A escravatura e Missionação em Moçambique: Em José Craveirinha “Xigubo” e “Sangue negro” de Noémia de Sousa

Lina Honorata David

UP Maxixe (Moçambique)

Resumo: Neste texto, é nossa intenção reflectir sobre a escravatura e missionação no olhar dos textos de José Craveirinha e Noémia de Sousa que se relacionam directamente com a presença colonial em Moçambique. Referimo-nos deste modo concreto aos textos das obras "Xigubo" e "Sangue Negro", neles estes escritores através da literatura (seus poemas) reivindicam a sua identidade, enfatizando a ideia de que os negros africanos estão conscientes dos seus valores.

Palavras-chave: Cultura, Literatura e Identidade Cultural, 

Missionação em Moçambique

Primeiro Período (1560-1572) - A Tentativa Missionária

A primeira presença permanente dos Jesuítas durou cerca de doze anos, um período caracterizado pelo lançamento das bases da cristandade às elites locais. O pequeno número de missionários difunde a fé ao mesmo tempo que garante a penetração para o interior. Quando chega a Goa a notícia de que um rei negro destes territórios deseja converter-se e que a África Oriental parece abrir-se ao Cristianismo, os Jesuítas deixam-se tentar pela empresa e enviam três missionários. O padre Gonçalo da Silveira chefiou a Missão que partira da metrópole para Goa em 1556, o ano da morte do fundador, Inácio de Loyola.

Em 1557 D. Gonçalo da Silveira tinha mostrado ao Superior-Geral dos Jesuítas o desejo de ter mais gente para trabalhar, na qualidade de superior da Província do Oriente. Entre 1559 e 1560 deixou  Chaul, Índia, e dirigiu-se a Ilha de Moçambique, onde chegou a 5 de Fevereiro de 1560, tendo, no mesmo mês rumado a Inhambane, para iniciar a propagação da fé. Chegou à Missão de Cafraria tendo sido recebido pelo rei Gamba em Tongue. Estava acompanhado por dois companheiros: Pe. André Fernandes e Irmão André Costa. Abriu a primeira Missão da Companhia de Jesus em Moçambique e na África Oriental no território dos Tonga onde tinha conseguido baptizar o soberano e a Corte. Uma vez consolidada a cristandade, decidiu avançar para o poderoso imperador da África - o Monomutapa.

Em 24 de Maio de 1569 baptizaram o próprio Monomutapa e aos filhos dos régulos das áreas satélites, em 1570, trabalho reforçado pelos missionários dos Irmãos de São João de Deus, 10 anos mais tarde. Em 1579 foi erguido um convento na Ilha de Moçambique e em 1586, outro em Sofala, por um grupo liderado pelo Frei João dos Santos. Aqui conseguiram baptizar, em três anos, 1700 almas, enquanto os territórios de Moçambique (Nampula), Cuama (Zambézia), sena e Tete eram percorridos. O isolamento fez com que alguns missionários entrassem em negócios de escravos, do ouro e do marfim. O desorientamento geral atinge alguns missionários envolvidos em questões de grandes propriedades e de comércio de escravos. Destes negócios resulta um conflito entre Jesuítas e Dominicanos, pela possessão de prazos e de escravos.

 

Segundo Período - 1610-1759: Desenvolvimento da Cristandade

Este é o maior período até ao momento, com 149 anos. Teve como grandes centros a Ilha de Moçambique para cobrir toda a macuana e as ilhas de Quelimane, para evangelizar todo o litoral, Sena para a região intermediária, Tete para o interior mais a Oeste do Zambeze acima. Com eles havia dominicanos a trabalhar no centro. Em Zambézia contam-se dezasseis missões com nove dominicanos, seis Jesuítas e um sacerdote secular. Os jesuítas fundam também colégio-seminário mas tudo fica comprometido com a supressão da ordem, decretada pelo Marquês de Pombal, em 1759.

Em 1563, Pio IV em Dispositione de 12 de Fevereiro, criará as administrações eclesiásticas de Moçambique e Sofala. Foi o êxito conquistado pelos missionários jesuítas ao lado dos dominicanos que fez com que o Sumo Pontífice separasse o território de Moçambique da Arquidiocese de Goa. Nesta data é nomeado, Manuel Sousa Coutinho.

 

Terceiro Período - 1881-1911: No contexto da ocupação efectiva

Este período foi caracterizado pela presença de missionários das várias províncias Jesuíticas. Em três décadas floresceram as missões, dividiu-se a Zambézia pela Inglaterra e Portugal enquanto províncias da Companhia de Jesus com sedes na Zambézia e Salizbury. De facto, de 1881 a 1910, fundaram oito missões e três paróquias, além dos seis colégios em Quelimane, Milange, Inhambane, Chupanga, Coloane e Lifidzi, e de dois internatos, um em Boroma e outro em Zumbo e quinze escolas. Eles tinham uma acção circunscrita dentro dos limites da Companhia de Moçambique, com cujo proprietário mantinham relações.

Escravatura em Moçambique

Moçambique foi colónia de Portugal por muito tempo. O domínio português se dá quando Vasco da Gama atinge o solo moçambicano em 1498 e faz aliança com o rei Melinde. Em 1506, os portugueses apoderam-se de Sofala e em 1507 da ilha de Moçambique que se constituiu desde então em um porto de escala para os portugueses no comércio e na conquista da Índia. Em 1697, após frustradas tentativas de exploração do ouro e marfim, o comércio de escravos tornou-se a principal atividade dos portugueses em Moçambique. Uma grande quantidade de negros fora levada do solo moçambicano e vendidos como escravos, na América do Norte e, principalmente, no Brasil. Assim, por exemplo, até 1800, o número de escravos era em média de 10.000 por ano, cifra que passa, a partir de 1800 para 15 e 25 mil escravos por ano, decaindo a partir de 1850.

A posição dos colonizadores portugueses em relação ao povo moçambicano passa a ser ameaçada quando os poderes europeus decidem a partilha da África. Uma nação pretendente foi a Inglaterra, que, em 1823, alegando encontrar o território abandonado, reinvidicou sua soberania. Mas, com a Conferência de Berlim, em 1885, a soberania lusitana é legitimada.

Como toda colónia portuguesa, Moçambique tenta se libertar das garras deste ambicioso e sangrento colonizador. Surgem os movimentos nacionalistas. A Liga Africana, fundada em Lisboa no ano de 1920, é a primeira organização favorável aos nativos africanos. Depois desta, surgiram o Instituo Negrófilo, a Associação dos Naturais de Moçambique, a União Democrática Nacional de Moçambique, a União Nacional Africana de Moçambique, além de outras. Essas organizações se uniram e, em 1962, formaram a Frente Liberal de Moçambique (FRELIMO), presidida pelo Dr. Eduardo Mondlane, o qual morreu assassinado por uma bomba postal, em 1969. A FRELIMO começou a atacar as forças militares portuguesas, em 1964. O governo socialista português derruba, em 25 de Abril de 1974, a ditadura de Salazar, e concede a independência a Moçambique, em 1975.

 

Vida e obra de José Craveirinha e de Noémia de Sousa

 

José Craveirinha

José Craveirinha nasceu no bairro da Mafalala, em Lourenço Marques (atual Maputo), em 28 de Maio de 1922, filho de pai algarvio e mãe Ronga.

Como jornalista, colaborou nos periódicos moçambicanos O Brado Africano, Notícias, Tribuna, Notícias da Tarde, Voz de Moçambique, Notícias da Beira, Diário de Moçambique e Voz Africana.

Utilizou os seguintes pseudônimos: Mário Vieira, J.C., J. Cravo, José Cravo, Jesuíno Cravo e Abílio Cossa. Foi presidente da Associação Africana na década de 1950.

Esteve preso entre 1965 e 1969 por fazer parte de uma célula da 4.ª Região Político-Militar da Frelimo. Foi o primeiro presidente da Mesa da Assembleia Geral da Associação dos Escritores Moçambicanos, entre 1982 e 1987. Em sua homenagem, a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO), em parceria com a HCB (Hidroeléctrica de Cahora Bassa), instituiu em 2003, o Prémio José Craveirinha de Literatura.

 

Noémia de Sousa

Nasceu em Catembe, Moçambique, em 1926 e faleceu em Cascais, Portugal, em 2002. Poeta, jornalista de agências de notícias internacionais viajou por toda a África durante as lutas pela independência de vários países. Só publicou tardiamente seu livro de poesias Sangue Negro, em 2001.

Noémia de Sousa estudou no Brasil e começou a publicar em O Brado Africano. Entre 1951 e 1964 viveu em Lisboa, onde trabalhou como tradutora, mas, em consequência da sua posição política de oposição ao Estado Novo teve de exilar-se em Paris, onde trabalhou no consulado de Marrocos. Começa nesta altura a adoptar o pseudónimo de Vera Micaia.

A sua obra está dispersa por muitos jornais e revistas. Colaborou em publicações como Mensagem (CEI), Mensagem (Luanda), Itinerário, Notícias do Bloqueio (Porto, 1959), O Brado Africano; Vértice (Coimbra), Sul (Brasil). Em 1975 regressou a Lisboa, onde trabalhou na Agência Noticiosa Portuguesa. Em 2001, a Associação dos Escritores Moçambicanos publicou o livro Sangue Negro, que reúne a poesia de Noémia de Sousa escrita entre 1949 e 1951.

 

Análise das obras “Xigubo” de José Craveirinha e “Sangue Negro” de Noémia de Sousa

Propusemo-nos a analisar com profundeza dois textos de cada obra dos autores acima referenciados, sendo “Grito Negro” e “África” de José Craveirinha; “Negra” e “Sangue Negro” de Noémia de Sousa, neles são evidentes as marcas da escravatura e missionação a que o povo moçambicano sofreu. Estes escritores através da literatura (seus poemas) reivindicam a sua identidade, enfatizando a ideia de que os negros africanos estão conscientes dos seus valores.

Grito negro

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me tua mina
Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu Irmão
Até não ser mais tua mina
Patrão!
 

O poema Grito negro apresenta uma metáfora que se repete em todas as estrofes do poema no verso “eu sou carvão! Neste verso o autor faz uma comparação entre a cor negra e a cor do carvão, procurando se afirmar e aceitar a sua identidade. Nota-se também o grito do povo moçambicano nos versos “E tu arrancas-me brutalmente do chão/E fazes-me tua mina/Patrão! Este texto é na sua totalidade um poema de grito de socorro pela escravatura a que o povo moçambicano estava envolvido.

África

Amam-me com a única verdade dos seus evangelhos
a mística das suas missangas e da sua pólvora
a lógica das suas rajadas de metralhadora
e enchem-me de sons que não sinto
das canções das suas terras
que não conheço.
 

Em meus lábios grossos fermenta
a farinha do sarcasmo que coloniza minha Mãe África
e meus ouvidos não levam ao coração seco
misturada com o sal dos pensamentos
a sintaxe anglo-latina de novas palavras.

 

O segundo poema em análise faz referência não só a escravatura, mas também a evangelização, onde o autor descreve a forma agressiva com que foi introduzido o evangelho, o choque cultural a que a Mãe África foi submetida em que se pode ver nos versos em que o autor fala da cultura do colonizador incutida na dos colonizados, uma vez que este povo aquando da evangelização já tinha a sua cultura e que não foi respeitada. Portanto, o colonizado foi obrigado a abandonar as suas raízes e inculturar-se. O colonizador ensinava a sua cultura a sua música, a sua dança, os seus heróis, dos seus amuletos, dos seus vinhos, a glória dos seus monumentos de pedra.

E ao som másculo dos tantãs tribais o Eros
do meu grito fecunda o húmus dos navios negreiros…
E ergo no equinócio da minha Terra
o moçambicano rubi do nosso mais belo canto xi-ronga
e na insólita brancura dos rins da plena Madrugada
a necessária carícia dos meus dedos selvagens
é a tácita harmonia de azagaias no cio das raças
belas como altivos falos de ouro
erectos no ventre nervoso da noite africana.

 

Na última estrofe do poema o sujeito poético demonstra um sentimento melancólico de saudade de sua cultura, da sua vida “selvagem”, das suas canções e da sua terra.

 

Noémia de Sousa, como autêntica pioneira da Literatura Moçambicana (como assim sempre foi considerada) preconiza - no seu percurso literário - a revolução como único meio de modificar as estruturas sociais que assolam a terra moçambicana.   Sempre, e desde muito cedo, pretendeu que o seu povo avançasse uno, em coletivo, em direção a um futuro que alterasse os eixos em que se fundamentava a atitude do homem, mas sem nunca fazer a apologia da desumanização. Afirma-se, acima de tudo, africana e aposta fortemente na divulgação dos valores culturais moçambicanos.

As propostas essenciais da sua expressão literária vão do desencanto quotidiano, de uma certa amargura, de uma certa raiva, até ao grito dolorido, até ao orgulho racial, até ao protesto altivo que contém a revolta contra cinco séculos de humilhação. A grande base do texto de Noémia de Sousa está centrada na eterna dicotomia "nós/outros" - "nós", os perfeitamente africanos; os "outros", as gentes estranhas, os que chegaram em África, os colonizadores.

Negra
Gentes estranhas, com seus olhos cheios doutros mundos
quiseram cantar teus encantos
para elas só de mistérios profundos,
de delírios e feitiçarias.
Teus encantos profundos de África

Mas não puderam.
Em seus formais e rendilhados cantos,
ausentes de emoção e sinceridade,
quedaste-te longínqua, inatingível,
virgem de contactos mais fundos.
E te mascararam de esfinge de ébano, amante sensual,
jarra etrusca, exotismo tropical,
demência, atracção, crueldade,
animalidade, magia...
e não sabemos quantas outras palavras vistosas e vazias.
 

Noémia de Sousa fala do orgulho de pertencer à África por parte dos africanos. E por esse mesmo motivo vem afirmar que terão obrigatoriamente de ser os filhos a cantar essa sua mãe-terra (que tanto amam e sentem) - e cantar África tinha forçosamente que ser entendido por oposição à maneira de cantar do colonizador.  

No seu poema, o "eu" de Noémia de Sousa é entendido como um "coletivo", um povo inteiro que quer ter palavra - o povo moçambicano. Desta forma, a escritora assume-se como porta-voz daquele povo que é o seu e, dirigindo-se à terra-mãe que os acolhe e protege, ora canta a sua vida, ora lhe pede perdão pela alienação demonstrada ao longo de tanto tempo, ora (mesmo) lhe promete a rápida e definitiva devolução do seu direito a uma vida própria, autêntica.

Toda a sua produção é marcada pela presença constante das raízes profundamente africanas, abrindo os caminhos da exaltação da Mãe-África, da glorificação dos valores africanos, do protesto e da denúncia. 

Referência bibliográfica

1. CRAVEIRINHA, José. Noêmia de Sousa. In: LARANJEIRA, Pires. Negritude Africana de Língua Portuguesa. Textos de Apoio (1947-1963). Coimbra: Ângelus Novus, 2000. 

2. MENDONÇA, Fátima. Moçambique, lugar para a poesia. In: SOUSA, Noémia de. Sangue negro. Maputo: AEMO, 2001.
NOA, Francisco. A metafísica do grito. In: SOUSA, Noémia de. Sangue negro. Maputo: AEMO, 2001.

3. SCHMIDT, Simone Pereira. Rotas (trans)atlânticas na poesia africana do tempo colonial: o caso Noémia de Sousa. Abril (Niterói), v. 4, p. 23-30, 2011.

4.SILVA, Assunção de Maria Sousa e. . Memória e resistência na poesia de Noémia de Sousa e Esmeralda Ribeiro. In: C. T. SECCO, C. L. R..; JORGE, S. R.; SILVA, T. S.G.. (Org.). Pensando África - III Encontro de Professores de Literaturas Africanas. 1ª ed., Rio de Janeiro:  2008, v. 1.