A INCIDÊNCIA DO PRICÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO ABORTO CRIMINOSO E LEGAL/PERMITIDO
Por RAISSA LUZIA BRAGA DIAS | 30/06/2016 | DireitoA INCIDÊNCIA DO PRICÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA NO ABORTO CRIMINOSO E LEGAL/PERMITIDO[1]
SUMÁRIO: Introdução; 1. A perspectiva histórica do princípio da dignidade humana e a sua incidência no crime de aborto; 2. Duas facetas do aborto: criminoso e legal/permitido – a tênue análise entre eles; 3. Críticas e Falhas na aplicabilidade da legislação do aborto; Conclusão.
INTRODUÇÃO
Tem o presente trabalho, por finalidade, discorrer, discutir, analisar e refletir sobre a incidência do princípio da dignidade humana perante o aborto, ressaltando a sua relevância para o Direito Penal.
A parte histórica do principio da dignidade humana e sua evolução, é de elevada importância para uma melhor compreensão do aborto na sociedade e no mundo jurídico, que se torna nítido a partir da extrema valoração desse princípio no Direito. Esse destaque, que ocorreu no momento pós-guerra, traz à tona a proteção do bem jurídico, vida, elevando-o ao bem de maior importância, o qual deve ao máximo ser preservado, aumentando significativamente a reprovação social do crime de aborto.
No mundo jurídico, os dois tipos de abortos que possuem pertinência são: aborto legal/permitido e o criminoso. Deve-se atentar para as particularidades desses dois tipos, analisando as suas particularidades, para saber distinguir ambos, visto que, é uma linha tênue, pois, tanto um quanto o outro, envolvem o bem jurídico da vida. Sendo, também, importante analisar todos os aspectos e o contexto do aborto, para enquadrá-lo de forma adequada, pois a linha é tênue entre ambos.
Após detalhada análise sobre os tipos de aborto e a incidência do principio da dignidade humana, serão feitas reflexões a respeito do aborto e de sua previsão normativa no mundo concreto. Chamando atenção para a postura do Estado, do Judiciário, das delegacias e de todos que estão envolvidos no antes, durante e no pós a esse ato. Apontando as falhas do sistema e criticas às previsões normativas do aborto, levando em consideração a realidade da sociedade brasileira
- A PERSPECIVA HISTÓRICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA E A SUA INCIDÊNCIA NO CRIME DE ABORTO
O princípio da dignidade humana surgiu no sistema judiciário europeu, mais precisamente na Alemanha. Após a segunda guerra mundial, se viu necessário um direito constitucional que defendesse acima de tudo a vida humana, mas ele já vinha surgido antes, na verdade, sempre existiu dentro de cada ser humano, só não era respeitado. Porém com essa guerra, caiu em esquecimento, não tendo respeito nesse período o valor da vida de cada ser humano, após isso teve a necessidade de enfatizar ela como um dos principais direitos fundamentais, assim evitando que seres humanos sejam torturados, ou fossem massacrados, dentre outros atos que não tratam a vida humana com o verdadeiro valor que ela é. Essa dignidade da pessoa humana surge para o ser humano independente do querer ou não, é um valor que faz parte e agrega a vida humana, é um direito individual e de maior valor no ordenamento jurídico. Esse princípio surgiu após a sociedade perceber que todos os seres humanos são iguais e merecem ser tratados como iguais, e não seria uma posição na sociedade que demonstraria quem tinha mais valor e quem não tinha independente de dinheiro, de cor, de região, todos são iguais e tem que ter sua vida, honra e outros interesses pessoais respeitados. (XAVIER, 2011)
Com essa importância que essa dignidade da pessoa humana para a vida humana era inerente à colocação dela nos ordenamentos jurídicos. Dessa forma, o respeito à vida humana se tornou indispensável para que uma pessoa tenha uma vida digna e saudável, a Declaração universal de direito humanos e a Constituição Federal do Brasil em especial, trazem a importância da existência da dignidade humana, dessa forma, decidindo implantar em seus ordenamentos jurídicos para dar força normativa. Com a implantação desse direito no ordenamento jurídico, vem com ela à necessidade de constituir novos direitos referentes ao ser humano e que esses qualifiquem e protejam ainda mais a dignidade humana, sendo eles o direito à vida, à moradia, à honra, dentre outros direitos que tornem a vida humana mais digna, se tornando assim titular de diversos direitos, todos esses criados para melhor assegurar a dignidade da pessoa humana. (XAVIER, 2011)
Após a dignidade da pessoa humana ter sido ressaltada e reconhecida com certo grau de importância pela coletividade, surge a necessidade de pô-la sob guarda e proteção de todas as possíveis ofensas as quais pudessem vir a feri-la ou cercea-la. Sendo assim, a dignidade da pessoa humana é elevada ao patamar mais alto de uma sociedade democrática de direito, isto é, assume status de garantia constitucional.” (XAVIER, 2011)
Após essa breve apresentação sobre o surgimento do princípio da dignidade da pessoa humana, agora vamos mostrar como ele incide no crime de aborto. O direito à vida é um dos direitos que regem a partir do princípio da dignidade humana, o que torna ele um dos bens mais preciosos para o ser humano e a não concepção dele, se torna um dos crimes mais graves presentes do ordenamento jurídico. Diante de conflitos que aparecem no âmbito jurídico, o direito acaba de preservar mais um direito do que o outro, no caso que trazemos, o bem jurídico é o mesmo, a vida. No entanto o aborto é o rompimento da vida intrauterina do feto, resultando a expulsão do feto e assim sua morte. Os únicos casos que a vida de uma pessoa se sobressai à vida de outra é quando a expõe em perigo, é o caso de uma gravidez de risco, que no caso, o desenvolvimento da criança pode resultar na morte da mãe, ou quando é resultante de estupro ou quando a vida também é posta em perigo, caso de legítima defesa, assim, pode realizar atos para a proteção da vida, podendo essa sobrepor sobre a vida de um terceiro.
No caso, o feto só terá sua vida submetida à vida da mãe de acordo com o dispositivo do artigo 128 do código penal. Dessa forma, o crime de aborto não é considerado inconstitucional quando é realizado para a preservação de outra vida, assim a prática de aborto que não satisfaça os ditames exposto no artigo 128 se torna um ato inconstitucional, sujeito a punições, pois não podemos tirar a vida de ninguém sem razão para a ocorrência desse ato, a constituição garante o direito à vida, assim como está exposto em seu artigo 5° e ela deve ser preservada acima de qualquer outro bem jurídico.
O crime de aborto é um ato totalmente inaceitável de acordo com nosso ordenamento jurídico. A preservação da vida humana tem que se posicionar acima de qualquer outra vontade, sendo uma prática egoísta e homicida quem interrompe a gravidez apenas porque não se protegeu o bastante e acabou resultando em uma gravidez indesejada. O feto tem direito à vida, o que resulta então é que a prática do aborto se torna um crime que viola ditames constitucionais e os direitos nele resguardado, não fica submetido à mãe em decidir se conceberá o bebê ou não, só no fato dele se formar dentro do útero, já é concebido a ele esse direito à vida. Fica assim evidente a influência que o princípio da dignidade humana apresenta para analisar o porquê de o aborto ser um crime, pois fica incontestado que esse ato fere dispositivos constitucionais e também que a realização dessa prática envolve um conflito sobre vidas. O que importa na realidade é a proteção da vida, todos os seres humanos tem direito à vida, e esse princípio vem para proporcionar essa proteção, temos que assumir uma colocação a favor dessa vida, principalmente a proteção de vidas que estão se formando no útero materno.
Nesse sentido, João Carlos Carollo em seu artigo “A inconstitucionalidade do art.128, II, Código Penal”, traz que desde o surgimento do aborto como crime na legislação brasileira o objetivo fulcral sempre foi preservar a vida, como é percebido neste trecho do seu artigo:
O aborto aparece na nossa legislação pela primeira vez em 1830, com o Código Criminal do Império, no Capítulo dos “crimes contra a segurança da pessoa e da vida”, nos seus artigos 199 e 200. Percebe-se, claramente, que o legislador da época do império já possuía a intenção de tutelar o bem vida ao inserir o crime de aborto no capítulo próprio para esse fim.
- DUAS FACETAS DO ABORTO: CRIMINOSO E LEGAL/PERMITIDO – A TÊNUA ANÁLISE ENTRE ELES
Atualmente, a prática do aborto é uma infração penal que mais tem levantado discussão, pois buscam analisar a essência do aborto. Se de fato a gestação foi interrompida naturalmente, ou se é proveniente de casos que a lei protege, como a gravidez que foi resultado de estupro ou a gravidez que possa comprometer a saúde da gestante (art.128, inciso I e II do Código Penal). Ou saber se essa ação de interromper a gestação provocando a morte do feto vem ausente desses pressupostos trazidos pelo código penal, que resultaria essa prática em crime. Outro forte motivo que leva o aborto a ter polêmicas discussões é o fato de envolver o bem jurídico mais relevante, a vida e, consequentemente o direitos da gestante e do nascituro.
Para classificar essa prática como crime, é preciso analisar utilizando conhecimentos da jurisprudência ou de doutrinadores, pois no Código Penal, não fica claro o determinante para que essa prática se torne crime ou que não se torne. Segundo teóricos utilizados por Rogério Greco para a determinação do crime de aborto, é a interrupção do processo da gestação, resultando na morte do feto e sua expulsão intrauterina. (GRECO, P. 224, 2012). Essa prática vem sendo bastante utilizada, o que trava discussões sobre ilegalidade, pois por não ser aceito em lei, as gestantes que não querem aquela gravidez e não se encaixam nas formas legais para a realização dessa prática, procura em clínicas ilegais para a realização desse método e assim interromper uma gravidez não desejada.
Sabendo que o aborto provoca a morte do feto, se torna uma prática ilegal, pois um dos direito fundamentais do ser humano é o direito a vida, e nenhuma vida podem sobressair à outra. Sem respaldo na Lei, ninguém tem o direito de tirar a vida de outro ser humano e por conta desse ser humano ser indefeso e cresça no útero da sua mãe, a mesma não tem o poder de determinar se ele vive ou não. Os meios utilizados pelos médicos e clínicas, são extremamente agressivos, não entendemos a dor, o sofrimento e muita das vezes aceitaram o aborto como sendo uma prática natural da vida humana. (GRECO, P. 225,2012)
O problema no delito de aborto é que não percebemos a dor sofrida pelo óvulo, pelo embrião ou mesmo pelo feto. Como não presenciamos, não enxergamos, não ouvimos o seu sofrimento, aceitamos a morte dele com tranquilidade. (GRECO, P. 225, 2012)
O bem jurídico mais importante é a vida, e ela tem que ser protegida acima de qualquer circunstância. Então interromper a gestação ou assassinar uma pessoa, para Greco é a mesma coisa, afinal o importante é a vida e não que estado se encontra o ser humano, pois mesmo estando no útero materno, é um ser vivo e tem que ter sua vida protegida. (GRECO, P.225,2012). No aborto, de acordo com o código penal, pune de forma diferente os agentes que participaram desse ato, no caso a mãe e um terceiro ou terceiros, cada forma terá mudanças nas penas, se ocorrer um auto aborto, aquele que a própria gestante executa toda a pratica, a pena será apenas para ela, se for realizado por um terceiro a pena alterará de acordo com o consentimento ou não da mãe, tendo casos que os dois responderam, mas com penas diferentes, e há casos que a gestante ficará isenta de qualquer pena se não tinha o menor consentimento da prática. Também, há casos que o aborto é provocado após a ocorrência de uma lesão corporal de natureza grave, podendo assim, aumentar a pena. (GRECO, P.225,2012)
Segundo Rogério Greco, a vida inicia com a fecundação, mas para âmbito penal, essa iniciação a partir da nidação, que é o óvulo já fecundado no útero materno, que ocorre 14 dias após a fecundação. (GRECO, P. 226, 2012). Concluindo que só terá essa proteção a vida no âmbito penal, após esse período de 14 dias. Essa concepção exclui certas discussões sobre alguns usos de anticoncepcionais, DIO e certas pílulas, que estavam sendo apontadas como formas de realização do aborto, pois algumas delas atuavam após a concepção, impedindo que o óvulo chegasse ao endométrio, algumas pílulas e ate mesmo o DIO que não impedem a concepção e sim a fecundação, impedindo o seu desenvolvimento, realizando a precoce repulsão. Desse modo após a interpretação da lei, tiraria o sentido dessas pílulas e métodos contraceptivos de abortivas, pois só após a nidação, implantação do óvulo no útero materno que começa a proteção da vida no direito penal, e como nesses outros contraceptivos não ocorre essa implantação, só a concepção, é tirado esse caráter abortivo que travou tantas discussões no direito para decidir o mérito, se seria considerado ou não uma pratica abortiva. (GRECO, P.226-227, 2012).
Dessa forma, temos a nidação como termo inicial para a proteção da vida, por intermédio do tipo penal do aborto. Portanto, uma vez implantado o ovo no útero materno, qualquer comportamento dirigido finalisticamente no sentido de interromper a gravidez, pelo menos à primeira vista, será considerado aborto (consumado ou tentado). (GRECO, P. 227, 2012)
Como já vimos, é apenas a retirada do feto da cavidade intrauterina que se classifica como aborto. Quando ocorre a concepção do feto em outro lugar que não seja na cavidade uterina, como por exemplo, nas trompas, não será designada como aborto. A gravidez fora do útero materno pode resultar no não desenvolvimento do feto, tendo assim, a gravidez interrompida.
A proteção da vida do feto no âmbito penal iniciasse com a nidação e termina com o nascimento da criança, pois após o nascimento não será considerado a morte da criança como aborto, ele entra agora em outro âmbito penal, será considerado ou infanticídio ou homicídio, a designação do ato dependerá do caso concreto. O nascimento do bebê pode ser caracterizado com a dilatação do colo do útero, rompimento da membrana amniótica ou no caso de cesariana, com o corte do abdome. (GRECO, P. 227, 2012).
O aborto é separado em duas classificações no Código Penal. Sendo eles o aborto natural ou espontâneo e o provocado. A primeira classificação que expomos aqui é o aborto natural ou espontâneo, que é caracterizado pela expulsão natural do feto pelo próprio organismo materno, quando o organismo não consegue conceder de modo harmônico com o seu corpo a concepção do feto, ele provocará o chamado aborto espontâneo, que se realiza excluindo qualquer técnica humana, realiza apenas com a não aceitação do organismo materno com feto, resultando na expulsão dele. O aborto natural ou espontâneo não se integra para análise no Código Penal, pois o mesmo é excluído na existência de dolo ou culpa, não tendo finalidade na aplicação de leis penais.
O que tem relevância no âmbito penal é o chamado aborto provocado, que sempre terá como elemento subjetivo o dolo, seja ele eventual ou direto. De acordo com o artigo 124 do CP, que é quando a gestante provoca ou tem consentimento com o ato, com pena de detenção de um a três anos. Artigo 125, que é provocado por um terceiro sem que a gestante tenha consentimento, com pena de reclusão de três a dez anos. E o artigo 126, que consiste em provocar o aborto com o consentimento da gestante, pena de reclusão de um a quatro anos. Em casos de gestantes com menos de 14 anos, é aplicado o artigo 125, esse artigo também abrange gestantes inimputáveis ou débeis mentais, ou se o consentimento é fraudulento. (BRASIL, CÓDIGO PENAL, 2013).
É interessante observar que:
O aborto é um crime doloso. É necessário que o agente queira o resultado ou assuma o risco de produzi-lo. Ora, se aborto só é punível a título de dolo, não existe, então, a figura culposa. Sendo assim, o terceiro que, culposamente, vem a causar a interrupção da gestação, responderá apenas por lesão corporal culposa. O dolo pode ser direto ou eventual. Direto: o agente tem a vontade, ele quer de qualquer forma produzir o resultado, causando a interrupção da gravidez e matando o feto. Eventual: o agente, que nesse caso pode ser a própria gestante, assume o risco de produzir o resultado aborto, sabendo ou tendo consciência que poderá vir a abortar. No aborto qualificado pelo resultado, o crime é preterdoloso, ou seja, dolo no antecedente (aborto) e culpa no consequente (lesão ou morte). (CAPEZ, p. 114, 2007)
Para sabermos quem é o sujeito ativo e o passivo, tem que ser analisada separadamente cada artigo. No artigo 124, a gestante é o sujeito ativo do crime, já o artigo 125, o aborto é realizado por um terceiro sem o consentimento da gestante, nesse caso, qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo e no artigo 126, o sujeito ativo pode ser realizado por qualquer pessoa, mas o que muda do artigo 126 e 125 será o sujeito passivo, que no artigo 125 tanto a mãe quanto o bebê serão sujeitos passivos e no artigo 126 apenas o feto será o sujeito passivo. Capez também os analisa dessa forma, separadamente:
No Sujeito ativo - Para identificar a figura do sujeito ativo é necessário analisar a figura típica que foi violada. No caso do art. 124, que prevê o aborto provocado pela gestante ou por seu consentimento, o sujeito ativo do crime será sempre a gestante. Já no art. 125, que prevê o aborto provocado por terceiro, sem o consentimento da gestante, qualquer pessoa pode ser sujeito ativo, pois o tipo penal não exige nenhuma qualidade especial. E o art. 126, que diz respeito ao aborto provocado por terceiro, com consentimento da gestante, também poderá ter qualquer pessoa como
sujeito ativo do crime.
No Sujeito passivo - Segundo doutrina majoritária, sujeito passivo do crime de aborto é o feto, ou seja, o produto da concepção. Há entendimentos, que quando caracterizada a figura do tipo penal art. 125, existe dois sujeitos passivos, de forma precípua, o feto e de maneira secundária, a gestante. Nessa espécie de aborto, há dupla subjetividade passiva: o feto e a gestante. (p.2012, 2007)
O aborto tem grande influência na vida da mulher, pois a forma que será feito o aborto pode resultar em danos graves a saúde, podendo resultar até em seu óbito. O aborto legal, dificilmente passará por essa possibilidade de perigo a vida materna, esse aborto é realizado em clínicas especializadas e legalmente enquadradas nos padrões hospitalares, são lugares higienizados e seguros, com profissionais qualificados e reconhecidos para a realização da prática. O aborto ilegal é aquele que a mulher engravidou por descuido, ou por falta de informação, sem nenhuma justificativa para poder fazer a retirada do feto pelos ditames legais, pois a única justificativa é não ter a vontade de ter um filho, dessa forma, não tem nenhum dispositivo legal que proteja essa atitude da mulher, levando na maioria dos casos, a procurar clínicas ilegais para realizar a retirada do feto do útero. Essa prática é realizada em clínicas clandestinas, os profissionais em que nela trabalha, na maioria dos casos não tem treinamento adequado para realizar essa “operação”, o lugar não possui a higiene necessária para a realização hospitalar, resultando em muita das vezes em complicações, infecções, dentre outros resultados, que levam muitos dos casos, em óbito. A realização dessa prática em clínicas especializadas tem a preocupação de zelar pela vida da gestante, então, é realizado um acompanhamento antes, durante e após o procedimento do aborto, para retirar qualquer possibilidade de ocorrer uma complicação e resultar em morte. (GRECO, P.237, 2012)
(...) está previsto o aborto necessário (ou terapêutico) que, no entender da doutrina, caracteriza caso de estado de necessidade (que não existiria no caso de perigo futuro). Para evitar qualquer dificuldade, deixou ao legislador consignado expressamente a possibilidade de o médico provocar o aborto se verificar ser esse o único meio de salvar a vida da gestante. No caso, não é necessário que o perigo seja atual, bastando a certeza de que o desenvolvimento da gravidez poderá provocar a morte da gestante. (MIRABETE, P.99,2004)
É interessante a análise da jurisprudência a respeito do aborto sentimental/ético que está dentro do aborto legal/permitido, no inc. II do art. 128 do CP:
Ementa: ABORTO SENTIMENTAL. CONFLITO QUE SE ESTABELECE ENTRE OS VALORES VIDA (DO FETO) E DIGNIDADE HUMANA (DA GESTANTE). ADOLESCENTE COM SEVERAS DEFICIÊNCIAS MENTAIS QUE SE VIU SUBMETIDA A RELAÇÕES SEXUAIS COM O PRÓPRIO TIO E PADRASTO, QUE DETINHA SUA GUARDA FORMAL, DO QUE RESULTOU A GRAVIDEZ. REVOGAÇÃO DA GUARDA QUE CONFERIU AO MINISTÉRIO PÚBLICO, PELA FALTA DE REPRESENTANTE LEGAL, LEGITIMIDADE PARA ATUAR EM SEU NOME. O Código Penal declara impunível o aborto praticado pelo médico com o consentimento da gestante vítima de estupro. Assim, fazendo o legislador, no exercício de suas atribuições constitucionais, a opção pelo interesse da dignidade humana em detrimento da mantença da gravidez, ao magistrado compete, acionada a jurisdição, assumir a responsabilidade que lhe cabe no processo, fazendo valer a lei. Se a realidade evidencia que médico algum faria a intervenção sem a garantia de que nada lhe ocorreria, não tem como o magistrado cruzar os braços, sob o argumento de que só após, se instaurada alguma movimentação penal, lhe caberia dizer que não houve crime. Omissão dessa natureza implicaria deixar ao desabrigo a vítima do crime, jogando-a à própria sorte. Não há valores absolutos. Nem a vida, que bem pode ser relativizada, como se observa no homicídio praticado em legítima defesa, por exemplo. E nessa relativização ingressa também o respeito à dignidade da mulher estuprada. Ainda mais se, adolescente, com graves problemas mentais, vê agravada sua situação de infelicidade pelo fato de ser o próprio tio e padrasto o autor do crime, o que a colocou também em situação de absoluta falta de assistência familiar e de representação legal, exigindo abrigamento e atuação de parte do Ministério Público. Manifestação do Ministério Público, autor da medida, indicada também pela área técnica do serviço do Município encarregado de dar atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência. Recurso provido. (Agravo de Instrumento Nº 70018163246, Câmara Medidas Urgentes Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Marcelo Bandeira Pereira, Julgado em 03/01/2007)
Após a análise sobre a prática do aborto e reconhecendo qual delas é crime e qual classificação fica excludente de ilicitude. É interessante reconhecer a importância do princípio da dignidade humana para a construção da concepção do crime de aborto, pois para o princípio da dignidade humana o principal bem que será protegido acima de qualquer circunstância, é a vida e o crime de aborto coloca em cheque a vida perante outra vida. O que não se pode ocorrer, visto que nenhuma vida é mais importante do que a outra, e só é aceitável a retirada da vida do feto se o mesmo estiver prejudicando a saúde da mãe ou estiver sua realização prevista na lei, como por exemplo, artigo 128 do Código Penal fica isento de punição. Porém tirar a vida de um ser humano pelo simples fato de não querer aquela gestação, pelo fato de não ter tomado as devidas precauções, não dá o direito da retirada do feto. Sendo caracterizada essa retirada como crime, pois fere o princípio da dignidade humana exposto do capítulo anterior. Ainda entro dessa discussão a respeito do bem jurídico envolvido, a vida, é interessante ressaltar que existe uma doutrina minoritária que diz que o art.128, inciso II é inconstitucional, e os seus argumentos estão presentes no caput e no inc. XLVII da Constituição Federal de 1988 e no art. 2º do Código Civil de 2002:
Art. 5°, caput: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
Art. 5º, inc. XLVII: não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX.
Art. 2º do CC: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
- CRÍTICAS E FALHAS NA APLICABILIDADE DA LEGISLÇÃO DO ABORTO
O Código Penal, amplamente discutido nos itens anteriores, especificamente no tocante ao crime de aborto legal e criminoso, será submetido, neste item três, a uma análise mais profunda e crítica ao seu texto normativo frente à realidade brasileira.
O aborto é uma prática cometida há séculos, em virtude disso, vem sofrendo mudanças em consonância com a sociedade, visto que, esta ultima é dinâmica, mudam-se anseios, a ciência, pensamentos e entre outros aspectos que contextualizam a mesma.
As principais críticas e falhas presentes na legislação que trata desse crime, atualmente, são: quanto ao exame de corpo de delito; resultando no aborto; demora para o início dos procedimentos necessários (tomar medicamentos que evitem o contágio de doenças, acompanhamento psicológico, aborto sentimental etc) após o estupro; fiscalização de clínicas clandestinas que realizam o aborto; fiscalização de medicamentos abortivos.
A análise do corpo de delito no crime de estupro é enriquecedora para o tema tratado, crime de aborto, pois, muitas vezes este primeiro crime resulta numa gravidez indesejada, havendo na legislação previsões para esses casos, que é o aborto sentimental, discutido amplamente anteriormente, se enquadrando dentro do aborto legal/permitido.
O exame de corpo de delito é um procedimento necessário o qual a vítima deve se submeter, ele é uma constatação médica, o qual serve para detectar se houve alguma intervenção incomum na estrutura corpórea, servindo para comprovar os fatos alegados pela vítima. Esse exame, quando realizado para constatar o crime de estupro, é extremamente constrangedor, ocorrendo, em alguns casos (sem generalizações), uma dupla vitimização, visto que, não adequam esses exames para o contexto que envolve esse crime, que é uma violência que incide sobre a intimidade da pessoa, devendo estes ser realizados, preferencialmente, por mulheres, em situações que primem pelo máximo de conforto e acolhimento possível, pois, a pessoa a qual se submete a esse exame é potencialmente uma vítima desse crime tão bárbaro.
A jurisprudência corrobora com as vítimas do estupro, pois na ausência do exame de corpo de delito, ela aceita a prova testemunhal, óbvio que deve-se analisar cada caso concreto, mas o fato relevante é que é permitido essa espécie de prova, como traz as jurisprudências do TJ-MG e TJ-MA, respectivamente:
EMENTA:APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO – PROVA TESTEMUNHAL – DEPOIMENTO DA VÍTIMA CORROBORADO POR OUTROS ELEMENTOS DE PROVA - CONDENAÇÃO. (Acórdão Nº 1.0000.00.156529-0/000 , 2ª Câmara Criminal Criminal, Tribunal de Justiça de MG, Relator: Des. Roney Oliveira , Julgado em 02/12/1999)
EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL - ESTUPRO - CRIME PRATICADO AS ESCURAS, SEM TESTEMUNHAS - DECLARAÇÕES DA VÍTIMA REVESTEM-SE DE VALOR PROBANTE. (ACORDÃO Nº 33.966/2001, 2ª Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do MA, Relator: Des. José Pires da Fonsêca, julgado em 22/02/2001)
Apesar de ser um aspecto positivo a possibilidade de prova testemunhal no crime de estupro, e tornar possível a aplicabilidade do aborto sentimental quando esse crime resultar em gravidez existe a outra face desta moeda, a de que raramente o crime de estupro possui testemunha, oque dificulta a comprovação do crime e, consequentemente, a aplicação do inciso II do art. 128.
Ainda dentro do aborto sentimental, o qual a gravidez é proveniente de estupro, tem-se todos os procedimentos a serem feitos após o Boletim de Ocorrência e o Exame de Corpo de Delito, a deficiência deste último, como a demasiada demora e a falta de materiais para a sua realização, contribuem para o atraso dos procedimentos que devem ser feitos e que irão resguardar o direito da mulher em optar pelo aborto “ético” ou “humanitário”, como muito tem se chamado o aborto tratado no qual o inciso II do art. 128.
A criminalização do aborto no Brasil faz com que existam inúmeras clinicas clandestinas e a circulação de medicamentos abortivos pelo país, resultando no abortamento inseguro. Um dos jornais de maior circulação em São Paulo, O Estadão, trouxe a seguinte matéria “Curetagem após aborto é a cirurgia mais realizada no SUS, revela estudo”, ela traz uma reflexão sobre a aplicação da legislação na realidade brasileira, mostrando que, a criminalização do aborto faz com que as mulheres recorram a um “submundo”, o qual coloca em risco todas as mulheres que almejam o aborto, seja por dificuldade no trâmite de conseguir a autorização judicial e por vários outros motivos. A ideia que essa matéria traz traduz bastante a realidade concreta e o quadro em que a legislação se encontra:
Segundo estimativa do Ministério da Saúde, a maioria das curetagens realizadas é decorrente de aborto provocado. O médico Thomaz Gollop, coordenador do grupo de estudos sobre o aborto da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, concorda. "A maior parte dos abortamentos espontâneos não exige internação. As complicações são quase absolutamente resultantes de abortos provocados", diz . "Isso mostra que a lei vigente é completamente ineficaz. Além de não coibir, faz com que o SUS gaste uma fortuna com abortos mal assistidos.
A partir dessas críticas e falhas apontadas na legislação vigente que trata do crime de aborto e da realidade concreta da sociedade brasileira, é necessário repensar em soluções para melhorar a aplicabilidade dessa lei, tais como: fiscalização efetiva de clinicas clandestina e circulação de medicamentos abortivos; organizar e melhorar as condições em que se realiza o atendimento do exame de corpo de delito; criar políticas públicas de informação sobre como prevenir a gravidez em todas as camadas sociais. Caso não se consiga manter essa estrutura, deve-se pensar na descriminalização do aborto, visto que, é contraditório o aborto ser criminalizado e o Estado não conseguir assegurar as mínimas condições para o seu correto procedimento.
CONCLUSÃO
O presente trabalho abordou o crime de aborto na legislação brasileira a partir da incidência do princípio da dignidade humana. Tema que é extremamente polêmico, considerado por muitos juristas e membros do legislativo como “tabu”. No entanto, reflexões a cerca desse assunto são extremamente enriquecedoras, pois, a sua análise não se restringe somente ao crime de aborto, mas envolve outros interessantes assuntos do âmbito jurídico, tais como a dignidade humana, o bem jurídico maior que é a vida, os direitos da gestante e do nascituro, estendendo-se até uma análise da ética profissional e da bioética.
A análise do crime de aborto em conjunto com todas essas análises secundárias necessárias para um melhor entendimento e aprofundamento desse crime, revela a complexidade que o envolve, tanto sobre questões legislativas e biológicas, tendo em vista que não se tem um consenso biológico de quando se inicia a vida, a linha tênue entre vida e feto, quanto a respeito da realidade concreta, a qual deixa muito a desejar em seus procedimentos (exame de corpo delito, B.O) bem como a falta de fiscalização de clinicas clandestina e a circulação de medicamentos abortivos, abrindo margem pra ineficácia dessa lei.
Por fim, abre-se margem para a reflexão do crime de aborto frente à dignidade humana, os direitos da mulher e do nascituro diante de toda a realidade social, as falhas no plano concreto e a reflexão sobre a eficácia dessa lei e sobre a possibilidade da descriminalização do aborto, caso as soluções para os problemas atuais não consigam ser implantadas e mantidas, para que possa “sustentar” a permanência da criminalização do aborto.
REFERENCIAS
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[1] Paper apresentado à disciplina de Direito Penal Especial I;
[2] Aluna do 4º período noturno do curso de Direito da UNDB;
[3] Aluna do 4º período noturno do curso de Direito da UNDB;
[4] Aluna do 4º período noturno do curso de Direito da UNDB;
[5] Professo, especialista, orientador.