O suicídio na História

Luiz Eduardo Farias1

 

Introdução

 

A trajetória do suicídio enquanto fato histórico repete a tônica da parte tradicional da historiografia. Só temos contato com o tema quando um personagem de destaque é o seu autor. E de fato, exemplos é que não faltam. Sócrates, Cleópatra, Van Gogh, Nietzsche, Hitler e Getúlio Vargas são só alguns dos suicídios que despertaram a atenção dos historiadores. Mas quando pensamos de forma abstrata, filosófica ou até mesmo como fenômeno social já não existem tantas obras se comparado aos esforços que a Psicologia e a Psiquiatria fazem para entender o tema.

A lacuna de pesquisas sobre o suicídio no nosso passado reflete um pouco do tabu pelo qual tratamos o tema nos nossos dias, mas também é preciso ressaltar a dificuldade que um historiador encontra para buscar fontes sobre o tema.

Em grande parte da História, os suicidas não tinham direito a um enterro tradicional, que era feito nos terrenos das Igrejas.2 Os registros acabam ficando restritos ao Judiciário, já que o ato era considerado um crime e o processo visava, entre outras coisas, o confisco dos bens do falecido.

Por sua vez, boa parte dos inquéritos sofriam adaptações conforme a riqueza e importância da pessoa. Famílias aristocráticas podiam conseguir um laudo pericial atestando a loucura do parente morto, o que se tornava um atenuante e diminuía a chance de perder a herança, além de afastar o impacto social que o estigma do suicídio levava ao sobrenome. Já os mais humildes, restava a vergonha de ver seu parente falecido declarado culpado e ter seu corpo sofrendo uma “segunda morte”, seja sendo arrastado pelas ruas, enforcado, queimado ou mutilado.

Desta forma, é preciso juntar essas informações com a muito mais vasta produção literária sobre o tema. São os tratados acadêmicos, a literatura e posteriormente a Imprensa que ajudarão o pesquisador a montar um quebra-cabeça e entender melhor como as diferentes épocas abordaram esse tema tão silenciado.

 

 

 

 

A morte voluntária e involuntária

 

Para entender como as pessoas e instituições encaravam esse ato é preciso distinguir as motivações por trás de cada suicídio. É importante entender essa diferenciação porque veremos que o olhar direcionado a eles mudava radicalmente.

Os antigos estabeleceram o termo “morte voluntária” para o que conhecemos como suicídio hoje em dia.3 Em quase todas as sociedades ocidentais, sobretudo com o advento do monoteísmo, essa era uma prática totalmente reprovável. Essas mortes eram interpretadas como um sinal de ação diabólica ou de loucura, além de um crime/pecado contra a natureza, Deus e a sociedade.

De outro lado encontramos a nomenclatura “morte involuntária” em casos que não há uma ação direta contra a própria vida, mas que existe a intenção de encontrar a morte. Parece estranho, mas se pensarmos, por exemplo, em um soldado que se coloca na linha de frente na linha de combate para defender o seu pelotão temos um belo exemplo deste tipo de suicídio. Ele é revestido de um tom heroico, um ato digno e de grande altruísmo. Trata-se de uma morte em nome de uma causa, seja ela cívica ou religiosa.

Juridicamente ambas as mortes são igualmente condenadas. Entretanto, a visão social as colocam em patamares bem separados. É possível colocar isso à prova quando analisamos os exemplos bíblicos, como o de Sansão e de Jesus.

 

Não matarás?

 

Embora os argumentos religiosos foram e continuam sendo a base da reprovação ao suicídio, causava embaraço o fato de que a bíblia em nenhum momento reprimisse explicitamente esse ato. A saída sempre foi citar o 5º mandamento e seu imperativo “não matarás!”. No entanto, as próprias escrituras dão inúmeros exemplos de matanças que não só eram permitidas como também ordenadas por Deus. Temos aí uma brecha pra dizermos que o “não matarás” deve ser seguido da pergunta “quem?”.

Desta maneira, se não podemos dizer ao certo em que situações o assassinato do outro é permitido ou condenado pela bíblia, como podemos afirma que o mandamento inclui o “si mesmo”? Tirar a vida do outro faz sentido, pois ela não te pertence, mas e a sua? Não te pertence?

Segundo os teólogos antigos, o dono da vida é Deus e ponto final. Portanto matar a si mesmo é eliminar uma propriedade do outro. Não por acaso, um dos exemplos citados é a de um homem que mata o escravo do vizinho e é processado por um crime contra o seu dono. O suicídio é, desta forma, um crime contra Deus.

Parece, porém, que a linha de raciocínio admite exceções. Sansão, por exemplo, já prisioneiro dos filisteus, foi levado para um templo lotado por três mil pessoas4 e provocou o desmoronamento da construção ao destruir propositalmente suas colunas. Sua obra é exaltado por séculos entre os religiosos, mas não deixa de ser um ato suicida. Mais uma vez é a motivação que vale mais do que o mandamento em si.

E o que falar do exemplo de Jesus? Os teólogos tentaram por muito tempo contornar o sacrifício na cruz e levá-lo ao mesmo patamar de “morte involuntária”. É verdade que Jesus já sabia o tempo todo que seria morto, mas isso era parte de um plano. O “deixar-se morrer” era assim justificado. Mas não deixou de ser desconfortante o fato de que o evento fundador do Cristianismo ter sido um ato que alguns podem interpretar como um suicídio.

 

Antes da influência cristã

 

Se considerarmos o universo greco-romano encontraremos uma diferenciação peculiar. No período de auge da Grécia, sobretudo ateniense, a filosofia era a grande provocadora do tema. Pitagóricos, epicuristas e estoicos discutiam o suicídio e chegavam a conclusões diferentes. Os últimos chegavam a dizer que a vida só merece ser conservada se for um bem, gerando mais satisfação do que sofrimento. Caso contrário seria loucura mantê-la.

Os dois filósofos mais famosos, para variar, divergem sobre a “morte de si mesmo”. Enquanto Platão é mais flexível e tem falas indefinidas, Aristóteles condena veementemente o suicídio como uma injustiça a si e principalmente contra a pólis.5

A despeito de todo o debate intelectual, as cidades gregas mais famosas, como Atenas, Esparta e Tebas puniam o suicídio, o que nos revela que a tentativa de reprimi-lo não foi inaugurado pelo Cristianismo, embora a motivação para tal fosse cívica, no caso dos gregos, e não religioso como predominou na Idade Média.

Já os romanos sempre foram mais pragmáticos. Havia uma simplificação maior e os relatos deixados dizem respeito muito mais a casos reais do que teóricos. Até a primeira metade do Império6 grande parte das fontes parece mostrar uma certa permissividade diante do suicídio.

Esta é uma época marcada pelo aumento do chamado “suicídio político”, como podemos ver nos exemplos de Brutus, Antonio, Cleópatra, Sêneca e Nero. Em comum, quase sempre estava a lógica de não se entregar aos inimigos.

No entanto, a percepção é que a atitude pública diante da morte voluntária passou por um processo de maior condenação durante a crise do Império. Desta forma, podemos afirmar que a Igreja medieval apenas reforçou uma prática que havia herdado dos romanos, acrescentando o devido argumento religioso.

 

 

O suicídio no período medieval

 

Fazendo um esforço de resumir o pensamento medieval em um paradoxo, diríamos que “a vida é detestável, mas é preciso suportá-la; a morte é desejável, mas não podemos buscá-la.” Tal lógica era muito conveniente para a nobreza como forma de manter os servos em posição de passividade diante da exploração que sofriam dos seus senhores.

Embora tenhamos inúmeros exemplos de santos que exaltaram suicídios em nome da fé, é Sto Agostinho que formaliza os fundamentos teológicos de condenação ao ato. Na obra A cidade de Deus, ele expõe os 3 critérios clássicos que justificam o posicionamento da Igreja: 1) Trata-se de um atentado contra a natureza; 2) É um crime contra a sociedade; 3) Uma afronta a Deus.

Dentro do espectro do paradoxo citado, Santo Agostinho afirma que “ninguém tem o direito de se entregar à morte de maneira espontânea com o pretexto de escapar dos tormentos passageiros, sob pena de mergulhar nos tormentos eternos.”

Nesse sentido, além de sinal de insensatez, o suicídio é visto como um ato de covardia. Este foi inclusive um elemento-chave que nos ajuda a separar as diferentes abordagens sobre o tema. Determinar se tirar a própria vida é uma atitude de coragem ou covardia está na base de argumentações em diferentes momentos e lugares. Aqui na Idade Média, vence a posição agostiniana.

 

A influência renascentista

 

O Renascimento obviamente não foi capaz de destruir séculos de argumentação da Igreja. Entre os séculos XVI e XVIII, na Europa, período que os historiadores chamam de Antigo Regime, ainda predominava a condenação religiosa e jurídica do suicídio. No entanto, na medida em que o tempo foi passando o assunto foi cada vez mais ganhando uma conotação secular, com a religião perdendo o monopólio das narrativas.

A morte voluntária foi ganhando o status de assassinato, mas por outros motivos que aqueles apontados pelos religiosos. Ou seja, o suicídio não pode ser condenável por si mesmo. É preciso analisar caso a caso. Não existem as mortes por legítima defesa? Ela não dá ao réu a remissão das penas da lei? Por que não usar essa lógica nos casos de atentado à própria vida?

Outra inovação trazida pelo pensamento renascentista foi o retorno do conceito de “melancolia”, que os romanos chamavam de taedium vitae. Algumas pessoas começaram a defender que o suicídio, em vez de ser um pecado, era uma doença, uma espécie de consequência da melancolia.7

No mais, a associação da morte voluntária com a loucura continuava forte. Porém temos o início de uma oposição a essa ideia, sendo Erasmo o maior expoente dessa corrente do “loucura é estar vivo”. Segundo ele, o verdadeiro louco é aquele que ignora a realidade cruel do mundo. E é essa alienação que nos afasta do suicídio.

 

Ser ou não ser?

 

É inegável a influência que Shakespeare teve para a dramaturgia mundial. Até hoje em dia é inspiração para incontáveis obras artísticas. Mas poucos sabem a importância que sua obra teve para o debate em torno da morte voluntária.

Na vasta lista de histórias shakespearianas você contará exatos 52 suicídios. Isso sem contar as inúmeras vezes em que o tema vinha à tona como pano de fundo para reflexões profundas.

A pergunta de Hamlet passou a ser um símbolo para os debates filosóficos que viriam a seguir. Na passagem do século XVI para o XVII, os palcos ingleses assistiam ao famoso monólogo em absoluto silêncio e depois passavam horas discutindo o tema nas rodas de conversa.

Nunca, nem antes ou depois, se falou tanto sobre o suicídio como na Idade Moderna. A multiplicação do tema nas produções teatrais e literárias era um indício da popularidade que o debate tomou na sociedade europeia, sobretudo a inglesa.

Na tentativa de racionalizar o pensamento, um dos frutos do Renascimento, a morte voluntária passou a ser objeto de reflexão e foi aos poucos ensaiando uma narrativa distante da Igreja. Foi nesse contexto que a pergunta de Hamlet virou um grito.

O que Hamlet quis fazer com essa pergunta? Se questionar, eu diria. E é exatamente essa atitude que o fez se distanciar do suicídio. O “ser ou não ser” pode ser traduzido como um “viver ou morrer”. Depois de enumerar vários motivos para desistir da vida, ele mesmo argumenta que a morte é um desconhecido. Esta reflexão por si só “torna todos nós covardes”, ele conclui.

 

A “doença inglesa”

 

O século XVII foi uma época de intensos debates. Por um lado, a Igreja e o Estado tentando manter o monopólio da vida das pessoas. Do outro, cada vez mais argumentos de que o suicídio deveria ser visto sob uma ótica mais secular e individualizada.

Nenhum outro lugar assistiu ao aumento das novas interpretações como a Inglaterra. De tanto se falar e produzir sobre o tema, o suicídio passou a ser conhecido em alguns lugares como doença inglesa. Os boatos parecem não passar de mera tentativa de depreciação, pois o que se tem de fato é que os ingleses acabaram produzindo mais dados estatísticos e publicações que seus vizinhos europeus. O desenvolvimento da Imprensa impulsionou esse movimento, já que até mesmo relatos de casos populares e cartas suicidas eram publicadas nos jornais. O suicídio vendia.

O discurso religioso continuava forte, é verdade. Mas agora era preciso conviver com tratados relacionando a morte voluntária a fatores biológicos8 e psicológicos, inclusive com a consolidação da ideia de que o suicida quer acabar com a dor e não com a vida. O diabo e suas tentações malignas perdem cada vez mais espaço com o humanismo trazido pelo Renascimento.

É bem verdade que na França também havia expoentes desta nova fase. O maior deles neste século talvez tenha sido René Descartes. O considerado fundador da filosofia moderna, seguindo Hamlet, defendia o uso da razão ao se debruçar sobre o tema. Segundo ele, embora com mazelas, a vida tem coisas boas. Valeria a pena trocar isso pelo desconhecido? O suicídio seria, portanto, fruto de um erro de julgamento ilógico.

 

O século das luzes ilumina o debate

 

Se a Idade Moderna pode ser alçada como a Era em que o suicídio mais foi abordado, o século XVIII, dentro dela, é onde encontramos a maior liberdade para discuti-la. O discurso migrou do campo da moral e passeou pelo campo da medicina. Literalmente haviam debates públicos, que eram intensamente concorridos.

Embora individualmente os principais filósofos iluministas pendessem para a condenação da morte de si mesmo, os ideais que eles trouxeram afrouxaram as mentes e encontraram uma menor resistência, sobretudo estatal. Era cada vez mais raro condenações devido ao suicídio.

Na tentativa de dar tons médicos ao tema, muito se produziu na academia, porém eram estudos insuficientes. Alguns deles ressaltavam o fator climático como causa do suicídio.9Outros afirmavam que ele era fruto de excessos de paixões, atividades físicas, de estudo10, de devoção e até meditação.

Por ser tratado como um transtorno psicofisiológico, passa-se a receitar coisas inusitadas como banhos de chuveiro, viagens e música. O que convenhamos é uma boa estratégia até hoje em dia. Entretanto, o mais importante nessa época é que havia uma tentativa crescente de descriminalizar o suicídio, mesmo que ele ainda fosse muito associado a loucura, por exemplo.

 

Uma questão de classe

 

Independente da época e do lugar que olhamos, podemos encontrar uma coisa em comum nas práticas de combate ao suicídio: a diferenciação de classes.11 Além da motivação, a tal divisão entre morte voluntária e involuntária, a morte nesses casos tinha interpretações distintas de acordo com a posição social do falecido. E isso vale para a Igreja e o Estado.

As elites, nas variadas épocas, sempre tentavam contornar o suicídio de um familiar e escamotear seu registro como tal. Era uma tentativa tanto de evitar a vergonha e o descrédito de não ter um enterro digno na tradição da Igreja, mas também com viés econômico de preservar os bens do morto.

No século das luzes floresceu inclusive nomenclaturas exclusivas dessas elites. Por um lado, haviam os “suicídios filosóficos”, uma morte consciente e racional. Uma recusa à vida já que, segundo o julgamento individual, ela traz mais sofrimento do que alegrias. Dentre eles há inclusive defensores deste “direito”, como David Hume. Em seu “Ensaios sobre o suicídio e a imortalidade da alma, o filósofo britânico combate um a um os fundamentos teológicos contrários ao suicídio. Ele não é 1) uma afronta a Deus; 2) prejudicial à sociedade; 3) uma afronta a si mesmo.

É interessante notar que nenhum desses grandes filósofos que se debruçaram sobre o tema acabaram se suicidando, mesmo aqueles que tinham argumentos favoráveis à prática. Talvez seja a confirmação de que “é essa reflexão que dá à desventura uma vida tão longa”, como afirmou Shakespeare através do personagem Hamlet.

Outra nomenclatura exclusiva das elites é o “suicídio romântico”. Mais popular entre os jovens, se tratava de uma morte passional, inspirada por um desespero amoroso, pela solidão, o vazio e o desencanto. Dentre os expoentes desta corrente podemos citar Goethe. O escritor alemão criou um personagem que romantizava a prática e levou sua obra tanto a um sucesso relâmpago quanto à repressão ao que se chamou de “werthermania”, com a proibição do livro em algumas regiões.12

De outro lado, a grande maioria do povo, sobretudo os camponeses, era condenada sem ressalvas. A principal causa das mortes obviamente também mudava. Neste grupo, predominava o suicídio pela miséria, a decadência física e o alcoolismo. É nessa época que aparecem as primeiras associações de ajuda aos sobreviventes13. Mais uma prova da mudança de atitude da época, ao retirar a pessoa que tenta se matar da alcunha de acusado para o papel de vítima.

 

O início do silêncio

 

A História definitivamente não caminha em linha reta. Depois do avanço trazido pela influência iluminista era de se supor que a passagem para a Idade Contemporânea fosse trazer ainda mais racionalidade ao debate sobre o suicídio. No entanto, o que ocorreu foi um retrocesso. Aliás, mais do que isso, um silenciamento.

A mudança começou a ser sentida no decorrer da Revolução Francesa, em fins do século XVIII. A repressão ao suicídio voltou com força na Europa. E nas décadas seguintes ganhou o reforço do nacionalismo, que levou ao Estado a reivindicar novamente o monopólio da vida das pessoas. Com o intuito de combater a prática, os governos começam a abafar os casos e a Imprensa, sendo obrigada ou não, seguiu essa linha.

O silêncio também ganhou o reforço das famílias dos suicidas. Embora o pensamento de que o ato de tirar a própria vida tem múltiplas raízes seja um avanço, existe uma espécie de complô entre Igreja, Estado, Imprensa e famílias para encobrir o tema em nome da coesão social e tomados pelo sentimento de culpa.

Apesar de a área médica reivindicar o tema e começar a reforçar o status de “estado doentio”, a tendência suicida ainda é chamada de “doença vergonhosa” em estudos acadêmicos. Alguns nomes famosos, como Philippe Pinel, defendiam que a “loucura suicida tem causas morais”. O considerado pai da Psiquiatria defendia que a repressão e o medo eram as melhores formas de curar essas tendências. Postura essa que vai ao encontro dos críticos que diziam que a culpa era do avanço das ideias de liberdade e democracia, duas audácias que deviam ser combatidas em nome de uma sociedade coesa.

 

Considerações finais

 

O discurso pós-Durkhein14 não é objeto de análise neste momento. O século XX merece um artigo à parte. Por isso vamos parar no século XIX. É fato que nos últimos 150 anos se estabeleceu um contraste enorme entre uma produção acadêmica gigante15 e um silêncio que se solidificou em tabu e hoje sumiu dos debates, salvo ora ou outra que ressurge quando algum ídolo pop comete suicídio ou chegamos em setembro e vemos posts em redes sociais reproduzindo frases prontas de autoajuda.

Também podemos dizer que nessas últimas décadas pouco se acrescentou às linhas de raciocínio trazidas pelos filósofos antigos, teólogos medievais e escritores modernos. Talvez a abordagem freudiana seja uma exceção. O pai da Psicanálise defendia que o suicídio é uma inversão da agressividade contra o ego, quando o indivíduo não consegue liberar essa pulsão e isso se volta contra ele.

Um dos motivos que me levaram a mergulhar no tema foi a percepção de que a sociedade pós-moderna está cada vez mais deprimida e por isso deixando o terreno mais fértil para o avanço dos números de suicídio. Para minha surpresa, as estatísticas, embora escassas, mostram que comparando as diferentes época, nada indica que temos hoje dados maiores do que no passado. Proporcionalmente as taxas de suicídio variam conforme o país, faixa etária e eventos marcantes. Isso não mudou. Se temos hoje lugares com 2 mortes por 100 mil habitantes e outros com 30, isso não é diferente das épocas que vimos aqui neste texto. Podemos concluir, portanto, que a vontade de dar fim à própria vida é uma condição humana e tão forte que é capaz de atravessar milênios e sobreviver à intensa repressão que sempre sofreu.

A grande questão que se coloca é se o silêncio/tabu atual é a melhor resposta. Se desde Hamlet nós concluímos que refletir sobre o tema é, ao contrário do que possa parecer, um antídoto para a morte, por que não voltarmos a estimular debates responsáveis e tratar o suicídio como caso de saúde pública?

Não é alarde afirmar que tanto ontem quanto hoje o suicídio é uma epidemia. Esta é a segunda maior causa de morte do mundo, só perdendo para os acidentes. Tomando o ano de 2002 como exemplo, tivemos 741 mil mortos por violência (dentre eles 172 mil em guerras) contra impressionantes 873 mil suicídios.

Quantas vezes você viu na Imprensa e nas conversas debates e especialistas falando sobre crimes violentos? Agora compare com o tema suicídio. A probabilidade de alguém morrer por vontade própria é centenas de vezes maior do que por um ataque terrorista. Porém, do que as pessoas têm mais medo?

Não, diferente do que você aprendeu na infância, a História não tem a pretensão de evitar os erros do passado. Entretanto, olhar pra trás diz muito sobre quem somos e para onde caminhamos. E fugir de assuntos incômodos não vão fazer com que eles desapareçam. Pelo contrário, monstros sempre somem quando acendemos as luzes.

 

 

 

 

 

 

1Historiador, pós-graduado em História Contemporânea.

2Os cemitérios públicos se difundiram apenas no século XIX, como parte de um pensamento laico e higienista.

3O termo suicídio, um “assassinato de si mesmo”, só passa a ser usado na virada do século XVII para o XVIII. Qualquer menção a esse termo é colocado para fins didáticos.

4Jz 16,27

5Simplificando, leia-se pólis como “cidade”.

6Basicamente os primeiros dois séculos da Era cristã.

7Podemos dizer que o termo é um precursor da ideia de depressão.

8Embora um avanço, é preciso dizer que as hipóteses se mostraram sem fundamento, como a que afirmava que o sangue, revestido de humor melancólico negro, era o responsável pelo maior risco de suicídio. As transfusões de sangue eram receitadas como tratamento.

9Segundo essa hipótese, no clima oceânico, a água penetra nas fibras do corpo e leva-o a perder a firmeza e predispõe à loucura suicida.

10“Endurece o cérebro.”

11Usaremos “classe” para simplificar, embora academicamente seja inadequado.

12Livro: “O sofrimento do jovem Werther; Foram 15 edições em um espaço de 10 anos; Referência ao nome do personagem, Werther.

13Hoje em dia o termo “sobreviventes” se refere aos familiares e amigos de quem cometeu suicídio. Mas neste caso citado estamos falando dos que tentaram se matar.

14Émile Durkhein, em 1897, publicou um tratado sociológico sobre o tema, que até hoje é uma referência acadêmica. - “O suicídio”.

15Estima-se que existem mais de 5 mil artigos escritos sobre o tema neste período.