Leonice Silva Ferreira[1]

Na realidade, todo leitor é, quando lê, 
o leitor de si mesmo.
 
Marcel Proust

Introdução

Pensamos, para a elaboração desse artigo, algumas questões em relação ao processo de ensino/aprendizagem durante a parte prática de nosso estágio realizada na Escola “São José” e no alcance dos objetivos para a leitura dos contos de Clarice Lispector. Diante do interesse dos alunos pelo tema e diante da participação, nos vimos com a questão sobre o papel da aula de literatura como formadora de leitores. Queremos pensar, portanto, nas mediações que ocorrem desde a etapa teórica do estágio, na prática da sala de aula e nas metodologias adotadas para investigar como se dá a constituição dos sujeitos no processo de ensino-aprendizagem e como se dá a formação de leitores como resultado das aulas dos estagiários no Ensino Médio da rede pública de Pontes e Lacerda.

Professor, estagiário, alunos – Mediações do texto no processo de ensino/aprendizagem.

Sempre vimos o estágio como uma forma de se promover diálogos entre a teoria estabelecida sobre a prática pedagógica, a teoria sobre o objeto de ensino e as motivações subjetivas do estagiário. Já vimos nos Parâmetros Curriculares para o Ensino de Língua Portuguesa no Estágio I que o processo de ensino-aprendizagem se assenta sobre a tríade professor/conhecimento/aluno. Em outras palavras, os elementos fundamentais em uma sala de aula são: quem ensina, o que ensina e para quem ensina. As projeções do imaginário desses três elementos se multiplicam: quem sou eu para ensinar? Quem é o outro para que eu o ensine? O que estou ensinando e qual a sua finalidade? Quem sou eu ao aprender? Quem é o outro para me ensinar? O que é isso que me ensina e para que me servirá? O que é o objeto de ensino na teoria que o funda, na teoria sobre seu ensino, nas críticas que lhe são possíveis?

Pensamos que há diferenças entre o objeto, seu ensino e o ensinamento sobre o seu ensino. Recorremos a Blanchot (1997) e a Todorov para apoiar nossa ideia de que a literatura se diferencia nessas instâncias. A realidade do texto literário é uma na obra, outra no adolescente que o lê, outra para o estagiário que o usa e ainda outra para o professor orientador de uma disciplina como o estágio. Não mencionamos aqui apenas as particularidades subjetivas de cada leitura, mas o modo como a institucionalização de cada uma das posições assumidas por esses sujeitos – professor, estagiário, aluno do ensino médio – leva a diferentes realidades do texto literário. E, se, para Blanchot (1997), “a literatura começa quando a literatura se torna uma questão”, pensamos que o texto literário chega a uma aula de estagiário como a questão da qual essa aula se originou.

A realidade do texto nessas aulas está ancorada em fazeres pedagógicos que lançam um olhar e estabelecem um recorte para a leitura do texto. Ela é sempre motivada pela teoria do ensino e pela teoria da literatura. Esses, a literatura e o seu ensino, são objetos de ensino do nosso processo de ensino-aprendizagem durante a disciplina de Estágio Curricular Supervisionado. Somos, portanto, alunos, e, como alunos, temos o objeto a aprender e nos inscrevemos entre os que dependem de métodos para a aquisição dessa aprendizagem. Então, o que temos numa etapa teórica de estágio é o processo de aprendizagem do ensino. O professor requer de nós que aprendamos a ensinar. Resta saber em que momento e sob que circunstâncias deixamos de ser alunos e passamos a ser professores.

O que queremos discutir mais amplamente é como o texto se constitui e nos constitui como leitores, nessa relação de sujeitos do processo ensino-aprendizagem. Acreditamos que a formação de leitores se dá em contrapartida à formação da autonomia e que ambas são dispositivos de invenção na sala de aula. Em outras palavras, o professor inventa o texto, no sentido de conferir-lhe formatos e significados que criam uma imagem do escritor para o aluno. Na sala de aula, percebemos que do mesmo modo que o aluno constitui o imaginário do escritor, constitui o imaginário do estagiário. E este recebe diferentes identidades durante o estágio – conjuga em si as personalidades todas – é aluno e se identifica com seus alunos, para quem é professor, por isso se identifica com seu professor, para a escola é estagiário, como tal vive essa experimentação da realidade. Sendo que o estágio é o momento de experiências e subjetivação em que se começa a formar a identidade profissional do docente, precisamente, desse choque de identidades decorrentes do processo final do curso de Letras.

O que é ensinar literatura?

 Roland Barthes destacou em sua aula inaugural para o Colégio de França a aula enquanto forma e não conteúdo. Para o autor, “[...] o que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto” (Barthes, p. 43). A forma da aula diz respeito aos modos de docência, às identidades que são construídas no imaginário dos sujeitos envolvidos e presentes na sala de aula. Do lugar que estou, que sou e que é o outro? De modo que, para Barthes (2010), o que conta mais nem é o conteúdo a ser exposto, mas as formas de exposição. De que maneira são construídos os posicionamentos de cada sujeito (si e o outro) do conhecimento num ambiente de sala de aula?

O que mais nos interessa nessa questão é em que medida uma aula de literatura pode ser descrita, por exemplo, como o espaço para se ensinar Clarice Lispector ou Manoel de Barros? Imaginamos um aluno que comentaria depois com os pais ou um amigo: “na aula de hoje aprendi sobre Clarice Lispector”. O que é aprender Clarice Lispector? Os moldes clássicos de aula nos permitiriam dizer que aprender Lispector seria adquirir um conjunto de informações biográficas e conceituais de suas obras literárias, passear pelas leituras e conhecer as imagens que são construídas.

Mas tal resposta nos deixa com uma série de problemas. O que mais nos interessaria como professores para uma aula com o livro Felicidade Clandestina seria menos a aprendizagem e mais a reflexão. Gostamos particularmente de uma citação de Barthes (2010), em que se pode ler: “Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisa” (Barthes, p. 47). Pesquisar é procurar as pedras dos poemas, é se dedicar a uma leitura descompromissada do texto literário ou da poesia que quer encontrar em cada verso simplesmente a beleza da linguagem. Não interessaria ao professor, portanto, levar ao aluno notas biográficas do autor nem considerações teóricas ou críticas sobre sua obra, mas a leitura em si das obras. Leitura pelo prazer estético na sala de aula é um dos meios para motivar a leitura em casa, isso é formação de leitores. Nenhum adolescente lê poesia ou narrativa para encontrar funcionamentos teóricos.

            Vemos a obra de Clarice Lispector como a narrativa que apresenta a linguagem como a imagem da própria linguagem. É a linguagem se voltar para si, para refletir seus próprios usos, suas situações. A obra de Lispector, quando a usamos no intuito de formar leitores, deve ser percebida, intuída, pensada no confronto com o mundo. Assim, conseguiremos que seus textos tenham seus sentidos completados na leitura realizada em sala de aula.

Despertar o interesse dos alunos passou pela viagem ao interior da linguagem e da literatura. Usamos as memórias da infância da narradora-personagem, imagens que se mesclavam e compuseram o cenário final da aula. Invenção que deslocava os sentidos da exatidão e rigor científico ou sistematizado para o estudo da literatura. Tal qual realizou Barthes, para quem, segundo Leyla Perrone-Moisés, se reinventou: “Roland Barthes por Roland Barthes destruía num trabalho de ficção, o mito da autobiografia e da autoanálise”. (Leyla Perrone-Moisés p.60).

Situamos a noção de Barthes para a literatura: “[...] a ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância que a Literatura nos importa”. (Barthes, 2010). E, portanto, podemos falar de utilidade para a leitura do texto literário. Ao final da aula, quando os próprios alunos nos relataram que gostaram da mesma percebemos que essa metodologia alcançou o objetivo que tinha para a aula. A maneira como foram trabalhados os textos literários fizeram os alunos sentirem vontade e interesse pela leitura, isso com apenas uma aula e acreditamos que se começar a trabalhar a literatura desta forma promovendo diálogos, fazendo com que os alunos apresentem suas idéias, promovendo a aquisição do senso crítico, desde cedo fará com eles adquiram o gosto e prazer pela leitura.    

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARTHES, Roland. Aula. São Paulo. Cultrix, 2010.

BLANCHOT, M. “A literatura ou o direito à morte”. In: A parte do fogo. Rio de Janeiro. Rocco, 1997.

CANDIDO, A. “O direito à literatura”. In: Vários escritos. São Paulo. Livraria Duas Cidades, 1995.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

[1] Acadêmica do curso de LETRAS – UNEMAT, Campus Universitário de Pontes e Lacerda. Artigo solicitado como requisito parcial de nota da disciplina de Estágio Curr. Superv. III. Sob a orientação da Profª.Ms. Gislei Martins de Souza.