A igreja é o povo de Deus, povo do reino de Deus, que o serve nesse mundo. A Reforma entendeu a igreja como sendo visível e invisível,  militante e triunfante. De uma forma bem resumida e simplificada, a igreja visível, no entender dos reformadores é constituída por todos aqueles (e seus filhos) que foram batizados e que professam que as escrituras são a única regra de  fé e prática,  participam dos sacramentos e da disciplina Dentro da igreja visível encontram-se verdadeiros e falsos seguidores. Quanto à igreja invisível, é constituída por todos aqueles que nasceram de novo. É o corpo de Cristo, a casa de Deus, que está sendo edificada aqui na terra. Quanto à segunda divisão feita pelos reformadores, a igreja triunfante é aquela que já venceu e está nos céus com Cristo. A igreja militante é aquela que se encontra ainda na terra, envolvida em lutas contra todo tipo de mal.

A afirmativa de que a igreja é o povo de Deus, quer buscar a definição de igreja como sendo a igreja visível, em que muitos seguidores  de fato não entraram ainda no reino de Deus. Fazem parte da igreja, conhecem as escrituras, participam dos sacramentos e disciplina, mas ainda não estão arrolados no livro da vida. Como só Deus sabe de fato e absolutamente quem são os verdadeiros seguidores,  igreja aqui se refere a todos que fazem parte do seu rol. Afinal de contas, aquele que diz ser de Cristo, deve ser considerado pelos demais como sendo de Cristo, salvo se apostatar para sempre.

Para melhor desenvolver o tema proposto nesse capítulo é de muita importância que se trabalhe primeiro a seguinte questão: qual a relação entre igreja e reino de Deus? Essa pergunta merece uma análise mais densa, visto que uma melhor compreensão da missão da igreja passa por aqui.

Para melhor compreensão do assunto parece importante definir o que é reino de Deus, para então prosseguir no desenvolvimento da resposta à pergunta inicial. São muitas as definições sobre reino de Deus. Não é propósito rechear o trabalho hora proposto de citações, senão o mínimo necessário que faça um apanhado daquilo que o autor dessa obra tem  entendido ser o reino de Deus.  Uma definição clássica da teologia  reformada, segundo o teólogo Louis Berkhof é:

“a idéia primordial do reino é a do governo de Deus estabelecido e reconhecido nos corações dos pecadores pela poderosa influência regeneradora do Espírito Santo (...) um governo que, em princípio, é realizado na terra, mas que não chegará à sua  culminação antes do visível e glorioso retorno de Jesus Cristo.”[1]

Segundo essa definição,  reino de Deus diz respeito ao governo de Deus sobre o seu povo. Por conseguinte, esse governo somente é possível no coração daqueles que já esperimentaram a regeneração operada graciosamente pelo Espírito Santo de Deus. Berkhof entende que esse governo não será perfeito aqui na terra, mas somente na regeneração final! Isso equivale a dizer que o governo de Cristo sobre o seu povo ainda sofrerá influência e interferência do pecado, por causa da imperfeição humana, não se fazendo perfeito senão quando todos forem revestidos de imortalidade, ocasião em que o mal será completamente extirpado e a vontade do Senhor se fará na terra como é feita nos céus. Por enquanto, o Senhor reina através do seu Espírito no coração do fiel, parcialmente, uma vez que esse ainda está na carne, na corrupção.

Mas, todo governo de Deus é reino de Deus? Há uma diferenciação entre o reino de Deus e a providência de Deus. Essa diferença não é de natureza, mas de dispensação. Enquanto que o reino diz respeito ao seu governo especial no processo de recriação de todas as coisas e destruição de todas as obras do diabo, a providência diz respeito ao seu governo geral, sobre a criação. O primeiro sobre o processo de implantação da segunda ordem, e o segundo sobre o epílogo da primeira ordem. Nesse caso, o redimido vive o governo de Deus  como as demais criaturas e também como filho. Exemplo disso é que o Senhor faz nascer o seu sol sobre todos, envia chuva, dá condições da renovação da vida, abençoa a terra para que produza, incentiva os homens a fazerem o bem, como dá a paga segundo a plantação de cada um, etc. Isso ele faz sobre todos. Entretanto, o seu governo como rei, como Pai, somente se faz na esfera do reino, no coração daqueles que já nasceram de novo.

O reino de Deus é visto no Antigo Testamento como o seu governo sobre toda a criação e sobre Israel; sendo que nesse último é tido como rei e Pai[2]. Essa mesma ambigüidade se faz presente no Novo Testamento, somente que neste, o reino, no sentido especial, chega na encarnação e especialmente na glorificação do filho de Deus. Em Jesus Cristo o reino veio no sentido de estar presente, mas ainda não pleno. A respeito desse assunto é importante observar o que diz o teólogo René Padilha:

“O reino de Deus não é meramente o governo de Deus sobre o mundo por meio da criação e da providência; se esse fosse o caso, não poderíamos afirmar que foi inaugurado por Jesus Cristo. O Reino de Deus é antes, uma expressão do governo final de Deus em toda a criação, o mesmo que, em antecipação ao fim, se fez presente na pessoa e obra de Jesus Cristo.”[3]

Jesus Cristo, o segundo Adão, veio restaurar não só ao homem caído, mas à natureza caída. O reino de Deus é implantado  no coração de homens humildes de Israel e também em tantos outros corações, que atinge outras nações. Chegará o dia, em que após ter destruído a todos os inimigos de Deus, o reino será  entregue ao Pai.  Toda a autoridade lhe foi dada pelo pai nos céus e na terra para que o processo de implantação do reino se complete.

O reino é presente e também futuro. Ele, misteriosamente, ocultamente, está implantado aqui entre nós, mas a sua plenitude somente virá na parousia, na volta gloriosa e triunfante do Senhor. Em Jesus Cristo, cria-se duas esferas governadas e que são inseparáveis. Na esfera da criação, providencialmente, Deus continua reinando. Esse exercício é chamado de providência geral. Na esfera da redenção, providência especial, salvificamente, o Senhor vai estendendo o seu poder recriador, baseado em toda autoridade recebida. O reino de Deus, quer sobre a criação, quer sobre a igreja, está nas mãos do Senhor. Ele reina soberanamente não só sobre a natureza, mas sobre os homens e todos os espíritos. Então dizer que a providência tem razão de ser em preservar a criação da destruição e leva-la à cruz do calvário.

Para não haver confusão, na providência geral, Deus governa sobre a primeira criação. No reino, providência especial, o Senhor governa sobre o processo de regeneração da mesma. O objeto mirado pelo governo é o mesmo: a criação. Deus continua reinando em sua providência e em sua redenção. Ao mesmo tempo que vai regenerando novos corações, continua preservando, concorrendo e governando sobre toda a criação, mesmo sobre os rebeldes. É preciso, portanto, reforçar a distinção entre a influência da ação providencial de Deus sobre a primeira criação e do seu reino sobre a segunda criação, na sociedade humana.  O governo de Deus sobre a esfera da criação e sobre a esfera da redenção não implica jamais em que haja dois tempos ou dois espaços diferentes. As duas  esferas do governo, no contexto bíblico nem ao menos dão qualquer direito de entender-se que a esfera do reino seja sagrada e que a esfera da criação seja profana ou secular. As realidades das duas esferas, não podem ser usadas para embasar qualquer ensinamento de que se processam em espaços, tempos e categorias que não sejam desse mundo, dessa criação. Qualquer tentativa de se criar tais concepções não tem qualquer apoio escriturístico, senão influência filosófica  gnóstica.

O processo redentor opera exatamente na esfera da criação num intenso anelo  de regenerar e re-significar toda a criação, voltando-a para a glória de Deus. O espaço reservado para essa discussão não permite aprofundar ou estender muito o assunto, porém deve-se destacar que as culturas, as ciências, as artes, o laser, os sistemas, as instituições, atingidas pela influência do reino de Deus serão completamente re-significadas. Não implica isso que a igreja deva reinar sobre o mundo, como  se fosse o reino de Deus. A igreja não esgota o reino de Deus e não foi chamada para reinar sobre as nações politicamente.

A influência do reino não significará que  as artes devam expressar somente temas espirituais, que as músicas devam falar somente de temas celestiais, que as ciências devam ter a bíblia como o seu manual, que a cultura deva versar somente sobre temas bíblicos. Não. Re-significar a criação, quando a esfera do reino escatológico amplia suas fronteiras,  é purificá-la de todo conteúdo simbólico ou  comportamental que não esteja de acordo com a verdade de Deus. É de fato reconhecer o Senhor Jesus como o centro da vida, da história, dos sistemas, da cultura etc.,[4] e esse reconhecimento se dá primeiramente individualmente. Na medida em que as pessoas são convertidas pela ação do Espírito Santo, suas maneiras de ver o mundo hão de re-significar seus sistemas sociais, suas leis, suas manifestações artísticas, culturais e científicas, sua moral, religião, tradições, etc. Há sobras de exemplos na história.  Geralmente em seguida a algum grande re-avivamento da igreja, a sociedade como um todo passa por grandes modificações culturais, morais, éticas e sistêmicas. Ao contrário,  sociedades cristãs que perderam o “sabor do sal”  também passaram e passam por grandes transformações culturais; valores estranhos ao reino de Deus voltam a permear toda a cultura.[5]    O reino de Deus é a recriação de tudo o que o pecado destruiu. Em Jesus, Deus recriará todas as coisas e já começou.

O reino de Deus não tem qualquer caráter político ou nacional. Não há qualquer pretensão da parte de Deus de governar as sociedades através da igreja ou de homens ou mulheres dele. As tentativas de  colocar o mundo sob o governo de Deus através dos aparatos do estado ou da igreja deram em grandes desastres de ordem social e moral. O governo de Deus se fará notável nos corações dos homens. Esses, sob um prisma ideal,  desincumbirão os seus trabalhos sob o temor do Senhor fazendo tudo como se fosse para ele. É nesse sentido que o reino se estende a outros e se faz presente. Portanto não é missão da igreja governar os povos ou colocar sob a sua jurisdição as instituições sociais como escola, família, hospitais, assembléias, congressos, etc. A igreja pode até entrar em alguns setores da sociedade como escolas, hospitais, creches, clubes etc., mas movida por amor à sociedade numa perspectiva evangelizadora e não de controle como se Jesus quisesse reinar aos moldes dos reinos desse mundo.  Ele quer reinar influenciando os reinos desse mundo, através de homens e mulheres que tenham em seus corações o santo temor. Na sua manifestação gloriosa os reinos desse mundo o reconhecerão como Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Ainda sobre a igreja e o reino, é importante reforçar que a igreja não esgota o reino de Deus. Pode ser considerada povo do reino, mas não esgota o reino de Deus. A respeito desse assunto,  Luiz Berkhof diz: “Pode-se dizer que o Reino é um conceito mais amplo que a Igreja, porque objetiva nada menos que o domínio completo de todas as manifestações da vida. Ele representa o domínio de Deus em todas as esferas do esforço humano”[6]

Ladd observa que o reino já existia antes da igreja. Foi tirado de Israel e entregue a um povo estranho[7]. O caráter escatológico do  reino inaugurou-se  em Jesus Cristo[8], por isso dizer-se de uma escatologia inaugurada e em processo em direção à plenitude.  Portanto,  o reino  criou a igreja[9]. Em Jesus inaugura-se o caráter escatológico do reino. A igreja é filha desse reino, em alguns aspectos possui características dele, mas não o esgota. Através dela, de forma ordinária, Jesus expande o seu reino; entretanto, a igreja não esgota o reino.

A observação de Berkhof citada acima merece maior atenção pois uma das características fundamentais de que o reino é bem mais amplo do que a igreja, é que o governo do reino é muito mais amplo do que o governo da igreja. Esse governo abarca todos os cantos da vida do fiel, tanto o fórum externo como o íntimo. Na igreja visível, o governo se dá por homens que somente podem interferir, de forma muito parcial – vida moral e doutrinária – no fórum externo[10].

A Igreja invisível pode até ser comparada com o reino. Cristo é o seu cabeça e reina individualmente e totalmente sobre a vida dos fiéis, todos os que fazem parte dela fazem parte do reino, entretanto, o reino existia antes da igreja e mesmo antes de Israel. Então, mesmo a igreja invisível, que é o corpo místico de Cristo não esgota todas as realidades do reino de Deus. Ela, como a visível,  podem até ser consideradas como agência  usada pelo reino para se expandir. Pode-se dizer que a igreja  é a mais importante instituição visível do reino, mas, não esgota o reino. A família, as associações cristãs, as escolas cristãs, o projetos cristãos, o estado, embora constituam instituições da primeira ordem, poderão se tornar em  importantes instituições do reino de Deus, desde que estejam debaixo do governo de Cristo.

Enquanto que na providência há um governo preservador e direcionador para a recriação, no reino há um governo recriador, salvador, libertador, desalienador. Ele governa soberanamente sobre todo o universo como o verbo de Deus, ao mesmo tempo em que governa sobre o seu povo e sobre todos os inimigos do seu reino.  Pode-se começar a concluir o assunto dizendo que o reino de Deus é o governo entregue ao seu unigênito, Jesus, governo esse que se manifesta sobre toda a criação, de uma forma geral, direcionada à recriação e de outra, recriadora, através principalmente da igreja, e  contra os inimigos de Deus, sejam pessoais, filosóficos ou ideológicos, poderosamente numa postura destruidora.

A natureza do reino é antagônica a todo tipo de manifestação do mal seja na vida individual ou sistêmica da humanidade. Qualquer tipo de opressão do homem sobre o seu semelhante, seja individual, cultural, sistêmica, espiritual, etc., é assunto de inimizade contra o reino de Cristo. O reino de Cristo se baseia no poder recebido do Pai para libertar os oprimidos do diabo e de toda manifestação do mal e destruir todo poder espiritual ou humano que se levanta contra a sua vontade. O reino de Deus é opositor ao império das trevas. Assim como esse traz o homem preso em todo tipo de superstição, engano e opressão, o reino de Cristo liberta para a verdadeira vida. Os dois reinos subsistem como antagônicos nos mesmos tempos e espaços dos homens. Alguns equivocadamente, advoguem que as esferas criadoras e redentoras da providência divina não devem se misturar, pregando uma separação bem definida entre o que é sagrado e o que é secular.[11]

A igreja é a principal agência e sinal do reino. Há outras agências como o estado e a família, da primeira ordem, que podem ser usadas pelo reino, desde que estejam sob a influência do Senhor. Entretanto, somente há uma agência escatológica que é a igreja. Através do estado e da família, que são as principais agências sociais da providência de Deus, a sociedade é preservada do caos. Entretanto, ambas perderam a luz e o sal. Perderam a percepção espiritual e no que concerne à vontade de Deus. Não são capazes de orientar a sociedade. [...]