João, Maria e uma criança moravam naquele prédio, esquina entre a Avenida Ipiranga e a Rio Branco. Se fosse na esquina da Avenida São João com a Ipiranga ele iria se sentir inspirado e cantar Sampa, principalmente o verso “Alguma coisa acontece com o meu coração...”. Mas o prédio onde a família de João morava não inspirava a lembrança de versos nem de poetas. Lá ninguém vê o por do sol, que já se escondeu envergonhado com tanto concreto e tanta miséria. Lá as pessoas passavam ao longe, com medo. Medo de que? São todos pobres e infelizes que encontraram um abrigo precário, com salas sendo transformadas em quartos e cozinhas, com poucos banheiros compartilhados por dezenas de pessoas.

Era um prédio invadido, mas alguém espertamente se colocou como uma espécie de síndico improvisado que cobrava até quatrocentos reais por família, como se fosse um aluguel. Com tanto dinheiro arrecadado daria até para consertar o elevador e fazer sua manutenção para que João, sua mulher e a criança não precisassem de subir 26 andares todos os dias. Mas não, ele só fazia pequenos reparos na eletricidade.
Mas João era um bom pagador e todos os meses após receber seu ordenado, deixava reservado o dinheiro que deveria servir para a manutenção do prédio. Para ele, um garçom num restaurante próximo, achava conveniente morar perto do emprego onde podia ir e voltar a pé. Chegava em casa tarde da noite e precisava acordar o porteiro que se encarregava de fechar o prédio depois das dezenove horas para evitar que desocupados, viciados ou mal intencionados entrassem.

Mas na madrugada do dia primeiro de maio, dia nacional do trabalho e do trabalhador, começou a ouvir um barulho estranho. Gente gritando e falando alto e um calor que não era normal para a época, já que o verão já havia partido para outras searas. João abriu a janela e percebeu que o prédio estava em chamas. Não havia tempo para mais nada. Era se vestir e correr para salvar a pele. No caminho já encontrou focos do incêndio e a escada já estava cheia e quente. Foi com muito custo que chegou ao térreo e pode respirar aliviado com a família sã e salva.

João, Maria e a criança já estavam na estatística de pessoas sem teto e sem esperanças. Ofereceram o abrigo da prefeitura, mas lá teriam de conviver com moradores de rua e viciados em crack. Recusaram. Agora deveriam esperar alguma outra oferta do governo como um auxílio aluguel até que conseguissem resolver a situação.
O prédio era do governo federal e estava desativado há dez anos. É difícil entender como um prédio público é abandonado dessa forma, ficando a mercê de invasões. Por que não foi reformado e destinado a alguma outra atividade pública, estadual ou municipal? Ninguém responde por que nesse país não há controle sobre o patrimônio público. Está tudo ao Deus dará. Salve-se quem puder. 

E o prédio desabou como se fosse uma implosão. Até lembrou o World Trade Center atingido por um avião e desabando em chamas. Uma centenária igreja ao lado do prédio foi quase destruída. Sobrou ainda uma bonita torre estilo gótico, mas o telhado, vitrais e outras relíquias não existem mais. Uma pena lamenta o pastor luterano, responsável pela igreja que há tempos reclamava com autoridades sobre a situação do prédio.
Existem mais de cem prédios ocupados no centro velho de São Paulo. São construções antigas e com manutenção precária. Alguns eram hotéis falidos, outros prédios comerciais que perderam a função com o deslocamento da cidade para outras áreas menos deterioradas. Alguns são prédios residenciais, cujos proprietários desistiram de morar neles e foram gradativamente abandonando-os. Um prédio de apartamentos precisa que todos contribuam para mantê-lo em condições habitáveis. Esses prédios não pagam impostos e ficam a disposição de invasores que não tem onde morar e alguns oportunistas que encontram aí uma chance de ganhar dinheiro, cobrando “aluguel” dos pobres ocupantes.
João não pode ir trabalhar porque não pode deixar a família abandonada na rua. Seu patrão não vai esperar muito tempo para substituí-lo caso ele não resolva sua situação. A angústia toma conta de João que abraça a mulher e o filho. Tem vontade de chorar, mas homem não chora, porque se chorar Maria vai perceber que estão perdidos. É preciso respirar fundo e acreditar que tudo vai se resolver. Vamos ter fé em Deus, ele não vai nos faltar, diz baixinho e chora para dentro fazendo as lágrimas voltarem de onde saíram.