RESUMO

A Constituição Federal garante o direito à propriedade privada no capítulo destinado aos Direitos Fundamentais (art. 5º), ratificando-o no capítulo referente à Ordem Econômica (art. 170). Tal garantia encontra, contudo, limites no cumprimento efetivo da função social (art. 186), legitimando a intervenção estatal na propriedade sob quaisquer de suas formas de atuação, desde a limitação de seu exercício até a própria expropriação. A Constituição prevê o instituto da desapropriação como sanção para as propriedades que não cumpram a função social. Perquire-se, nesta pesquisa, se há antinomia entre os referidos dispositivos constitucionais relativos aos temas referentes ao cumprimento da função social da propriedade.
 

PALAVRAS-CHAVE: FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL; INTERVENÇÃO ESTATAL NA ORDEM ECONÔMICA; DIREITO À PROPRIEDADE PRIVADA; DESAPROPRIAÇÃO.

ABSTRACT

The Federal Constitution guarantees the right to private property in the chapter for the Fundamental Rights (art. 5°), confirming it in the chapter relating to the Economic Order (art. 170). This guarantee is, however, limits in effective fulfillment the social function (art. 186), legitimizing state intervention in the property under any of its forms of action, since the limitation of exercise until the expropriation itself. The Constitution provides for the institution of expropriation as a penalty for the properties that do not conform to social function.

KEYWORDS: SOCIAL FUNCTION OF PROPERTY RURAL; STATE INTERVENTION IN THE ECONOMIC ORDER; RIGHT TO PRIVATE PROPERTY; EXPROPRIATION.

1 INTRODUÇÃO

O Código Civil de 2002 trouxe seu seu bojo uma aproximação com o direito agrário, uma vez que ratificou uma matéria até então dispersa, concentrando as discussões na função social da propriedade e ressaltando o ponto de vista constitucional, culminado em critérios que determinam se determinada propriedade atinge sua função social ou não.

Esse entendimento promoveu uma análise diferenciada das propriedades rurais, pois a partir do ponto de vista observado as propriedades rurais podem ser incluídas nos programas de reforma agrária promovidas pela Governo Federal.

Neste artigo pretende-se esclarecer o tema Função Social da Propriedade Rural, conceituando, apresentando características, classificações e critérios que balizam o cumprimento pela propriedade e seu proprietário da referida função, apresentando o ponto de vista apresentado no Estatuto da Terra e Constituição Federal.

 

2 IMÓVEL RURAL

O Estatuto da Terra, em seu art. 4º, inciso I expõe "Imóvel rural", como "o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada."

Pode se observar que na elaboração do Estatuto da Terra o legislador teve a preocupação de incorporar o princípio da função social da propriedade no entendimento do que é imóvel rural, tal fato se deu em virtude de anteriormente não haver padrão que estabelecesse diferença entre os imóveis rurais e urbanos.

Tais critérios sanaram também uma discussão que havia sobre qual o imposto que incidia sobre a propriedade rural, mas o Superior Tribunal de Justiça – STJ, firmou o entendimento de que a definição do imóvel como rural ou urbano, independe de sua localização, mas deve ser observada sua finalidade econômica, por tanto, deve incidir sobre a propriedade rural mesmo que em área urbana o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural – ITR.

A Lei 4.504 de 30 de novembro de 1964 - Estatuto da Terra estabelece que o imóvel rural é classificado em propriedade familiar, minifúndio, latifúndio e empresa ruralA propriedade familiar está prevista no Estatuto da Terra, em seu art. 4º, II, como sendo:

O imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros.

Neste contexto tem-se que a propriedade familiar deve ser explorada diretamente pelo proprietário e seu núcleo familiar, podendo contar com a prestação de serviço de terceiros desde que de forma eventual, sob pena de ser constatado que a função social não está sendo alcançada.

Cumpre destacar que o Decreto n. 55.891, de 31 de março de 1965, expõe que "quando tiver área agricultável inferior à do módulo fixado para a respectiva região e tipo de exploração.", esta deverá ser intitulada minifúndio. Benedito Ferreira Marques (2015, p. 56), declara que:

O minifúndio é combatido  e desestimulado no ordenamento jurídico agrário, na medida em que constitui uma distorção do sistema fundiário brasileiro, porque não cumpre a função social. Além disso não gera impostos nem viabiliza a obtenção de financiamentos bancários pelo minifundiário.

No que se refere ao latifúndio existem duas classificações: o latifúndio intitulado por extensão ou dimensão, que é que vem definido na letra “a” do inciso V do artigo 4º do Estatuto da Terra, que equivale ao tamanho do imóvel que é 600 vezes o módulo fiscal e, também,  o latifúndio por exploração, mau uso da terra ou por exploração deficiente que aquele que vem definido. O art. 4º do Estatuto da Terra que expressa que:

V - "Latifúndio", o imóvel rural que:

a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do artigo 46, § 1°, alínea b, desta Lei, tendo-se em vista as condições ecológicas, sistemas agrícolas regionais e o fim a que se destine;

b) não excedendo o limite referido na alínea anterior, e tendo área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja deficiente ou inadequadamente explorado, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito de empresa rural;

Conforme Benedito Ferreira Marques (2015, p. 62):

latifúndio é o imóvel rural que tem área igual ou superior ao módulo rural e é mantido inexplorado ou com exploração inadequada ou insuficiente às suas potencialidades. Em outras palavras, é o imóvel rural que, não sendo Propriedade Familiar - porque tem área igual ou superior ao módula rural -, não cumpre a sua função social.

[...] o conceito de latifúndio não quer dizer mais o grande domínio privado, como era concebido na antiga Roma. Hoje, tanto faz ser o imóvel de grande extensão como até mesmo ser do tamanho de um módulo, bastando que não seja explorado ou o seja inadequadamente, em relação às suas possibilidades físicas, econômicas e sociais do local onde se situa. Considera-se propriedade improdutiva.

A definição de Empresa Rural está prevista no Estatuto da Terra, no inciso VI, art. 4º, nos seguintes termos:

é o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro de condição de rendimento econômico [...] da região em que se situe e que explore área mínima agricultável do imóvel segundo padrões fixados, pública e previamente, pelo Poder Executivo. Para esse fim, equiparam-se às áreas cultivadas, as pastagens, as matas naturais e artificiais e as áreas ocupadas com benfeitorias.

O Decreto n. 84.685/80, em seu art. 22, modificou o art. 4º do Estatuto da Terra, para redimensionar a definição a empresa rural, da seguinte forma:

Art. 22. [...]

III – Empresa Rural, o empreendimento de pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explore econômica e racionalmente imóvel rural, dentro das condições de cumprimento da função social da terra e atendidos simultaneamente os requisitos seguintes: (a) tenha grau de utilização da terra igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado na forma da alínea a, do art. 8o; (b) tenha grau de eficiência na exploração, calculado na forma do art. 10, igual ou superior a 100% (cem por cento); (c) cumpra integralmente a legislação que rege as relações de trabalho e os contratos de uso temporário da terra.

 

A Constituição Federal de 1988, promoveu uma alteração na classificação do Estatuto da Terra substituindo por novos termos, quais sejam: pequena propriedade, média propriedade, propriedade produtiva (art. 185, I, II), as quais foram regulamentadas pela Lei 8.629 de 23 fevereiro de 1993. A Constituição Brasileira, não definiu a pequena propriedade. A definição ficou estabelecida pela Lei 8.629 de 25 de fevereiro de 1993, que regulamentou o texto constitucional no art. 4º, II, a pequena propriedade é assinalada como sendo o imóvel rural de área compreendida entre 1 (um) e 4 (quatro) módulos fiscais.

Em seu Artigo 5º, Inciso XXVI, a Constituição Federal de 1988, protege especialmente à pequena propriedade rural, resguardando de possíveis execuções: "a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento." Da mesma forma, a média propriedade, também vem definida no art. 4º, III da Lei 8.629/93,  sendo o imóvel rural de área superior a 4 (quatro) e até 15 (quinze) módulos fiscais.

Cabe destacar que A Constituição Federal de 1988, em seu art. 185, I, protege de forma especial a pequena e a média propriedade rural, determinando que tais propriedades são insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária, quando forem propriedades únicas.

No que se refere a propriedade produtiva, ficou estabelecida pela Lei 8.629/93, com a seguinte redação:

Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente

§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel;

§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento) e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:

I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada microrregião homogênea;

II – para exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada microrregião homogênea;

III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.

 

3 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE RURAL

A Constituição Federal de 1988 deu um tratamento especial para a função social da propriedade, sendo tal princípio inegavelmente de cunho constitucional, bem como também é um direito fundamental. Ter as propriedades cumprindo sua função social é um direito fundamental da sociedade como um todo e um princípio da ordem econômica. A primeira vez que o termo função social da propriedade aparece na Constituição de 1988 é no art. 5°:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXIII - a propriedade atenderá a sua função social

A Constituição Federal de 1988 em seu art. 5° também garante que é direito fundamental, o direito a propriedade. Este é um direito do cidadão contra terceiros que eventualmente possam querer investir na propriedade alheia de forma arbitrária, bem como também é um direito contra o próprio Estado, que não pode desapropriar propriedades privadas da forma que quiser. Entretanto, o cidadão detentor do direito de propriedade também tem deveres perante o Estado e a sociedade, e esse dever é fazer com que sua propriedade cumpra a função social. Em uma análise sobre os referidos princípios, assim diz MANNA e LAMBLEM (2009, p. 1058):

Nesse desiderato, o direito de propriedade é garantido e recebe proteção legal, desde que cumprida a sua função social. É tratado, ao mesmo tempo, como direito individual fundamental e de interesse público, visando a atender os anseios sociais.

Deflagrou-se, destarte, um sincretismo de direitos, eis que o art. 5º tanto garante o direito individual da propriedade, no inciso XXII, como prescreve a função social, logo adiante, no inciso seguinte.

Não se olvida que a dignidade da pessoa é a pedra basilar, influenciando o conteúdo da função social. Dispõe a Carta Magna que, cumprirá a função social a propriedade que, em respeito à dignidade humana, contribua para o desenvolvimento nacional, para a diminuição da pobreza e das desigualdades sociais. Trata-se de pressupostos objetivos e concretos.

3.1 Função social da propriedade como princípio da atividade econômica

O Título VII da Constituição Federal de 1988 volta novamente a usar o termo função social da propriedade. Porém, dessa vez o princípio é usado sob um outro ponto de vista, isto é, sob o ponto de vista da Ordem Econômica e Financeira. Com a leitura do art. 170 da Constituição Federal, percebe-se que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, de forma a assegurar uma existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social. Mesmo com uma leitura superficial, percebe-se que o constituinte fundamentou a ordem econômica dentro do contexto capitalista, porém, também levou em consideração a justiça social para reger a ordem econômica.

Uma das formas para que o Estado intervenha na economia é por meio da aplicação do princípio da função social da propriedade, uma vez que, como unidade de produção, que não cumpra com sua função social não estará valorizando o trabalho humano e, consequentemente, não estará promovendo a justiça social. Ou seja, a função social como princípio da Ordem Constitucional Econômica passa a ser instrumento de consecução assecuratória da existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Traçando um comparativo com os outros Artigos constitucionais acima transcritos resta evidente que o princípio da função social é instrumento constitucional promotor do bem estar social quer seja como instrumento de direito e garantia fundamental (Art. 5º, XXIII), quer seja como princípio norteador da ordem econômica (Art. 170, III), quer seja como princípio orientador da política urbana. (BARROS, 2008, p. 55).

3.2 O princípio da função social da propriedade e desapropriação

Conforme dito anteriormente, o direito de propriedade é um direito fundamental e tem como garantia de que o detentor da propriedade não será privado desta, seja por meio de ação do particular ou por meio de ação do próprio Estado. Porém, nem todo direito é absoluto, então, isso significa dizer que há casos em que pode haver a desapropriação, e o próprio constituinte falou sobre essa possibilidade no art. 184 da Constituição Federal de 1988, o qual afirma que compete a União desapropriar o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social. A finalidade da referida desapropriação é para atender o interesse social. Dentro do contexto do interesse social, pode-se analisar que é de interesse da sociedade que a propriedade rural seja produtiva, pois é da propriedade rural que em grande parte é produzida os alimentos que estarão disponíveis para a sociedade. Então, dessa forma, o interesse social que a propriedade rural exerce ultrapassa os limites da distribuição de terras como meio de evitar conflitos, e chega até a questão da segurança alimentar. Assim diz o art. 184 da Carta Política:

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei

O referido artigo evidencia o interesse do constituinte no processo de distribuição de terras para que seja alcançada a paz e a justiça social. Porém, não é todo imóvel rural que estará sujeito a desapropriação para fins de reforma agrária, e sim o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, e mesmo nesse caso, haverá prévia indenização para o proprietário que foi afetado pela desapropriação. Dessa forma, há harmonia entre o direito de propriedade e o processo de desapropriação que estará sujeita a propriedade rural que não cumprir sua função social, pois o imóvel que cumprir sua função social não pode ser desapropriado. O art. 185 da Constituição de 1988 traz novas regras referentes a desapropriação, no sentido de vedar a desapropriação da pequena e média propriedade para fins de reforma agrária, bem como também veda a desapropriação da propriedade produtiva. Assim diz o art. 185 da Carta Política:

Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;

II - a propriedade produtiva

3.3 Requisitos da função social da propriedade

A Constituição Federal em seu art. 186 fixou os requisitos para que uma propriedade alcance sua função social, e dessa forma, promova um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, que é a dignidade da pessoa humana, pois como visto anteriormente, o princípio da função social da propriedade é um direito fundamental da sociedade, pois é direito da sociedade que a propriedade produza e dessa forma possa abastecer os lares das pessoas, entretanto, essa produção da propriedade não deve ser feita de qualquer forma, e sim de forma racional e adequada, respeitando o meio ambiente, bem como garantindo os direitos trabalhistas e satisfazendo os interesses dos proprietários e trabalhadores. Diz o referido artigo:

Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:

I - aproveitamento racional e adequado;

II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;

III - observância das disposições que regulam as relações de trabalho;

IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores

À primeira vista, pode-se pensar que há uma contradição no próprio texto constitucional no que se refere ao processo de desapropriação, pois o art. 185 afirma que é vedada a desapropriação da propriedade produtiva, ao passo que o art. 184 afirma que a propriedade que não cumprir sua função social está sujeita a desapropriação, e conforme o art. 186, os requisitos para que uma propriedade cumpra sua função social ultrapassam a questão da produtividade. Entretanto, o Texto Constitucional deve ser analisado do seu ponto de vista global, ou seja, não se deve levar em consideração artigos isolados para analisar casos concretos, e sim, deve-se considerar toda Constituição. Dessa forma, apesar de o inciso II do art. 185 afirmar que a propriedade produtiva não será objeto de desapropriação, em uma interpretação sistemática, percebe-se que a propriedade produtiva que cumpre sua função social não será objeto de desapropriação. Com relação a essa aparente contradição entre os artigos da Constituição, assim se manifesta BARROS (2008, p. 59):

A interpretação do inciso II do Artigo 185 deve ser realizada de forma a propiciar o alcance dos objetivos fundamentais da República, garantindo a todos existência digna e justiça social.

Por meio de uma análise sistemática da Constituição Federal (Art. 1º, Art. 5º XXII e XXIII, Art. 170 II e III, Art. 184, Art. 186 e Art. 225), verifica-se que o espírito do texto albergou a evolução do direito no tempo, contemplando os fatores sociais aclamados por Comte e Duguit; aliás, trata-se de Constituição instituidora do Estado Democrático de Direito que possui como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana.

Aceitar como válida a norma impeditiva da desapropriação, o Artigo 185 II da Constituição Federal, e considerar como único requisito válido da função social o aspecto econômico, relegando para o ostracismo os demais requisitos intrínsecos do Artigo 186 da Constituição Federal que contemplam os valores sociais do trabalho (Art. 1º, IV e Art. 7º), os valores ambientais (Art. 225), entre outros, inúmeros que são protegidos pela Lei Maior, é rasgar a própria Constituição Federal e negar a existência do Estado democrático e de direito.

 

Dessa forma, percebe-se que o constituinte quis dar a propriedade, mesmo que privada, uma função que atenda aos anseios da sociedade, pois ao cumprir sua função social, a propriedade privada beneficia a sociedade de forma direta, na medida em que sua produção será destinada a sociedade, bem como respeitará o meio ambiente e gerará empregos. Então, desse modo, cumprindo o proprietário a função social destinada à sua propriedade, ele estará protegido integralmente no deu direito de propriedade. A propriedade, principalmente a rural, tendo em vista o seu caráter produtivo, é de real interesse para o país no que se refere ao aspecto econômico, por isso o interesse do constituinte em ressaltar que a propriedade deve produzir, mas não produzir de qualquer forma, e sim produzir respeitando o meio ambiente e as relações de trabalho. Deve-se ter em mente que os recursos existentes no planeta terra são essenciais para a própria existência da raça humana, por isso o interesse que que a produtividade considere a racionalização dos recursos. A proprietário também deve observar as disposições que regulam as relações de trabalho, pois como ressaltado, a propriedade além de servir ao proprietário, também serve à sociedade.

É cediço, ademais, que a terra constitui bem de produção por excelência e indiscutível fonte de riquezas. Mas é bem finito, por isso sua conservação e utilização exigem racionalidade e bom senso. A preservação dos recursos naturais é questão primordial para a sobrevivência da raça humana no planeta. Contudo, o progresso, o crescimento econômico agressivo aliado às “necessidades” humanas não têm permitido que a natureza seja preservada em sua plenitude.

O terceiro e quarto requisitos dizem respeito ao aspecto social da função da terra respeitante ao Direito do Trabalho. Remetem diretamente às obrigações trabalhistas do proprietário ou de quem tem a posse da terra para como os empregados, tais como salário, férias, aviso prévio etc. As relações de trabalho no campo, assim como na urbe, não podem admitir o trabalho escravo, a exploração de mão-de-obra de menores ou qualquer tipo de condição de degradação do ser humano. (MANNA e LAMBLEM, 2009, p. 1063)

4 CONCLUSÃO

Em suma, percebe-se que a função social da propriedade, notadamente a rural, é essencial para a garantia dos direitos fundamentais, e acima disso é essencial para que se concretize um dos seus fundamentos, que é a dignidade da pessoa humana. Observando a legislação infraconstitucional, observa-se que na elaboração do Estatuto da Terra o legislador teve a preocupação de incorporar o princípio da função social da propriedade no entendimento do que é imóvel rural, tal fato se deu em virtude de anteriormente não haver padrão que estabelecesse diferença entre os imóveis rurais e urbanos. Ao analisar o texto constitucional, também foi observado a preocupação que o constituinte teve com a função social da propriedade, na medida em que a Constituição Federal de 1988 deu um tratamento especial para a função social da propriedade, sendo tal princípio inegavelmente de cunho constitucional, bem como também é um direito fundamental.

Referências

BRASIL. Constituição Da República Federativa Do Brasil de 1988. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm >. Acesso em: 08 de dez. 2017.

______. Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964. Estatuto da Terra. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4504compilada.htm>. Acesso em: 08 de dez. 2017.

MARQUES, Benedito Ferreira. Direito Agrário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

MANNA, Raquel de Freitas; LAMBLEM, Glaucia Aparecida da Silva Faria. A função social da propriedade rural como fundamento de intervenção estatal na ordem econômica e hermenêutica constitucional. In: CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI, 2009, São Paulo. Anais... São Paulo: CONPEDI, 2009. p.1057-1071.

BARROS, Ricardo Marvalhas de Carvalho. A função social da propriedade rural como vetora da promoção da dignidade do trabalho humano no campo. 2008. 121 p. Dissertação (Mestrado em Direito)- Universidade de Marília, 2008.