma como símbolo de ascensão social, mesmo que desprovido de competência real”.

 



Corrupção no Sistema Educativo

Casos de suborno para aprovação, venda de trabalhos académicos e plágio sistemático são frequentemente reportados, minando a credibilidade dos certificados emitidos. Segundo dados do MESCTI (2023), “a prática de corrupção académica representa um dos maiores desafios à credibilidade do ensino superior angolano”.

 



Falta de Prática e Estágios

A ausência de estágios profissionais eficazes contribui para a desarticulação entre o saber teórico e a prática no mundo real. Conforme o Relatório da UNESCO (2022), “a ligação frágil entre instituições de ensino e o mercado de trabalho reduz a empregabilidade e a preparação prática dos graduados”.

 



5. Consequências para a Sociedade Angolana


As consequências dessa incongruência são vastas e perigosas:

Desempenho Profissional Medíocre

Profissionais despreparados comprometem o funcionamento das instituições. Morais (2020, p. 58) observa que “a má formação de quadros técnicos e profissionais, tem consequências directas sobre a eficiência dos serviços públicos e privados”.

 



Desaceleração do Desenvolvimento Nacional

A inovação e a produtividade são afectadas pela falta de competência real. Como destaca a UNESCO (2022), “o descompasso entre certificação e competência afecta negativamente os índices de produtividade e inovação, especialmente em países em desenvolvimento”.

 



Perda de Credibilidade das Instituições

A sociedade começa a desconfiar dos diplomas e das instituições que os emitem. Morais (2020, p. 63) afirma que “quando os certificados não reflectem competências reais, as instituições formadoras perdem legitimidade perante a sociedade”.

 



Desvalorização do Mérito

Aqueles que realmente se esforçam e se qualificam de forma ética são colocados no mesmo patamar dos que apenas possuem um papel impresso. Freire (1996, p. 42) já denunciava esse tipo de distorção, ao afirmar que “a escola bancária tende a nivelar os estudantes apenas pela posse de títulos, desconsiderando o processo formativo”.

 



Retrocesso Educacional

As novas gerações passam a seguir maus exemplos, perpetuando um ciclo vicioso de mediocridade. O MESCTI (2023) alerta que “a banalização do certificado compromete as gerações futuras e mina a confiança no sistema educacional”.

 




6. Caminhos para a Superação da Incongruência



Reforma Curricular Baseada em Competências

O sistema educacional precisa ser reformulado com foco no desenvolvimento de competências reais, e não apenas na transmissão mecânica de conteúdos. Segundo Perrenoud (2000, p. 9), “formar para competências significa preparar o aluno para mobilizar, integrar e transferir saberes em situações complexas”.

A educação deve priorizar o desenvolvimento de competências reais, pensamento crítico e resolução de problemas, em vez de simples memorização.

 



Fortalecimento da Avaliação e Fiscalização

O Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI) deve reforçar a fiscalização das instituições e aplicar sanções a quem não cumprir os padrões. Como destaca o Relatório da UNESCO (2022), “a regulação eficaz é essencial para manter a integridade e a qualidade do ensino superior”.

 



Combate à Corrupção Académica

É preciso combater, com políticas rigorosas, práticas como suborno, venda de notas, monografias e falsificação de certificados. De acordo com Uvalić-Trumbić e Daniel (2011, p. 23), “a integridade académica é a espinha dorsal da credibilidade de qualquer sistema de ensino superior”.

É preciso implementar sistemas de avaliação justos e independentes, com critérios claros e práticas anticorrupção.

 



Promoção de Estágios e Práticas Profissionais

A parceria entre instituições de ensino e empresas, pode proporcionar uma formação mais aplicada e alinhada ao mercado de trabalho. Como defendem Morin et al. (2004, p. 78), “a aprendizagem significativa exige um contacto directo com a complexidade do real”.

 



Educação para a Ética e a Cidadania

Deve-se formar o estudante não apenas como técnico, mas como cidadão ético, crítico e consciente. Freire (1996, p. 70) propõe que “educar é impregnar de sentido o que fazemos a cada instante. É formar para a responsabilidade, o diálogo e o compromisso com a transformação da realidade”.

É urgente promover valores de integridade, mérito e responsabilidade nas instituições de ensino.

 



Valorização da Formação Técnica e Profissional

A dignificação do ensino técnico pode ajudar a reduzir o culto ao diploma universitário como único caminho de sucesso.

 



7. Considerações Finais

A incongruência entre o que o certificado declara e o que o portador efectivamente representa, configura uma séria ameaça ao desenvolvimento sustentável de Angola. Quando os diplomas deixam de ser a expressão fiel das competências, habilidades e valores adquiridos ao longo de uma formação sólida, tornam-se meros papéis formais, desprovidos de conteúdo real. Essa distorção compromete a credibilidade das instituições de ensino, fragiliza o mercado de trabalho, desestimula o mérito autêntico e alimenta práticas nocivas como o clientelismo, o favoritismo e até a corrupção.

Num país que aspira ao progresso justo e duradouro, é imprescindível romper com essa lógica perversa. Os certificados e diplomas devem ser a consequência visível de um percurso educativo baseado na excelência, no rigor, na ética e no compromisso com a realidade social. Não se trata apenas de acumular créditos curriculares ou obter aprovação formal em disciplinas, mas sim de formar cidadãos críticos, competentes e conscientes do seu papel na construção de uma nação mais justa e desenvolvida.

Para alcançar essa transformação, a sociedade angolana precisa repensar profundamente seus valores, práticas educativas e mecanismos de avaliação e reconhecimento do mérito. É necessário valorizar o esforço legítimo, promover a cultura da integridade e combater a banalização dos títulos acadêmicos. O mérito verdadeiro não está no papel timbrado, mas na demonstração concreta de saber, na capacidade de resolver problemas reais e contribuir positivamente para o bem comum.

Como defende Perrenoud (2000, p. 14), “ensinar é sempre um ato de responsabilidade social e política, pois o que está em jogo é o futuro das gerações e da própria sociedade”. Urge, pois, uma acção conjunta do Estado, das instituições, dos educadores e da sociedade civil, para restaurar a dignidade da formação e, por conseguinte, a esperança num desenvolvimento sustentável para Angola.

Esse processo de mudança não começa nas instituições, mas sim na mente e na consciência de cada indivíduo. É preciso educar para a autenticidade, formar para a responsabilidade e premiar a competência genuína. A verdadeira transformação não se mede em certificados, mas em atitudes, acções e resultados sustentáveis que beneficiam toda a sociedade. É necessário inverter essa lógica, de forma que, os diplomas passem a ser reflexo de competências genuínas, e não apenas de um percurso formal. Para isso, a sociedade precisa repensar seus valores, suas práticas educativas e sua forma de reconhecer o mérito. A verdadeira transformação começa na mente – não no papel.

 

 






               Eugénio Joaquim Próspero 

               Huambo, Maio de 2025

 

 





Referências Bibliográficas:

Morais, J. C. (2020). Educação e Qualidade em Angola: Desafios e Perspectivas. Luanda: Ed. Nzila.

Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação – MESCTI (2023). Relatório de Avaliação das Instituições de Ensino Superior em Angola.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

MORIN, Edgar et al. Educação e complexidade: Os sete saberes necessários à educação do futuro. 4. Ed. São Paulo: Cortez, UNESCO, 2000..

PERRENOUD, Philippe. Construir competências desde a escola. Porto Alegre: Artmed, 1999.

UNESCO. Relatório Global sobre a Educação Superior 2022. Paris: UNESCO, 2022. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org. Acesso em: 10 abr. 2025.

UVALIĆ-TRUMBIĆ, Stamenka; DANIEL, John. A integridade acadêmica no ensino superior: Desafios e respostas. Paris: UNESCO, 2011.

ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.

CHAUÍ, Marilena. A universidade em ruínas. In:Universidade pública sob nova perspectiva. São Paulo: UNESP, 2001. P. 15–35.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9. Ed. São Paulo: Cortez, 2003.