Mas diante de tudo, é profundamente enfatizado o respeito, traço que estrutura o ethos de honra no sertão. Observa-se que em todas as obras analisadas esta conduta é evidente nas atitudes dos algozes para com suas vítimas. Em Duelo Timpim Vinte-e-Um demonstra respeito por Turíbio Todo, mesmo sabendo que irá matá-lo: "Seu Turíbio! Se apei e reza, que agora eu vou lhe matar! [...] Peço perdão a Deus e ao senhor, mas não tem outro jeito, porque eu prometi ao meu compadre Cassiano [...] Pois então reza, seu Turíbio, que eu não quero a sua perdição!"42. Assim também ocorre com Augusto Matraga, antes de matar Joãozinho Bem-Bem ele mostra-se preocupado com a salvação deste e pede-lhe que se arrependa de seus pecados. Nhô Augusto estava muito machucado, mas pediu que chamassem um padre e ainda teve tempo para fazer com que respeitassem o cadáver de Joãozinho-Bem-Bem mandando que o enterrassem dignamente.

Em Os irmãos Dagobé a visita de Liojorge ao velório e ao enterro de Damastor Dagobé reflete do mesmo modo esta reverencia ao morto: Liojorge, o homem bom, está cheio de arrependimento por ter assassinado o homem cruel chamado Damastor Dagobé. Assim, pede e obtém consentimento para ir ao velório. Todos ficam apreensivos por sua vida, pois os irmãos de Dagobé estarão presentes. Liojorge se propôs a carregar o caixão em respeito ao morto, pois "afiançava que não tinha querido matar o irmão de cidadão cristão".

E assim, os três irmãos concordaram e Liojorge carregou o caixão até o cemitério.

[...] Que o rapaz Liojorge [...] matara com respeito. E que, por coragem e prova estava disposto a se apresentar desarmado, ali perante dar fé de vir, pessoalmente, para declarar sua forte falta de culpa. [...] Houve o pegar para carregar: três homens de cada lado. O Liojorge pegasse na alça à frente, da banda esquerda ? indicaram." 43

Igualmente respeito teve que demonstrar Tonho, em casa dos Ferreiras: Desta vez quem pede permissão para ir aos rituais funéreos é o patriarca dos Breves.  "Meu filho pede licença pra prestar icelência. Vai pedir pela alma do morto [...] TONHO: Eu rezei pela alma do morto. Em respeito a ele, fui ao enterro e no almoço. Agora eu peço[...] a trégua a vosmecê"44. Esta é a maneira de demonstrar o ethos sertanejo que presa a honra diante de fatos tão complexos.

As ficções analisadas têm como recurso narrativo a inversão dos atos, em que a previsibilidade da vingança inverte-se em desfechos imprevisíveis de acordo com a ética vingativa definida neste estudo.  Guimarães Rosa e Walter Salles em suas produções dão ao inferiorizado ou ao fraco, possibilidades para sobreviver em um meio de lutas e vinganças. Eles criam dramas que dentro de um contexto possuem desfecho previsível para o leitor, porém, de forma inovadora dentro desse mesmo contexto, sem deixar de lado a verossimilhança, transfiguram a previsibilidade em imprevisibilidade. Esse recurso literário revela as articulações de uma lógica contida nas histórias em que o fraco pode se tornar, por um momento, forte, através da renúncia, do altruísmo ou da honra da palavra. Para isso, os autores subvertem o funcionamento de uma ética vindicativa inutilizando ou invertendo seus efeitos na perspectiva de fomentar reflexões sobre a temática que expõem.

Para tanto, a inversão nas narrativas promove também uma intercomunicação, já que um drama pode se articular com outro em uma outra narrativa. Assim, pode-se também perceber a forma dialógica que os textos mantém  entre si. Vale destacar que é o tema comum entre eles que  leva-nos a ler um no outro, como já foi dito pelo filosofo contemporâneo Derrida, o qual afirma que todo texto pode servir como "cabeça de leitura" para outro. De acordo com essa perspectiva, o duelo que se espera concretizar em um conto, vai ocorrer em uma outra hora, e em outra vez. A vingança pela morte de um irmão não é realizada pelos bravos Dagobé, mas sim, pelo tímido Tonho, que renunciando a segunda vingança, despedaça uma ética e inicia um novo percurso promovido pelo olhar inocente do irmão mais novo, o qual é vingada de uma outra maneira, uma maneira desconhecida e diferente daquela que mantinha as famílias dependentes de uma vendeta. Diante disso, todos os personagens adquirem liberdade, tornam-se livres através da renuncia, através do perdão e acima de tudo na perspectiva de uma nova vida. Enfim, todos os ciclos e regras são despedaçados e desconstruidos para finalizar uma época e iniciar um recomeço.

Diante de todas as informações apresentadas até aqui, a Ética da Vingança foi debatida em diversas abordagens teóricas. Alguns acreditam que ela é necessária para se manter uma sociedade justa, outros argumentam contra, alegando que se assemelha à falácia de que dois erros não fazem um acerto. Em algumas sociedades se acredita que o mal infligido deve ser maior do que o mal que originou a vingança, como uma forma de punição. Cada uma destas abordagens mostra-nos que o tema não se esgota aqui e, portanto, mesmo dentro de um estudo que objetivou uma análise delimitada apenas a um contexto, o sertanejo, este tema transcende para avaliações subjetivas e reflexões filosóficas já que transita, do local para o universal, pois de acordo com Rolando Brito "O sertão é como Deus definido por Hermes de Trimegisto, uma circunferência cujo centro está em todas as partes e a periferia em nenhuma."45

REFERÊNCIAS

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[1] CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. 2. Ed.rev. e acrescida de um suplemento, 13. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986.

[2] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 35.

[3] Op. Cit.

[4] Op. Cit. p. 37.

[5] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.40.

[6] VAZ, Henrique C. de Lima. Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura. São Paulo: Ed. Loyola, 1993.

[7] NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.p. 40.

8 DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978. p. 333.

[9] MIRA Y LÓPEZ, Emílio. Quatro Gigantes da Alma. Trad. Cláudio de Araújo Lima. 11 ed. J. Olímpio, Rio de Janeiro, 1980 p. 111.

[10] ROSA, João Guimarães. Duelo. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984.p. 176.

[11] Op. Cit.

[12] GILDA, NOGUEIRA. Sagarana.Programa de Orientação profissional. Oficinas Literárias. CBM. Barão deMauá.CentroUniversitário.FUVEST/UNICAMP2007.Disponívelem:<http://www.baraodemaua.br/eventos/oficina_literaria/2006/sagarana.pdf>Acesso em: 02/01/2007.

[13] CÂNDIDO, Antonio.Literatura e sociedade.Estudos de teoria e história literária.São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 2002. p. 23.

[14] ROSA, João Guimarães. Duelo. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 203.

[15] MIRA Y LÓPEZ, Emílio. Quatro Gigantes da Alma. Trad. Cláudio de Araújo Lima. 11 ed. J. Olímpio, Rio de Janeiro, 1980.

[16] ROSA, João Guimarães. Duelo. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 48.

[17] ROSA, João Guimarães. Os irmãos Dagobé In: Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.p. 48.

[18].Op. Cit. P. 48.

[19] Op. Cit. P. 50.

[20] SILVA, Elias dos Santos. A Dualidade Humana Em A Hora E A Vez De Augusto Matraga. Usina das Letras. 03/02/2005. Disponível em: http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.phtml? Acesso em: 28/12/2006.

[21] ROSA, João Guimarães, A hora e vez de Augusto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984.

[22] ROSA, João Guimarães, A hora e vez de Augusto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984.

[23] Op. Cit. 111.

[24] Op. Cit. 110.

[25] DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

[26] Op. Cit.

[27] Op. Cit.

[28] ROSA, João Guimarães, A hora e vez de Augusto Matraga. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984.

[29] BUTCHER, Pedro & MÜLLER, Anna Luiza. Abril Despedaçado.[ História de um Filme]: Roteiro.

SALLES, Walter /MACHADO, Sérgio e AÏNOUZ Karim. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p. 92/93.

[30] Op. Cit. p. 80/81.

[31] Op. Cit. p. 82/83.

[32] BUTCHER, Pedro & MÜLLER,, Anna Luiza. Abril Despedaçado.[ História de um Filme]: Roteiro.

SALLES, Walter /MACHADO, Sérgio e AÏNOUZ Karim. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p. 82/83.

[33] Op. Cit. p. 93/94.

[34] Op. Cit. P. 95/96.

[35] BUTCHER, Pedro & MÜLLER, Anna Luiza. Abril Despedaçado.[ História de um Filme]: Roteiro.

SALLES, Walter /MACHADO, Sérgio e AÏNOUZ Karim. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p.152/153.

[36] Op. Cit. P. 193/194.

[37] Op. Cit. p. 210/211.

[38] Op. Cit. p. 196/197.

[39] Op. Cit. p. 212/213.

[40] Trata-se de uma tira de tecido preta que os envolvidos na vendeta usam no braço como forma de estigma, ou seja aqueles que estão envolvidos na demanda vingativa permanecem marcados até o conflito.

[41] BUTCHER, Pedro & MÜLLER,, Anna Luiza. Abril Despedaçado.[ História de um Filme]: Roteiro.

SALLES, Walter /MACHADO, Sérgio e AÏNOUZ Karim. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p. 225/227.

[42] ROSA, João Guimarães. Duelo. In: Sagarana. Rio de Janeiro: Record, 1984.p. 207/208.

[43] ROSA, João Guimarães. Os irmãos Dagobé In: Primeiras Estórias. 14. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.p. 47, 49.

[44] BUTCHER, Pedro & MÜLLER,, Anna Luiza. Abril Despedaçado.[ História de um Filme]: Roteiro.

SALLES, Walter /MACHADO, Sérgio e AÏNOUZ Karim. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p. 200/201

[45] BRITO, Rolando Correia. A Invenção do Sertão. In: Entremez. Revista Continente Multicultural, ano VI nº 68. Agosto, 2006.