Da Escuridade da Cabala
O maior cuidado dos cabalísticos se empregou em velarem sua ciência com densíssimas nuvens de escuridade, a fim de que sendo tão escondida aos olhos do vulgo, fosse venerada como coisa divina, fundando-se, pode ser, no que já disse Platão ao seu Dionísio: Per aegminata dicendum est. Ou na grande autoridade do Aeropagita, quando escreveu a Timóteo: Divinus in divina doctrina fructus, secretae, animiquesancta sunt, circumagens ex imunda multitune tanquam unicustodi , haec custodi (Pseudo-Dionísio Aeropagita a Timóteo).
Contudo, a observância destes segredos quiseram eles se fundasse em ordem divina, trazendo igualmente para este testemunho, que para provar a qualidade de sua ciência, um lugar de Esdras, que se ele fosse de igual crédito aos mais, sem dúvida lhe ficaria muito avantajada a opinião de um e outro intento. Diz assim o lugar desde o número terceiro até o quinto no livro 4: Revelans, Revelatus sum Moyse super Rubum, quando populos meus serviebat in AEgypto... et adduxi eum super montem Sina, et detinebam eum apud me diebus multis, et enarravi ei mirabilia multa, est ostendi ei temporum secreta, et finem, et praeci ei dicens, haec in palam facies verba, et hac abscondes.
Então, valendo-se das autoridades de nossos Santos Doutores, trazem algumas, que mais favorecem a opinião, quese arrogam em virtude deste lugar. Mas entre os maiores lhe dão maior socorro duas autoridades de São Gregório Naziaseno; a primeira no livro que intitulou de Statu Episcoporum, onde diz, falando de Moisés: Accipit legem ipsis quidem multis, eaque est litterae, ipses autem super multos, eaque est spiritus. O segundo lugar é do livro de sua Teologia, no qual se lêem (da mesma Lei) estas palavras: Vult ita tabulis solidis, et lapideis conscribi, et iis altrinsecus, propter manifestum legis, et occultum illud quidem multis et inferius manentibus, hoc autem paucis, et sursum prevenientibus.
Com estes e outros semelhantes lugares esforçam e justificam aqueles mistérios com que retiram sua ciência aos olhos do vulgo, procurando provar com as últimas palavras de Esdras, no lugar citado, que a Lei foi uma daquelas coisas que Deus lhe deu a Moisés, para que comunicasse a todos, como se infere da cláusula Haec in palam facies verba, e que a outra coisa que lhe deu para que a ocultasse e guardasse para si e para poucos foi a Ciência Cabala, pela qual querem se entenda a cláusula última: Et haec abscondes: ao que obedecendo o Profeta fez tesouro deste altíssimo segredo, revelando-o somente aos sábios, dos quais haviam de receber os outros, conforme ao mandado de Deus.
Mas a esta doutrina parece que contradiz outro lugar o Deuteronômio explicado da Ciência da Cabala, segundo o expõe o rabino Ramban Gerudense, onde se diz: De dextera ejus ígnea lex eis; como se dissesse, da mão do altíssimo não pendia nem se dava lei escura, nem ciência de trevas. O que certifica Davi dizendo: Praeceptum Dominum lucidum, illuminas óculos. Porém, deixando à parte esta dúvida, nós vemos que a dos padres neste ugar, nem em outro, fala da Ciência Cabalística. E também sabemos que o terceiro e o quarto livro de Esdras não têm autoridade canônica. Quanto mais, que ainda quando tudo assim fosse, não se seguia necessariamente que a cláusula haec abscondes houvesse de significar somente a Ciência Cabala, que por ela nosdenotam e com ela autorizam. Porque muitas outras coisas poderia a Divina Sapiência revelar a seu servo Moisés, que então conviesse esconder ao povo judaico, sem que fossem os preceitos desta arte, da qual no divino Texto não vemos expressa menção.
Do mais que toca à sua escuridade e confusos termos, poderíamos discorrer largamente; mas porque eles são em tanta maneira escuros, por eles mesmos se demonstrará o que aqui escusamos de prosseguir acerca do segredo e profundidade desta disciplina.