A ENCRUZILHADA DA INCLUSÃO: ADOECIMENTO DOCENTE NO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO FRENTE À PRECARIEDADE ESTRUTURAL E LACUNAS NA FORMAÇÃO
Por Júlio Henrique Domingues de Freitas | 22/07/2025 | EducaçãoA ENCRUZILHADA DA INCLUSÃO: ADOECIMENTO DOCENTE NO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO FRENTE À PRECARIEDADE ESTRUTURAL E LACUNAS NA FORMAÇÃO
Autor: Júlio Henrique Domingues de Freitas
Supervisor Escolar, Graduado em Direito, Pedagogia e História
Resumo
Este artigo analisa a relação entre o adoecimento de professores que atuam no Atendimento Educacional Especializado (AEE) e as condições de trabalho marcadas pela precariedade estrutural e lacunas na formação docente. Por meio de revisão bibliográfica, explora-se o arcabouço legal e conceitual da educação inclusiva e do AEE, as teorias sobre precarização do trabalho e saúde docente, e os desafios da formação profissional. A análise evidencia que a falta de recursos materiais, infraestrutura inadequada e formação insuficiente ou desconectada da prática sobrecarregam os professores, gerando estresse, ansiedade e Burnout. Discutem-se as implicações desse cenário para a qualidade da inclusão e a saúde dos educadores, apontando como caminhos para superação o investimento em infraestrutura, a reforma da formação inicial e continuada (com ênfase na prática e na qualificação dos formadores), a valorização profissional e a implementação de políticas de bem-estar docente. Conclui-se que o enfrentamento do adoecimento docente é indissociável da garantia de condições dignas de trabalho e formação qualificada, sendo essencial para a efetivação de uma educação inclusiva.
Palavras-chave: Atendimento Educacional Especializado; Adoecimento Docente; Educação Inclusiva; Formação de Professores; Condições de Trabalho.
1 INTRODUÇÃO
A educação inclusiva representa um paradigma fundamental nas sociedades contemporâneas, refletindo um compromisso ético e legal com a equidade e o direito universal à educação. No Brasil, marcos legais como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9.394/96) e, mais especificamente, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) e o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), consolidam a obrigatoriedade da matrícula de todos os estudantes, independentemente de suas condições, na rede regular de ensino. Nesse cenário, o Atendimento Educacional Especializado (AEE) emerge como um serviço essencial, concebido para eliminar barreiras e promover a plena participação e aprendizagem dos alunos público-alvo da educação especial – aqueles com deficiência, Transtornos do Espectro Autista (TEA) e altas habilidades/superdotação. O AEE, ofertado de forma complementar ou suplementar à escolarização, preferencialmente em Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) no contraturno, visa desenvolver estratégias e recursos pedagógicos e de acessibilidade que atendam às necessidades específicas desses estudantes, garantindo seu acesso ao currículo.
Contudo, a implementação efetiva do AEE e a consolidação de uma cultura verdadeiramente inclusiva nas escolas brasileiras deparam-se com inúmeros desafios, criando um hiato significativo entre as diretrizes normativas e a realidade cotidiana vivenciada por gestores, professores e alunos. A nobre intenção de garantir uma educação de qualidade para todos frequentemente esbarra em obstáculos complexos que transcendem a esfera pedagógica, adentrando o campo das condições de trabalho e da saúde dos profissionais da educação. É nesse contexto que se situa a problemática central deste artigo: a crescente evidência do adoecimento docente no âmbito do AEE, fenômeno intrinsecamente ligado às condições precárias de infraestrutura e às lacunas persistentes na formação profissional.
A precarização estrutural manifesta-se na falta de materiais pedagógicos adaptados, na inadequação dos espaços físicos das SRM, na ausência de tecnologias assistivas essenciais e, por vezes, na insuficiência de profissionais de apoio. Somada a isso, a questão da formação docente revela-se crítica. Muitos professores que atuam no AEE ou em salas regulares com alunos incluídos carecem de uma formação inicial e continuada robusta e específica, que os prepare adequadamente para lidar com a diversidade de demandas e especificidades do público da educação especial. A crítica estende-se, inclusive, à qualificação dos próprios formadores, questionando-se se possuem a vivência prática necessária para instrumentalizar os professores para os desafios reais da sala de aula inclusiva. Essa combinação de fatores – falta de recursos e suporte material, aliada a uma formação insuficiente ou desconectada da prática – configura um cenário de sobrecarga, estresse e frustração para os docentes.
Diante dessa encruzilhada, este artigo tem como objetivo analisar a complexa relação entre a precariedade estrutural das escolas, as lacunas na formação (inicial e continuada) de professores para o AEE e o consequente processo de adoecimento desses profissionais. Argumenta-se que o adoecimento docente no contexto da educação especial não pode ser compreendido como um problema individual, mas sim como um sintoma de falhas sistêmicas que comprometem tanto o bem-estar dos educadores quanto a própria efetividade da política de inclusão. Para tanto, este trabalho estrutura-se a partir de uma revisão bibliográfica, explorando o referencial teórico sobre educação inclusiva, AEE e saúde do trabalhador docente. Em seguida, aprofunda a análise sobre a precariedade estrutural e as deficiências formativas, correlacionando-as com os relatos e estudos sobre adoecimento. Por fim, discute as implicações desse cenário e aponta possíveis caminhos para a superação dos desafios, concluindo com uma reflexão crítica sobre a urgência de políticas públicas e práticas de gestão escolar que garantam condições dignas de trabalho e formação qualificada, visando a construção de um ambiente educacional verdadeiramente inclusivo e saudável para todos.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
Este capítulo dedica-se a fundamentar teoricamente a discussão sobre o adoecimento docente no contexto do Atendimento Educacional Especializado (AEE), explorando os conceitos centrais de educação inclusiva, as especificidades do AEE, as condições de trabalho docente e a crucial questão da formação profissional, interligando-os ao fenômeno do adoecimento.
2.1 Educação Inclusiva e o Atendimento Educacional Especializado (AEE)
A transição de um modelo educacional segregacionista para uma perspectiva inclusiva representa uma mudança paradigmática profunda, ancorada em princípios de direitos humanos e justiça social. A educação inclusiva, conforme preconizada por documentos internacionais como a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e consolidada na legislação brasileira, defende que todos os alunos, sem exceção, devem aprender juntos, sempre que possível, independentemente de quaisquer dificuldades ou diferenças que possam ter. Isso implica não apenas garantir o acesso, mas assegurar a permanência, a participação e a aprendizagem de todos no ensino regular, exigindo transformações significativas nas culturas, políticas e práticas escolares (Mantoan, 2003; Ainscow, 2009).
Nesse contexto, o Atendimento Educacional Especializado (AEE) é instituído pela Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008) como um conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos organizados institucional e continuamente. Seu objetivo primordial não é substituir o ensino regular, mas sim complementá-lo ou suplementá-lo, eliminando as barreiras que impedem a plena participação dos alunos público-alvo da educação especial. Conforme o Decreto nº 7.611/2011, o AEE deve prover condições de acesso, participação e aprendizagem, garantir a transversalidade das ações da educação especial no ensino regular, fomentar o desenvolvimento de recursos didáticos e pedagógicos acessíveis e assegurar a continuidade dos estudos (Brasil, 2011). A operacionalização do AEE frequentemente ocorre nas Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), espaços dotados (ou que deveriam ser) de equipamentos, mobiliários e materiais específicos.
Entretanto, a efetivação do AEE enfrenta desafios consideráveis. Estudos apontam dificuldades relacionadas à identificação das necessidades dos alunos, à elaboração de planos de atendimento individualizados, à articulação entre o professor do AEE e o professor da sala comum, e à própria disponibilização de recursos e estrutura adequada (Glat & Pletsch, 2011; Mendes, 2010). A complexidade inerente ao AEE demanda um suporte institucional robusto e profissionais qualificados, aspectos que frequentemente se mostram deficientes na prática.
2.2 Condições de Trabalho, Precarização e Adoecimento Docente
A docência é uma profissão historicamente marcada por desafios e, nas últimas décadas, tem sido associada a crescentes níveis de mal-estar e adoecimento. Fatores como baixos salários, desvalorização social, excesso de burocracia, indisciplina discente, violência escolar e, sobretudo, condições precárias de trabalho contribuem para um quadro de sofrimento psíquico entre os educadores (Esteve, 1999; Codo, 1999).
A precarização do trabalho docente manifesta-se de diversas formas: intensificação da jornada de trabalho, salas de aula superlotadas, falta de materiais didáticos e de infraestrutura adequada, contratos temporários e instabilidade empregatícia. Esse cenário, agravado por políticas educacionais que muitas vezes impõem metas e cobranças sem oferecer o suporte necessário, cria um ambiente propício ao desenvolvimento de estresse crônico, ansiedade, depressão e, notadamente, a Síndrome de Burnout (Maslach & Leiter, 2016; Carlotto, 2002).
No contexto da educação inclusiva e do AEE, esses fatores de precarização podem ser intensificados. A responsabilidade de garantir a inclusão e o aprendizado de alunos com necessidades complexas, muitas vezes sem os recursos adequados ou o apoio necessário, gera uma sobrecarga física e emocional significativa. A falta de estrutura física adaptada, a carência de materiais pedagógicos específicos e a ausência de profissionais de apoio (como intérpretes de Libras, cuidadores, etc.) impõem barreiras adicionais ao trabalho docente, aumentando a sensação de impotência e frustração (Voltolini, 2011; Pimenta & Lima, 2006).
2.3 O Papel da Formação Docente (Inicial e Continuada)
A formação de professores é um pilar fundamental para a qualidade da educação e, no contexto da inclusão, sua importância é ainda mais acentuada. Uma formação adequada deve instrumentalizar o professor não apenas com conhecimentos teóricos sobre as diferentes deficiências e transtornos, mas também com estratégias pedagógicas diversificadas, conhecimento sobre tecnologias assistivas e habilidades para o trabalho colaborativo (Glat & Blanco, 2007).
Contudo, a realidade da formação docente no Brasil, tanto inicial quanto continuada, frequentemente apresenta lacunas significativas no que tange à educação especial e inclusiva. Muitos currículos de Pedagogia e licenciaturas oferecem uma abordagem superficial do tema, e os programas de formação continuada nem sempre conseguem suprir essa defasagem ou conectar-se efetivamente com as demandas práticas da sala de aula (Michels, 2011; Garcia, 2013). A crítica, como mencionado na introdução, estende-se à qualificação dos formadores, cuja falta de experiência prática pode comprometer a relevância e aplicabilidade dos treinamentos.
A ausência de uma formação sólida e continuada deixa os professores despreparados para enfrentar os desafios do AEE e da sala de aula inclusiva. Isso não apenas compromete a qualidade do atendimento oferecido aos alunos, mas também contribui significativamente para o estresse e o adoecimento docente. O sentimento de não saber como agir, a insegurança em relação às próprias práticas e a dificuldade em lidar com a diversidade de necessidades podem gerar angústia e minar a autoconfiança profissional, tornando o professor mais vulnerável ao esgotamento (Jesus, 2008).
Portanto, a análise do adoecimento docente no AEE requer a compreensão da interação complexa entre as exigências da educação inclusiva, as condições materiais e estruturais do trabalho e a qualidade da formação profissional oferecida aos educadores. É na intersecção desses elementos que residem as raízes do problema abordado neste artigo.
2.3 Análise da Precariedade Estrutural e Lacunas na Formação: Vetores do Adoecimento Docente no AEE
A transposição dos ideais da educação inclusiva para a prática cotidiana das escolas brasileiras revela um cenário complexo, onde a boa vontade e o esforço individual dos educadores frequentemente colidem com barreiras sistêmicas. A análise aprofundada da realidade do Atendimento Educacional Especializado (AEE) evidencia que a precariedade estrutural e as lacunas na formação docente não são meros obstáculos operacionais, mas sim fatores determinantes que contribuem diretamente para o processo de adoecimento dos professores envolvidos.
2.4 A Materialidade da Precariedade: Estrutura Física e Recursos Insuficientes
A efetividade do AEE está intrinsecamente ligada à disponibilidade de um ambiente físico adequado e de recursos materiais e tecnológicos específicos. As Salas de Recursos Multifuncionais (SRM), concebidas como espaços privilegiados para este atendimento, muitas vezes carecem das condições mínimas necessárias. Relatos e pesquisas (Glat & Pletsch, 2011; Mendes, 2010) apontam para a insuficiência de mobiliário adaptado, a falta de equipamentos de informática com softwares acessíveis, a escassez de jogos e materiais pedagógicos específicos para as diferentes necessidades (deficiência visual, auditiva, intelectual, TEA, etc.) e a ausência ou inadequação de tecnologias assistivas que poderiam facilitar significativamente a comunicação e a aprendizagem.
A falta desses recursos básicos impõe uma sobrecarga considerável ao professor do AEE. Ele se vê obrigado a improvisar, a adaptar materiais de forma artesanal – demandando tempo e energia que poderiam ser dedicados ao planejamento e atendimento direto aos alunos – ou, em muitos casos, a trabalhar sem as ferramentas essenciais. Essa carência material não apenas limita as possibilidades pedagógicas, mas também gera um sentimento de frustração e impotência, pois o professor percebe que não consegue oferecer o suporte ideal aos seus alunos devido a limitações externas ao seu fazer pedagógico. Além disso, a inadequação do espaço físico, como salas pequenas, mal iluminadas, sem ventilação adequada ou com barreiras arquitetônicas, contribui para um ambiente de trabalho desconfortável e estressante, impactando negativamente o bem-estar físico e mental.
A ausência de profissionais de apoio em número suficiente (intérpretes de Libras, auxiliares de vida escolar, etc.) agrava ainda mais o quadro, sobrecarregando o professor do AEE com funções que extrapolam suas atribuições pedagógicas e intensificando sua jornada de trabalho.
2.5 Lacunas na Formação: O Despreparo Diante da Complexidade
Paralelamente à precariedade estrutural, as deficiências na formação docente constituem um dos pilares do adoecimento no contexto do AEE. A legislação prevê a necessidade de formação específica para atuar no AEE, mas a realidade demonstra que muitos profissionais chegam a essa função sem o preparo adequado (Michels, 2011; Garcia, 2013). A formação inicial, nos cursos de Pedagogia e licenciaturas, muitas vezes aborda a educação especial de forma superficial, não fornecendo aos futuros professores o arcabouço teórico-prático necessário para lidar com a diversidade do público-alvo do AEE.
Os programas de formação continuada, por sua vez, nem sempre conseguem suprir essa lacuna de forma eficaz. Frequentemente, são cursos de curta duração, com metodologias excessivamente teóricas e descoladas da realidade escolar. A crítica levantada sobre a falta de experiência prática dos próprios formadores é pertinente: como capacitar um professor para os desafios concretos da inclusão se o formador nunca vivenciou essa realidade? Essa desconexão entre teoria e prática resulta em formações que, embora bem-intencionadas, oferecem poucas ferramentas aplicáveis ao cotidiano do AEE, deixando o professor inseguro e despreparado para manejar situações complexas, adaptar currículos, utilizar tecnologias assistivas ou desenvolver estratégias pedagógicas eficazes para cada necessidade específica.
Esse despreparo gera um ciclo vicioso de ansiedade e estresse. O professor sente-se pressionado a atender às expectativas da política de inclusão e às necessidades dos alunos, mas percebe-se sem as competências necessárias para tal. O medo de errar, a dificuldade em estabelecer vínculos e promover a aprendizagem, e a sensação de isolamento (muitas vezes o professor do AEE trabalha de forma solitária) contribuem para o desgaste emocional e o desenvolvimento de quadros de Burnout (Carlotto, 2002; Voltolini, 2011).
2.6 A Interconexão e o Adoecimento
É crucial compreender que a precariedade estrutural e as lacunas na formação não são fatores isolados, mas sim elementos que se interconectam e potencializam seus efeitos negativos sobre a saúde docente. Um professor bem formado, mas sem recursos materiais, sentir-se-á frustrado e limitado. Um professor com acesso a recursos, mas sem a formação adequada, sentir-se-á inseguro e incapaz de utilizá-los plenamente. A combinação de ambos os déficits cria um cenário particularmente adverso.
A pressão por resultados, a responsabilidade pela inclusão de alunos com necessidades complexas, a falta de reconhecimento e apoio institucional, somadas à carência de estrutura e formação, configuram um ambiente de trabalho tóxico. O adoecimento, manifestado por sintomas físicos (dores de cabeça, problemas gastrointestinais, fadiga crônica) e psíquicos (ansiedade, depressão, irritabilidade, esgotamento emocional), surge como uma resposta quase inevitável a essa conjuntura. Ignorar essa realidade é perpetuar um ciclo que compromete não apenas a saúde dos educadores, mas a própria sustentabilidade e qualidade da educação inclusiva no país.
2.7 Discussão: Implicações e Caminhos para a Superação
A análise precedente demonstrou a intrínseca e preocupante relação entre a precariedade estrutural das escolas, as lacunas na formação docente para o Atendimento Educacional Especializado (AEE) e o consequente adoecimento dos professores que atuam nesse contexto. As implicações desse cenário são profundas e multifacetadas, extrapolando a saúde individual do educador e comprometendo a própria efetividade da política de educação inclusiva no Brasil.
Uma das implicações mais diretas é a fragilização da qualidade do AEE oferecido. Professores sobrecarregados, desmotivados, inseguros devido à falta de formação e limitados pela ausência de recursos dificilmente conseguirão desenvolver um trabalho pedagógico que atenda plenamente às complexas necessidades dos alunos público-alvo da educação especial. A falta de estrutura e preparo pode levar a práticas improvisadas, que não exploram todo o potencial do estudante, ou, no pior dos casos, a um atendimento meramente protocolar, que não promove a real inclusão e aprendizagem. Isso perpetua um ciclo onde, apesar da matrícula garantida, o direito a uma educação de qualidade adaptada às suas necessidades não é plenamente assegurado a esses alunos.
Outra implicação grave reside no impacto sobre a própria força de trabalho docente. O adoecimento crônico, a Síndrome de Burnout e o sofrimento psíquico podem levar ao absenteísmo, a licenças médicas prolongadas e, em última instância, ao abandono da profissão ou da área de educação especial. Isso gera uma alta rotatividade de profissionais, prejudicando a continuidade do trabalho pedagógico e a construção de vínculos com os alunos, além de representar um custo social e econômico significativo para o sistema de saúde e para a própria educação, que perde profissionais experientes ou potenciais.
Ademais, a persistência desse quadro de precariedade e adoecimento docente envia uma mensagem contraditória sobre o compromisso do país com a inclusão. Enquanto o discurso oficial e a legislação avançam, a falta de investimento concreto em estrutura e formação revela uma desvalorização do trabalho docente na educação especial e, por extensão, dos próprios alunos atendidos. Isso pode minar a confiança da comunidade escolar e das famílias na proposta inclusiva, reforçando estigmas e resistências.
Diante desse diagnóstico preocupante, a superação dos desafios exige uma abordagem sistêmica e coordenada, envolvendo diferentes esferas de atuação. Não se trata de buscar culpados individuais, mas de reconhecer as falhas estruturais e políticas que sustentam o problema. Alguns caminhos possíveis incluem:
1. Investimento Robusto e Contínuo em Infraestrutura: É fundamental que as políticas públicas garantam financiamento adequado e específico para a estruturação das Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) e para a aquisição de materiais pedagógicos, equipamentos e tecnologias assistivas atualizados e diversificados. Isso requer planejamento orçamentário consistente e mecanismos de controle para assegurar que os recursos cheguem efetivamente às escolas e sejam aplicados de forma adequada às necessidades do AEE.
2. Reforma Curricular e Qualificação da Formação Docente: Os currículos dos cursos de Pedagogia e licenciaturas precisam ser revistos para incorporar, de forma transversal e aprofundada, os conhecimentos teóricos e práticos necessários para a educação inclusiva e o AEE. A formação continuada deve ser repensada, priorizando modelos mais longos, processuais, centrados na prática reflexiva e, crucialmente, ministrados por formadores com comprovada experiência no chão da escola inclusiva. Parcerias entre universidades e redes de ensino podem ser estratégicas para alinhar a formação às demandas reais.
3. Valorização Profissional e Condições de Trabalho Dignas: A valorização do professor do AEE passa por salários justos, planos de carreira atrativos, garantia de tempo para planejamento e estudo dentro da jornada de trabalho, e redução da sobrecarga. Isso inclui assegurar a presença de profissionais de apoio em número suficiente e com formação adequada.
4. Fortalecimento da Gestão Escolar Democrática e Colaborativa: A gestão escolar tem um papel crucial em criar um ambiente de trabalho acolhedor e colaborativo. Isso envolve ouvir as demandas dos professores do AEE, incluí-los nos processos decisórios, promover a articulação efetiva entre o AEE e o ensino regular, e buscar soluções conjuntas para os desafios estruturais e pedagógicos.
5. Políticas de Saúde e Bem-Estar Docente: É urgente implementar programas e políticas voltadas para a saúde mental e o bem-estar dos professores, oferecendo suporte psicológico, espaços de escuta e ações de prevenção ao estresse e ao Burnout, especialmente para aqueles que atuam em contextos mais desafiadores como o AEE.
A superação da encruzilhada entre inclusão e adoecimento docente no AEE não é uma tarefa simples, mas é um imperativo ético e social. Requer um compromisso político genuíno com a educação inclusiva, que se traduza em investimentos concretos e em ações coordenadas para garantir que tanto os alunos quanto os professores tenham seus direitos e sua dignidade respeitados.
3 CONCLUSÃO
Este artigo buscou desvelar a complexa e preocupante intersecção entre os desafios inerentes ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), a persistente precariedade estrutural das instituições escolares brasileiras, as significativas lacunas na formação docente e o alarmante fenômeno do adoecimento dos professores que atuam na linha de frente da educação inclusiva. A análise empreendida, fundamentada em referenciais teóricos e na observação das condições reais de trabalho, corrobora a tese de que o sofrimento e o esgotamento vivenciados por esses profissionais não podem ser reduzidos a questões de ordem individual ou vocacional. Pelo contrário, emergem como sintomas de um sistema que, apesar dos avanços legais e discursivos em prol da inclusão, falha em prover o suporte material, pedagógico e formativo necessário para sua efetiva concretização.
A "encruzilhada da inclusão", título que norteia este trabalho, reflete precisamente o dilema enfrentado: de um lado, o imperativo ético e legal de garantir o direito de todos à educação em ambientes regulares; de outro, a realidade de um sistema que impõe aos seus professores a responsabilidade por essa inclusão sem lhes oferecer as condições mínimas para exercê-la de forma saudável e eficaz. A falta de recursos nas Salas de Recursos Multifuncionais, a inadequação dos espaços físicos, a carência de tecnologias assistivas e, sobretudo, uma formação que frequentemente se mostra insuficiente e desconectada da prática, criam um ambiente de trabalho adverso, gerador de estresse, ansiedade e Burnout.
As implicações desse quadro, como discutido, são nefastas: comprometem a qualidade do atendimento aos alunos público-alvo da educação especial, fragilizando seus processos de aprendizagem e participação; minam a saúde e o bem-estar dos educadores, levando ao absenteísmo e ao abandono da profissão; e, em última análise, questionam a própria sustentabilidade e credibilidade da política de educação inclusiva. Ignorar o adoecimento docente é, portanto, ignorar um obstáculo central à construção de uma escola verdadeiramente para todos.
A superação dessa encruzilhada exige mais do que discursos bem-intencionados ou ações paliativas. Requer um compromisso político efetivo, traduzido em investimentos consistentes e contínuos na estrutura física e pedagógica das escolas, com foco especial nas necessidades do AEE. Demanda uma profunda reestruturação da formação inicial e continuada de professores, garantindo que todos os educadores, e não apenas os especialistas, desenvolvam as competências necessárias para lidar com a diversidade, e que essa formação seja ministrada por profissionais com vivência prática relevante. Exige, ainda, a implementação de políticas de valorização docente que contemplem salários dignos, condições de trabalho adequadas e programas específicos de apoio à saúde mental.
Recomenda-se, portanto, que gestores públicos e escolares priorizem o diálogo com os professores do AEE, mapeando as necessidades estruturais e formativas e buscando soluções conjuntas. Que as instituições de ensino superior revisem seus currículos e metodologias, fortalecendo a preparação para a educação inclusiva. E que a sociedade como um todo reconheça a complexidade do trabalho docente no contexto da inclusão e cobre dos governantes as ações necessárias para garantir que a nobre meta de uma educação inclusiva e de qualidade não seja alcançada às custas da saúde e do bem-estar de seus principais agentes: os professores.
Em suma, a construção de uma escola inclusiva passa, necessariamente, pela construção de um ambiente de trabalho saudável e por uma formação docente qualificada. Somente enfrentando de forma séria e sistêmica a precariedade estrutural e as lacunas formativas será possível romper o ciclo de adoecimento e garantir que a inclusão seja, de fato, um caminho de desenvolvimento e emancipação para todos os envolvidos.
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