Resumo: Uma interpretação do sucesso “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes.

A Garota é uma ninfa

Depois de ouvir “Garota de Ipanema”  no dueto de Tom Jobim e Frank Sinatra, aceitei o desafio de averiguar o que sustenta o extraordinário prestígio de que a canção desfruta aqui e no exterior, talvez mais no exterior do que aqui.

Averiguei e descobri o óbvio, a saber, que a obra alcançou a consagração internacional porque cria uma imagem. Como ensinam os mestres, Eliade em particular, criar uma imagem significa mostrar o mundo na sua totalidade, atualizar o contato com as matrizes do conhecimento primordial, onde habitam modelos exemplares.

Vale isto dizer que na intimidade mais recôndita da canção lateja a célula ancestral de um mito.

E por que lateja? Lateja porque, a despeito da incessante dessacralização do homem moderno, sobrevive, nas zonas mal controladas do inconsciente, todo um refúgio mitológico. 

À luz desse horizonte teórico, dispus-me a garimpar . Então eu pensei: ora, se a imaginação não  cria do nada, se  por trás de uma imagem há sempre um modelo exemplar, a imagem poderá ser apreendida imediatamente por dedução como reflexo do modelo,  ou reconstituída passo a passo mediante o exame do poema.  

Optei pela reconstituição. Confio na sabedoria da palavra escrita por poetas.

Eis a primeira estrofe:

Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar

Aqui o poeta convida. Convida o olhar anônimo a olhar com olhos contemplativos o que ele finge olhar  com olhos perceptivos, de um ângulo privilegiado.

Convite aceito. Mas olhar o quê?

Bem, uma garota linda, cheia de vida, plasticamente perfeita, entre cujos talentos ressalta  a harmoniosa cadência de seus passos – o doce balanço – a caminho da praia.

Sem dúvida um primor, porém um primor centrado exclusivamente nos dotes genéticos da menina. Nada que possa erigir até aí uma imagem exemplar.

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

O poeta volta a fingir. Finge dirigir a palavra à moça e aproveita o fingimento para revelar a ela a natureza única dos seus encantos.

Nesse passo, todavia, vale notar, a beleza da moça já se mostra enriquecida de uma virtude que transcende a dimensão genética: o dourado do sol. Não de um sol qualquer, mas do sol de Ipanema.

Introduz-se neste passo uma base territorial. A beleza da moça, que ocupava a estreita faixa de um caminho linear, o caminho do mar, brilha agora numa dimensão mais ampla, a dimensão de  Ipanema, um lugar ameno, deleitoso, ideal.   

Um lugar talhado para ser um refúgio de ninfas.

Pronto! A garota de Ipanema é uma ninfa, digamos, Tétis, que migrou da Ilha dos Amores (nono canto dos Lusíadas de Camões). A semelhança cai como uma luva.  Agora já temos a imagem, o modelo exemplar, o mito. 

Assim sendo, o turista que assistiu ao dueto de Frank Sinatra e Tom Jobim vai a Ipanema para vivenciar a nostalgia dessa invocação. Afinal o mito ainda é o regaço preferido dos sonhos e dos corações perplexos.

Deixo de comentar a última estrofe por uma razão muito simples. Quem chegou até aqui deixou-se arrebatar pela melodia, pelo ritmo, pelo balanço das estrofes iniciais e está impossibilitado de qualquer esforço intelectual.

Além disso, a última estrofe, parecendo meio arrependida,  mergulha no lirismo, como se desejasse sublimar a sensualidade das estrofes anteriores.

Não, não vou meter a mão nessa cumbuca. Prefiro continuar cantarolando.

Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar

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