A GÊNESE DA CIÊNCIA MODERNA E A SUPREMACIA DA VERDADE CONCEITUAL

PRÓLOGO

            O conhecimento científico é uma conquista recente da humanidade, surgido há cerca de  quatrocentos anos. No pensamento grego, ciência e filosofia achavam-se ainda diretamente vinculadas e só vieram a se separar a partir da Idade Moderna, no século XVII, com a revolução científica produzida por Galileu.

            A ciência moderna nasce ao determinar seu objeto específico de conhecimento e ao criar um método, ou seja, um procedimento confiável com o qual estabelece o controle e a aquisição desse conhecimento. O método é próprio da ciência, que dele se apropriou. São métodos formais que possibilitam esboçar um conhecimento sistemático, preciso e objetivo que permita a descoberta de relações universais entre os fenômenos, a previsão de acontecimentos semelhantes e também a ação sobre a natureza de maneira segura.

            A partir da modernidade as ciências se multiplicaram, seguindo cada uma delas seu próprio caminho, ou seja, seu método. Cada ciência torna-se então uma ciência particular, com métodos próprios, pois delimita um objeto específico. Cada uma busca distintas realidades: a física trata do movimento dos corpos, suas causas para conhecer as consequências; a química, da transformação dos corpos por meio das substâncias que os compõem; a biologia, dos seres vivos etc.

O século XVII foi terreno profícuo para uma profunda revolução filosófica na qual a ciência moderna foi a força motriz. Tal revolução se fez sob vários e diferentes aspectos, sendo o mais contundente o afastamento dos ideais transcendentes e do senso comum e uma aproximação para coisas mais imanentes e práticas de modo que as questões como outros mundos, a alma, outras vidas, passaram a ser descartadas, voltando-se o homem para um processo de valorização do seu mundo, sua vida. A vida contemplativa da sociedade medieval foi preterida em prol de uma vida ativa e subjetiva, na qual o sujeito passa a fazer parte dos acontecimentos em que neste, o homem acredita ser sua presença uma peça fundamental da força motriz que agora funciona. Um mundo, aquele sobre o qual apoiava seu pensamento, vai ficando para trás, sem condições de acompanhar um novo, na qual se vê obrigado, ora a abandonar ora a transformar não somente seus conceitos e definições fundamentais, mas também suas referências de pensamento.

            Podemos dizer que essa revolução científica e filosófica, assim necessariamente unidas, deu causa ao desaparecimento de conceitos basilares, de uma concepção de mundo baseado no finito, no ordenamento das coisas, na perfeição e harmonia, na imutabilidade, na hierarquização dos seres, na qual o céu é um plano superior e a Terra o fundo em que pisamos. Tudo foi substituído por uma forma de pensar sem as antigas concepções de valor que agora são trocadas pelo mundo dos fatos. E fatos mostravam um universo infinito, porém coeso e regido por leis fundamentais e gerais, lá em cima ou aqui embaixo. Por outras épocas o homem estabeleceu uma forma de contemplar em que o pensamento místico era uma peça fundamental de uma roda motriz chamada conhecimento: a recuperação, como na idade média, da experiência mística de Deus e seus símbolos na busca pelo homem da compreensão de si mesmo, por meio da experiência imediata desprovida de lógica, que se mostrou apropriada para se conhecer a verdade da religião, mas pouco para a verdade científica. Leis, conceitos e definições que foram forjadas pelas mão de grandes pensadores, como veremos a seguir, tornaram mais claras uma nova estrutura do mundo.

Os primeiros ventos a trazerem o pensamento moderno começaram a fluir por obra de alguns pensadores ditos “da modernidade” ao longo do século XVII ao XIX. Dentre eles pioneiramente temos Francis Bacon propagando seu lema “saber é poder”, na qual tecia críticas ao modo metafísico das físicas grega e da escolástica tomista medieval. Indo além, enfatiza o papel histórico da ciência e do saber instrumentalizado, com o qual o homem pode um dia dominar a natureza. Cabe ressaltar que, Roger Bacon, no século XIII, é considerado o responsável por lançar as sementes da ciência moderna, quando postulava que a razão e o empirismo pudessem ser as bases da busca pelo conhecimento. Seguindo esses passos, Francis Bacon rejeita as concepções tradicionais dos pensadores que segundo seu julgamento “estão sempre prontos para tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua sabedoria é farta em palavras, mas estéril de obras”. Vemos aqui uma face empirista do filósofo inglês e sua crença nos benefícios que podem ser proporcionado por uma mudança de paradigma que se materializa a partir de seu tempo, com grande influência das descobertas de Copérnico e Galileu, também empiristas. Começa assim com Bacon a demolição da filosofia de Aristóteles e da escolástica de São Tomás.

            O estabelecimento de um novo método científico foi marcante nas ideias de René Descartes, que, semelhante a Bacon, procurando respostas aos seus questionamentos, por ele chamadas de dificuldades particulares, sentiu a necessidade de transgredir pensamento atual, ao afirmar:

...começando a comprová-las em várias dificuldades particulares, percebi até onde podiam conduzir e quanto diferem dos princípios que haviam sido utilizados até o presente, considerei que não podia mantê-las escondidas sem transgredir a lei que nos obriga a procurar, no que depende de nós, o bem geral de todos os homens. Pois elas me mostraram que é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida, e que, em lugar dessa filosofia especulativa que se ensina nas escolas, é possível encontrar-se uma outra prática mediante a qual [...] poderíamos utilizá-los da mesma forma  em todos os usos para os quais são próprios, e assim nos tornar como senhores e possuidores da  natureza.

            Começa assim nesta era o ideal de valorização dos sentidos como a observação, da hipótese como técnica e do trabalho humano na ciência. Embora houvesse linhas de acordo e desacordo entre os pensadores pioneiros, como Bacon e Descartes, ambos enfatizam que a ciência e a técnica são instrumentos capazes de “dominar a natureza”, Descartes e seu racionalismo, discordava argumentando que os sentidos devem ser questionados e não representam o caminho para o conhecimento verdadeiro.    Na Idade Média o saber contemplativo, teórico, restrito ao puro pensar, era privilegiado em detrimento da prática, sem finalidade imediata. No Renascimento e Idade Moderna deu-se a valorização da técnica, da experimentação, do conhecimento descoberto por meio da prática. O homem pensante abandonava a tutela da fé e da emoção metafísica e passava a conhecer o mundo e a si próprio com um olhar mais direto, buscando conhecimento na fonte, onde ele se encontra, ou seja, na própria natureza. Nesse sentido, de conhecer a si mesmo, podemos citar o fato de que a Igreja proibia a dissecação de cadáveres, afirmando que não se devia vilipendiar aquilo que Deus escondia ao nosso olhar. Mas no século XVI o médico Belga Andreas Vesalius causou uma revolução ao desafiar essa tradição quando passou a usar a técnica de dissecação para aprofundar estudos sobre a anatomia humana, já que desde o século II a obra do médico Claudio Galeno se restringia a dissecação de animais. Estes fatos mostram que o homem está operando uma transformação intelectual na qual muda o enfoque nas relações entre o pensar e o fazer que se refletem até os dias de hoje, como nos respaldam as palavras de Weber, já no século XX, acerca dos pressupostos da Ciência:

Todo o trabalho científico tem sempre como pressuposto a validade das regras da lógica e da metodologia, que são os fundamentos gerais da nossa orientação no mundo [...]. O tipo de relação do trabalho científico com estes pressupostos é, além disso, muito diferente, em consonância com a sua respectiva estrutura. As ciências naturais, como a física, a química ou a astronomia, pressupõem como algo evidente que as leis do acontecer cósmico – tanto quanto a ciência as consegue construir – são dignas de ser conhecidas.

Esses pressupostos mostram que o homem estava entrando em um novo caminho, um caminho necessário ao autoconhecimento, e não apenas aquele ditado de cima para baixo, por desejos divinos ou místicos. É o caminho da modernidade. Este período semeado na idade média, projeta-se no Renascimento e atinge seu cume na Ilustração, no século XVIII. O paradigma da racionalidade que estão se costura é voltado para uma razão que, livre de superstições, e crenças, fundamenta-se na própria subjetividade e não mais na autoridade, seja da religião, seja do poder político. Na verdade, estava sendo gestado uma nova era na história ocidental, com mudanças em vários aspectos não apenas humanos, como sociais, filosóficas morais e políticas, mas também nas artes, religião e ciência. A oposição ao pensamento medieval veio a estimular um retorno à cultura greco-latina, agora sem a tutela da religião, o que por um lado mostrava a laicização do pensamento: agora prevalece uma visão antropocêntrica em detrimento da reflexão teológica. O século XVII representa, portanto, o auge de um processo que alterou profundamente a imagem do próprio ser humano, do mundo em que vive, impondo à ciência do homem do ocidente, o método como instrumento basilar para uma nova maneira de buscar conhecimento. Hoje, esta questão, em Popper, para o qual o conhecimento resultará das proposições que refutam as nossas hipóteses, a importância do método reside no fato de que a experiência ensina-nos com os erros. A função do método, portanto, seria afastar o erro, e permitir a busca de novas teorias que estarão mais próximas da verdade, garantindo então, o rigor necessário para abordar o objeto estudado.

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O SABER CIENTÍFICO

 

            Houve um tempo em que o homem pautava sua relação com o mundo e o conhecimento decorrente por meio de percepções imediatas, simples, que lhe davam o saber necessário para as suas necessidades básicas e para o convívio com seus semelhantes. Era um tempo em que mesmo os fenômenos naturais e fatos comuns não eram vistos pelo homem como oportunidades para a observação e indagação. O senso comum o ajudava a se situar no cotidiano para compreendê-lo e nele se inserir. E o que é o senso comum? Podemos dizer que é um conjunto de crenças, transmitidas por meio da tradição popular, de modo espontâneo e não crítico, mas que nos ajudam a desempenhar nossas tarefas e resolver problemas do dia a dia, por meio de procedimentos evidentes aos nossos olhos, portanto subjetivo. É notório que o senso comum tradicional se estende à ciência. Pelo senso comum sabemos os efeitos do uso de certa erva medicinal, mas somente com o conhecimento científico identificamos suas propriedades, sua composição e como se dá sua ação no organismo. Mas se a erva não gerou efeitos em outra pessoa, o senso comum não sabe identificar os motivos, mas com o conhecimento científico se obtêm elementos para corrigir condutas e adaptá-las a novas situações.

É bem verdade que, em diversas situações, a ciência precisou se posicionar contra o que era considerado evidente por essas crenças, por exemplo, quando se achava natural que o Sol girasse em torno da Terra, esta imóvel no espaço. Mas também não se pode desprezar esse conhecimento tão antigo e universal nem ignorar a grande quantidade de informações já produzidas ao longo da história humana e cujas aplicações se mostraram úteis. O senso comum nos mostra um conhecimento particular, restrito a apenas uma amostra da realidade, a partir da qual são feitas generalizações muitas vezes precipitadas e imprecisas, gerando dados colhidos de maneiras não muitos rigorosas. Quer dizer, o que vale para uma amostra de objetos observada vale para todos os demais objetos.

            O conhecimento científico, por sua vez, gera conclusões gerais, ou seja, vale para um caso observado e para todos os outros que a ele se assemelham. A afirmação de que “a água é uma substância composta de hidrogênio e oxigênio” é válida para a porção de água analisada ou para outra quantidade de água encontrada em qualquer parte do nosso planeta.

            Ademais, outra diferença entre o conhecimento científico e o comum é que este é espontâneo e fragmentado, pois não estabelece conexões em situações em que isto poderia ser verificado. Como exemplo, por meio do senso comum não se pode estabelecer qualquer relação entre o orvalho da madrugada fria e as gotas que aparecem no vidro de uma garrafa retirada da geladeira. Mas por meio de uma análise criteriosa, Isaac Newton associou a queda de um objeto como tendo causas de mesma natureza daquela que mantém a Lua em movimento em torno da Terra ou desta em torno do Sol, ou ainda a mesma causa que proporciona o fenômeno das marés. Temos que dizer então que o conhecimento científico é objetivo, pois busca um fim a ser conhecido, e é unificador ao generalizar os dados obtidos.

Mas essa nova forma de adquirir conhecimento e conhecer o mundo, começou a se firmar a partir do século XVII. Aí iniciou-se uma era em que a razão e a observação sistemática começam a se moldar também como fonte do saber, e o saber começa a tomar diferentes formas que se apresentam em função dos objetivos, ou seja uma práxis que orienta o pensar voltado para um determinado fim.  O conhecimento se viu então diante de dois tipos de ciências, a saber, as ciências fáticas e as ciências formais.

            Quando o pesquisador busca resposta aos seus questionamentos por meio de ideias lógicas e processos matemáticos, dizemos que ele aplica um princípio formal, por meio de conceitos e axiomas a priori, não questionando aqui ser ou não a matemática uma ciência, mas rotineiramente uma das ferramentas da ciência. Tal procedimento formal se delineia ao longo dos aspectos sociais dos indivíduos e de grupos, em que o “lado humano” está em primeiro plano. Já as ciências fáticas se volta para o estudo dos fatos, dos fenômenos, e, em grande diferença para as ciências formais, se denota então como a ciência do empirismo, sem entretanto, abrir mão do fator humano que a partir da modernidade integra a técnica para conhecer  como a natureza lhe impõe a realidade. Tão vasta é a natureza humana e seus questionamentos, que as ciências fáticas se apresentam em duas vertentes, as ciências naturais e as ciências sociais. A primeira se reserva no estudo dos fenômenos da natureza material, sem espaço para o comportamento humano, valendo-se em todo o processo por meio da observação e da experimentação. Aqui estuda-se a Terra e o mundo – o universo – regulado por leis naturais de vigor puramente físico e estrutural. Agora é plausível admitirmos que uma ciência pode caminhar em apoio à outra, como o fato de ser a ciência formal, como a matemática, uma ferramenta bastante eficaz para as ciências empíricas, como as naturais e as sociais. Não obstante esse fato, as ciências formais e fáticas terminam por ter um arcabouço comum, que vem a ser o uso do método científico, como veremos a seguir, com seus procedimentos e metodologias tendo em vista o objetivo a ser alcançado.

            A revolução científica em questão provocou uma quebra no modo de pensar aristotélico e incutiu o receio de novos enganos. Para evitar o erro, a principal preocupação do pensamento moderno passou a ser a questão do método, que veio a criticar não só a metafísica, mas sobretudo a questão do conhecimento. Na antiguidade os filósofos partiam do problema do ser, porém na Idade Moderna voltavam-se para a questão do conhecer. Enquanto no pensamento antigo e medieval a realidade do objeto focalizado e a capacidade humana de conhecer não eram questionadas, exceto no ceticismo, na Idade Moderna o foco é desviado para a consciência da consciência, na qual o pensamento coincide com o ser, é mérito do ser. Antes se existia alguma coisa, a pergunta era “isto que existe, o que é”. Na modernidade o problema não é saber se as coisas são, mas se elas podem nos incutir conhecimento quando tenta-se conhecê-la. Portanto as inquietudes são outras, tais como: “o que se pode saber”; “qual o critério para, a partir do objeto se chegar ao conhecimento a seu respeito?”. Essas questões epistemológicas enfatizam a filosofia que marcará o desenvolvimento humano a partir de então. Na Idade Moderna portanto, o alvo da atenção é invertido: volta-se para o sujeito que conhece. O homem passa a Buscar soluções naturais para os problemas científicos e sociais, de um mundo que se transforma e não de coisas imutáveis como tratado na antiguidade, deixando de lado as explicações de conotação política ou religiosa. Assim, essas questões pertinentes ao modo de como se agregar conhecimento, gerou duas correntes filosóficas, uma com ênfase na razão e outra nos sentidos: o racionalismo e o empirismo, respectivamente.

            O racionalismo engloba as doutrinas em que a razão é tida como faculdade única a ensejar o conhecimento adequado acerca da realidade, sendo a razão o principal instrumento no processo de aquisição do conhecimento. Segundo essa vertente, a razão ilumina, por assim dizer, o real, o objeto, propiciando à mente o conhecimento acerca do que ali existe.

Para René Descartes, o mentor do racionalismo, a realidade física que se nos apresenta coincide com o pensamento e pode ser traduzida por meio de equações, lógicas e fórmulas matemáticas. Ele pregava o inatismo, segundo o qual as ideias postas pelo homem já estavam em suas mentes guardadas ali por Deus. O objetivo inicial de Descartes foi o de encontrar um método bastante seguro que pudesse conduzir o homem à verdade indubitável. Para tal procura-o no ideal matemático, isto é, em uma ciência que usa uma ferramenta ao alcance de todos, universal portanto, e que por desencadeamento de raciocínios lógicos tomados como corretos leva qualquer um à busca de conhecimento e respostas. Assim o conhecimento fica inteiramente completo e dominado pela inteligência – e não pelos sentidos – e baseado na ordem e na medida, o que lhe permite estabelecer uma sequência de razões na qual, partindo de partes mais simples e menores objetiva-se deduzir uma coisa a partir de outra. O que Descartes preconiza é a dúvida metódica quando, ao duvidar de tudo, dos sentidos, do senso comum, dos argumentos da autoridade, da consciência, da realidade do mundo exterior, da realidade do corpo e até da das verdades deduzidas pelo raciocínio, parte em busca de uma verdade primeira, que não posa ser posta em dúvida. Esta dúvida metódica ainda assim o permite indagar se restaria algo a ser questionado. Mas Descartes não é um filósofo cético: ele busca a verdade. Aí se encontra a essência do racionalismo. Além de Descartes, como pioneiro, destacaram-se também a Idade Moderna destacam-se como racionalistas Descartes, Leibniz, Pascal, Newton e Spinoza.

, do mundo em que vive, impondo à ciência do homem do ocidente, o método como instrumento basilar para uma nova maneira de buscar conhecimento. Hoje, esta questão, em Popper, para o qual o conhecimento resultará das proposições que refutam as nossas hipóteses, a importância do método reside no fato de que a experiência ensina-nos com os erros. A função do método, portanto, seria afastar o erro, e permitir a busca de novas teorias que estarão mais próximas da verdade, garantindo então, o rigor necessário para abordar o objeto estudado.

O empirismo é a tendência filosófica que enaltece o papel da experiência e da observação no processo de busca de conhecimento. Os empiristas, notadamente os britânicos, repeliram a existência de ideias inatas, do conhecimento pré-existente e propagaram que a mente é uma tabula rasa, ou seja, algo como uma página em branco cujo conteúdo virá com a experiência e a vivência de cada um. Nessa linha, David Hume diz:

Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e pela experiência.

Filósofos como John Locke e David Hume não repeliam com tanta veemência o uso da razão, considerando-a necessária por já fazer parte do método ao organizar as informações trazidas pela experiência, mediante argumentos lógicos e verificáveis a promover um mundo real cognoscível. Destacam-se como racionalistas no mundo moderno: Francis Bacon, John Locke, Thomas Hobbes, George Berkeley e David Hume. É justo registrar que lá na Baixa Idade Média já havia um indício de racionalidade e experimentação por parte de Tomás de Aquino. Segundo ele, o conhecimento humano primeiro parte dos sentidos para depois terminar na inteligência, não necessitando de nenhuma outra interferência além daquela da própria razão. Desse modo ele deixou um importante argumento na evolução do pensamento filosófico, acrescentando a conciliação entre a Razão e a Fé, anteriormente tidas como coisas distintas.

            A tendência empirista predominou principalmente na Grâ-Bretanha. Os empiristas desafiavam a tradição escolástica – muitos deles foram formados pela doutrina escolástica – ao se preocuparem com a observação e a experiência no estudo da natureza. Francis Bacon é conhecido como severo crítico da filosofia dedutiva aristotélica e medieval por considerá-la desinteressada e contemplativa em demasia, o que de acordo com o espírito da nova ciência moderna de então teria que ser descartada por não conter um saber que propiciasse o controle da natureza. Bacon é contra as verdades dadas ou preconceitos que circulam na comunidade em que se vive, pois são contra ao que preconiza o novo espírito científico, cujas hipóteses devem ser confirmadas pelos fatos. Esse é o legado baconiano, a valorização da experiência fundamental para o desenvolvimento da ciência gerando progresso e benefícios para a humanidade.

            A corrente empirista continuou a se desenvolver ainda no século XVII, por meio das ideias de John Locke, que se manteve contra a doutrina das ideias inatas de Descartes, afirmando que todo ser é uma tabula rasa, com um pedaço de cera prestes a receber informações ao longo da vida de experiências. Locke dividiu a tomada do conhecimento em duas fontes, a sensitiva e a reflexiva. A reflexão é um ato interno da experiência que se processa, como a alma a percebe. A sensação é o estímulo externo obtido por meio dos sentidos no contato com a natureza das coisas e dos fatos. Assim a razão usando essas fontes reúne as ideias e as processa nos propiciando o saber prático – e não cognitivo – provando que a mente não possui ideias inatas, ou como diziam os antigos, que conhecemos a essência das coisas.   

            Os aspectos empiristas foram levados mais além pelo filósofo escocês David Hume no século XVIII. Agora Hume defende investigação como método, que consiste na observação e generalização. Para ele o conhecimento tem início com as percepções individuais que podem ser impressões ou ideias que atingem a mente, sendo as impressões dadas pelos contato do homem com o mundo (ouvir, ver, sentir...) e a ideia o pensar. Para se ter a ideia é necessário primeiro a impressão, o que daí decorre que Hume também rejeita as ideias inatas.

Termina aqui o embate entre duas tendências filosóficas opostas, o racionalismo e o empirismo, cujo legado comum foi o de estabelecer a questão do método para investigar o alcance e limites do conhecimento humano. E o conhecimento se manifesta sob diversas formas, sendo o conhecimento científico uma dentre alas.

A VERDADE COMO REALIDADE DA CIÊNCIA

 

Em sua obra “Discurso do Método”, Descartes desabafa:

E eu sempre tive um enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida.  

Nota-se que Descartes desejava alcançar a verdade indubitável. Hume, por sua vez, colocava em questão nossa capacidade de atingir certezas absolutas. Mas o que é a verdade? aquilo que é real é verdadeiro? Esses conceitos são frequentemente confundidos na linguagem comum, embora sejam diferentes. A verdade, no conhecimento, se refere a uma proposição que expressa um fato. Deste modo, quando afirmamos, “Este anel é de ouro”, a proposição será falsa caso ele seja de bronze, ou verdadeira, se de fato for de ouro. Mas quando falamos somente de coisas (um anel, um prato, um sapato) só podemos afirmar que são reais, mas não verdadeiros ou falsos. Portanto o verdadeiro ou o falso não estão na própria coisa, mas no juízo, ou julgamento que fazemos dela. A verdade ou a falsidade surge a partir do momento em que afirmamos ou negamos algo sobre a coisa, e esses juízos são voltados à realidade, como queria Weber ao afirmar que os juízos de valor não podem ter sua origem nos dados empíricos. Podemos dizer que existe a realidade sem a verdade (ou falsidade), mas esses juízos só se originam a partir de uma realidade pré-existente.

 Embora tais conceituações pareçam óbvias ao senso comum, estamos diante de uma outra questão que nos leva a saber o modo pelo qual as coisas são de fato: o critério de verdade. Quando se conclui que o clima está frio pelo fato de estar a temperatura em cinco graus, é por ser isto baseado no critério de que em zero grau a água se transforma em gelo.

            A possibilidade de se conhecer a verdade tem suas origens em duas fontes. A primeira delas, o dogmatismo, faz com que em princípio, a pessoa abdique da dúvida mesmo com as mudanças ocorridas de acontecimentos ao longo do tempo. Em uma fase mais aguda, o dogmático resiste ao diálogo, rejeita a crítica, teme o novo e tenta impor aos outros seu ponto de vista. Para o filósofo porém, o dogmatismo serve para identificar os pensadores que estão convencidos de que a razão pode levar à verdade absoluta, à certeza, já que um juízo pode ser verdadeiro ou falso, mas um raciocínio está imune a esta análise, porém podendo ser válido ou não válido. A segunda, o ceticismo, em que a ponderação e a observação exagerada conduz à impossibilidade do conhecimento. Criticam o conceito de verdade como meio de revelação do real, mas sugerem que, mesmo sendo impossível encontrar a certeza, não se deve abandonar a busca da verdade.

            Estamos diante de um panorama no qual então, cada civilização busca a sua verdade a fatos nos quais eles a retratam, seja de natureza racional mediante o fato em si, empírico mediante o fato físico ou místico segundo um fato sagrado. A esse respeito profere Rudolph Otto sair do campo do estudo das ideias e penetrar no horizonte da experiência religiosa, em que se dá o encontro pessoal com o Mistério (mysterium tremendum et fascinans):

O sagrado designa para nós o âmbito em que se circunscrevem todos os elementos que compõem o fato religioso, o campo significativo a que pertencem todos eles; o sagrado significa a ordem peculiar da realidade na qual se inserem aqueles elementos: Deus, homem, atos, objetos, que constituem as múltiplas manifestações do fato religioso.

Existe então uma verdade final, absoluta? Argumentava Popper que, jamais podemos demonstrar que algo é verdadeiro por meio do conhecimento científico, embora possa demonstrar que algo é falso. Para ele, a história do conhecimento é uma sucessão de demonstrações de que aquilo que nos dava certeza, que era verdadeiro, de fato era falso.

Vejamos o que diz (Popper, 1987, p. 39-40):

Começo, regra geral, as minhas lições sobre o Método Científico dizendo aos meus alunos que o método científico não existe. Pondo isso em termos mais claros, ele afirmava: 1) não há um método para descobrir uma teoria científica; 2) não há um método para averiguar a verdade de uma hipótese científica, ou seja, não há um método de verificação; 3) não há um método de determinar se uma hipótese é ‘provável’, ou provavelmente verdadeira.

Popper considera que o conhecimento é a busca da verdade, que por sua vez é inalcançável. No entanto devemos nos aproximar dela por tentativas. Assim nos aproximaremos do conhecimento com base na experimentação, mas nunca chegaremos de fato até ele. Devemos, segundo sua sugestão, sempre criticar uma teoria ainda não refutada pelos fatos e pelas observações, ou seja, que "conhecimento" que se expõe ao confronto de fatos – que é falsificável – e que a partir isso, não se  chegar até ele por meio de teorias consideradas imutáveis. Para ele, a ciência não pode ser vista como um conjunto de teorias consideradas verdadeiras, absolutas, mas sim como um conjunto de conclusões provisórias. Sugere que a nossa ciência não é considerada conhecimento, já que não pode pretende atingir a verdade incontestável. Corroborando, Lakatos (1991) nos informa:

A investigação científica se inicia quando se descobre que, os conhecimentos existentes, originários quer das crenças do senso comum, das religiões ou da mitologia, quer das teorias filosóficas ou científicas, são insuficientes e imponentes para explicar os problemas e as dúvidas que surgem.

           

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Rebuscando o desenvolvimento das ideias, observamos alguns momentos históricos que se contrastam. Tal contraste não coloca um meio de produção e assimilação como conhecimento dominante em detrimento de outro. Apenas reflete a maneira como o homem encarava a natureza e sua inserção em busca de um modo de vida, e isso sabemos que historicamente e em todos os tipos de civilização, acarretou mudanças consideráveis nas exigência de cada povo perante a natureza, tendo em vista as próprias aspirações humanas diante de um mundo que se deseja conhecer. Assim, no decorrer da história humana existiam diversas maneiras de se compreender o mundo, a verdade. O critério aristotélico da evidência, segundo o qual é verdadeira a proposição que corresponde a um fato da realidade, prevaleceu na antiguidade e na idade média. Recebeu muitas críticas pela dificuldade em explicar o que significa uma proposição corresponder a um fato. Como os fatos eram analisados à luz de suas contemplações e crenças, e essas não são verificadas por outros critérios, para os críticos, isso não garantia que nossos pensamentos correspondessem aos fatos. Este pensamento sofreu significativas modificações na era moderna, com Descartes, que não afastou a possibilidade do conhecimento, sem descartar a crença em Deus. Posteriormente as posições conflitantes entre dogmáticos e céticos nos levaram a desconfiar das certezas, postura que se tornou mais aguda na contemporaneidade. Tudo o que se aprende nos permite melhor suportar o espanto, a admiração, a controvérsia e aceitar a dinâmica que oscila entre a certeza e a incerteza. Isso não significa renunciar à procura do conhecimento, pois conhecer é dar sentido ao mundo, interpretar a realidade e descobrir o melhor caminho para o agir, seja ele fático ou formal. A verdade continua como um propósito humano necessário e vital, que exige a liberdade de pensamento e expressão, para que os indivíduos compartilhem as interpretações possíveis do real.

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