A EMANCIPAÇÃO HUMANA COMO DEVER HISTÓRICO: AS LIÇÕES DA COMUNA DE PARIS 

 

MARX, Karl. O que é a Comuna? In: FERNANDES, Florestan (Org.). Marx, Engels: história. São Paulo: Ed. Ática, 1983. pp. 293-307. (Coleção Grandes Cientistas Sociais: 36)

 

            Karl Heinrich Marx nasceu em cinco de maio de 1818 em Trier, Renania (então parte da antiga Prússia), ingressou na Universidade Direito em Bonn no ano de 1835, seguindo os passos  de seu pai Hirshel Marx, advogado, relativamente, bem sucedido, de origem judaica, que, no entanto, abandonara a religião e convertera-se ao protestantismo quando a dominação prussiana tornou difícil a vida dos judeus em Trier.

            Em 1836, Marx transfere-se para a Universidade de Berlim a fim de dar continuidade aos seus estudos em Direito, porém, o contato com a vida cosmopolita que constratava com o seu anterior provincianismo, acaba por perder o interesse pelo Direito e passa a estudar filosofia, ocasião esta em que se reconhece uma guinada em sua vida intelectual por conta do contato com o pensamento dos jovens hegelianos de esquerda e pelo inicio os estudos da filosofia de Georg W. F. Hegel.

            O pensador prussiano estava para ser nomeado encarregado de um curso de filosofia em 1842 “[...] quando o movimento político, que surgiu após a morte de Frederico III, o desviou para outra carreira” (ENGELS, 1943, 5). O que indica Engels nesta passagem biográfica publicada em 1878 no Volkskalender, é a entrada de Marx no outono daquele ano na direção do periódico Rheinische Zeitung (Gazeta Renana) a convite da burguesia liberal (“os Camphausen, Hansemann e outros”); o jornal circulou até 1843, quando o governo prussiano impediu sua continuidade.

            Em 1843, casa-se com Jenny Von Westphalen  e decide, profundamente aborrecido com a falta de possibilidade de se manifestar politicamente na Alemanha, mudar-se para Paris, onde escreve os Manuscritos Econômicos-Filosóficos de 1844, considerado por especialistas como uma obra seminal no entendimento do percurso teórico do autor iniciado com a Critica do Direito de Hegel entre os anos de 1843 e 1844, na qual Marx critica as noções de dialética, direito e alienação trabalhados na filosofia hegeliana.

            Segundo Rodrigues (2011), esta inclinação teórica de Marx deve-se a efervescência cultural e política a que o autor é introduzido em Paris, por conta de uma proximidade maior com o proletariado francês organizado e com o pensamento de Ludwig Feuerbach, ou seja, o contexto francês incita-o a  uma perspectiva materialista da história.

            Entre os anos de 1843 e 1844 Marx publica Sobre a Questão Judaica, uma reflexão sobre o processo de emancipação civil e política baseada numa critica aos estudos do “jovem hegeliano” Bruno Bauer. É nesta obra que Marx esboça sua teoria sobre a alienação e acerca do materialismo histórico. Em Sobre a Questão Judaica o autor compreende, conforme Assunção (2005), que a emancipação política é a forma mais alta de emancipação dentro da ordem atual, mas não a forma mais alta de emancipação humana em geral, a socióloga identifica com isto uma evolução teórica em Marx em relação aos seus escritos precedentes, ocorre a superação de um humanismo abstrato no qual ele buscava a perfectibilização política da sociedade burguesa pelo reconhecimento de que o homem é membro de uma classe e que a esfera determinante do ser social esta na sociabilidade, é a descoberta da determinação ontológica negativa da politicidade (ASSUNÇÃO, 2008, 22) ou conforme Antonio Rago Filho (2011) nos diz, é o reconhecimento de que o materialismo empiricista falhava ao não considerar a atividade humana sensível, isto é, a práxis.

            Este acerto de contas com o passado (RODRIGUES, 2011), que ainda seriam marcados pela publicação de A Ideologia Alemã e A Sagrada Família em parceria com Friedrich Engels em 1845 que correspondem a uma critica severa e profunda a filosofia alemã da época, Karl Marx intercala com publicações de caráter político no periódico Avant, onde o ataque ao governo prussiano é frequente, não a toa, este por intermédio do ministério Guizot o expulsa da França, de forma que, “com o novo exílio, [Marx] se muda com a família para Bruxelas, onde logo se torna profundamente comprometido com o movimento operário local” (RODRIGUES, 2011, 17) e por onde irá fundar uma Associação Operária Alemã e entrar em 1847 “[...] para a Liga dos Comunistas, sociedade secreta que existia de longa data” (ENGELS, 1943, 9).

            Entre os anos de 1847 e 48 os amigos Marx e Engels redigem o Manifesto Comunista a pedido da Liga Comunista, em que se explicitariam os objetivos da Liga e se invocariam os trabalhadores do mundo para uma luta comum contra o capital. Em meio à Primavera do Povos, os levantes de 1848, Marx é expulso de Bruxelas e retorna para Colônia na Alemanha, onde funda com Engels a Nova Gazeta Renana, periódico que, conforme o próprio Engels (1943), sustentava o ponto de vista do proletariado, na qual redige criticas ao governo  local. Sendo novamente expulso da Alemanha, por conta de seu ativismo político, Marx retorna para Paris, onde fica por pouco tempo, visto que os movimentos revolucionários eram vencidos pela Europa, Marx e família tiveram mais uma vez de se mudar, desta vez para Londres no ano de 1849, donde não mais saiu.  Lá, o “Mouro”, “[...] vivencia de perto a existência de uma classe trabalhadora verdadeiramente desenvolvida e de um modo de produção realmente capitalista” (RODRIGUES, 2011, 17).

            É em Londres que Marx irá redigir seus textos marcadamente políticos, como o Dezoito Brumário de Luís Bonaparte de 1852 e Guerra Civil na França de 1872; no primeiro pesa a antológica citação:

Os homens fazem sua própria História, mas não a fazem num único bloco, nas condições escolhidas por eles, e sim em condições imediatamente preestabelecidas, dadas e herdadas. A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo nos cérebros dos vivos [...] A revolução social do século XIX não pode tirar sua poesia do passado, apenas do futuro [...]”

(MARX apud LÖWY, 2011, 62)

            Marxistas, de toda a sorte, poderiam supor disto que Marx já previa o evento de 1871, no entanto, o autor jamais faria menção a eventos futuros, sua análise requeria um profundo conhecimento da realidade em questão, previsões eram dignas da ciência burguesa e incompatíveis com a literatura operária, “O Dezoito Brumário permite captar a autonomia relativa do político e de suas representações” (LÖWY, 2011, 62).

            O segundo foi um discurso proferido no conselho da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a respeito dos êxitos e das perspectivas geradas pela Comuna de Paris (1871), mais tarde compilado com outros textos por Engels; iremos, a partir de agora, analisar mais acuradamente este pronunciamento.

            Segundo Michael Löwy (2011), este comunicado proferido na AIT é “um dos escritos políticos mais poderosos que Marx jamais escreveu” (id, ibid, 81), interessado em responder a uma pergunta que poderia soar simples, se a resposta não considerasse uma perspectiva operária e das intenções socialistas que permeavam o contexto político na década de 1870: “O que é a Comuna, essa esfinge que coloca o entendimento burguês ante uma prova tão dura?” (MARX, 1983, 293).

            O pensamento burguês, certamente, não se daria ao trabalho de compreender as motivações da classe laboriosa, que as levariam da emancipação econômica do trabalho à revolução social, não dariam a devida ciência à importância da revolução política empregada pela classe trabalhadora na manhã de 18 de março de 1871, a que Marx descreveu como o “Assalto aos céus”.

            Mas, enfim, o que era a Comuna?

            Marx não se rende a lugares comuns e como acertadamente percebe Boito Jr. (2011), “[...] a Comuna de Paris, embora não fosse socialista, continha, por ser um governo operário, em si mesma, o socialismo (id, ibid, 44) e isto não era pouco, para sua efêmera existência. De forma que, o comunicado discute as diferentes iniciativas sociais e políticas da Comuna e principalmente sua característica antiestatal, sentenciando que os trabalhadores não devem tomar a máquina do Estado, mas sim, destruí-la. Nos ensaios para a redação do comunicado Marx deixa bem claro quais eram as intenções da classe operária: “Foi uma revolução contra o próprio Estado, esse aborto aborto sobenatural da sociedade; foi uma tomada pelo povo e para o povo de sua própria vida social [...] [foi] uma revolução para acabar com esse terrível aparelho de dominação de classe” (MARX apud LÖWY, 2011, 84).

            Consideramos que vale a pena aos socialistas rever a Comuna, pois, nos interessa desconstruir o “mito socialista da Comuna” (BOITO JR., 2011, 42), sem perder a perspectiva operária da mesma, já que conforme nos indica Karl Marx (1983), diversas foram as iniciativas de proteção ao trabalho e aos pobres, mas só uma medida tinha um conteúdo socialista: a saber, que as fábricas abandonadas pelo proprietário seriam controladas pelos proprietários.

            Isto não é o suficiente para declarar que a Comuna foi um governo socialista, como tantos desejam, nem mesmo Marx pensara isso, pelo contrário, ele só afirmara que foi um governo operário, e conforme Boito Jr. (2011), dificilmente poderia ter sido. Já que o objetivo imediato da Comuna era depor um governo considerado de traição nacional e dar conta de uma tarefa democrática, que a Revolução de 1789 não havia dado conta, que era a laicização do Estado, transformações de tipo burguesa que, segundo F. Engels, serviriam para aplainar o terreno para a transformação socialista da velha sociedade.

            O que Marx procura indicar é o caráter político, novo, que a Comuna instaurou, antes de um economicismo vulgar que reduz a atuação do governo popular da Comuna, o pensador prussiano faz referência ao tipo de democracia que a Comuna estabeleceu, a saber:

Mandato imperativo, revogável pelos eleitores, eleição para os cargos administrativos do Estado, transferência de tarefas do Estado para a população trabalhadora organizada, dissolução do Exército permanente e criação de uma milícia operária, salário dos funcionários públicos igual ao salário médio dos operários (a Comuna foi “o governo mais barato” da história) etc.

(BOITO JR., 2011, 43)

            Marx, nos primeiros parágrafos de seu comunicado, esclarece-nos o que era o traidor governo Imperial e o quão vil eram suas ações para, afinal, sentenciar que “a antítese direta do Império era a Comuna” (MARX, 1983, 295), a Comuna era a forma definida de uma República que deveria acabar com a dominação de classe. Aqui reside sua importância, pois,

Quando a Comuna de Paris tomou a direção da Revolução em suas próprias mãos; quando pela primeira vez, simples trabalhadores  ousaram tocar o privilégio de governar de seus “superiores naturais” e, sob circunstâncias de dificuldade sem precedentes, executaram seu trabalho com discrição, consciência e eficácia [...] então o velho mundo se revolveu em convulsão de raiva ao ver a bandeira vermelha que, símbolo da República do Trabalho, tremulava sobre o prédio da Prefeitura.

(MARX, 1983, 300)

            A Comuna, por conta disto, havia “anexado” os trabalhadores do mundo inteiro e lhes dado a honra de morrer por uma causa imortal, por uma Paris livre dos vícios e das vicissitudes burguesas, uma Paris onde era seguro andar nas ruas, “e isso sem qualquer polícia” (MARX, 1983, 306).

            Este é o grande feito da Comuna Paris, sufocada e massacrada pela burguesia em 28 de maio de 1871, nos deixou os rumos a tomar em nome da emancipação humana, se lá a revolução não foi além da política, seus decretos ensejaram algo mais, que o tempo não foi capaz de nos mostrar, vislumbramos com a Revolução Russa de 1917 a aura internacionalista que emanava da Comuna e nós, socialistas, esperamos que a leitura deste comunicado de Karl H. Marx seja o fio condutor para uma outra sociedade possível, mais justa, em que os homens desenvolvam plenamente suas potencialidades.

 

 

BIBLIOGRAFIA

ASSUNÇÂO, Vânia Noeli F. Pandemonio de infâmias: classes sociais, estado e política nos estudos de Marx sobre o bonapartismo. São Paulo. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005. (Tese de Doutorado).

BOITO JR, Armando. Comuna republicana ou Comuna operária¿. PUC Viva, São Paulo, n. 40. ano 12. p. 39-44. jan-abr de 2011.

ENGELS, Friedrich. Marx. São Paulo: Edições Cultura, 1943. 48 p.

LÖWY, Michael. Política. In: RENAULT, Emmanuel; DUMÉNIL, Gérard; LÖWY, Michael. Ler Marx. São Paulo: Ed. Unesp, 2011. p. 11-102.

MARX, Karl. O que é a Comuna?. In: FERNANDES, Florestan. Marx Engels: história. São Paulo: Ed. Ática, 1983. p. 293-307.

RAGO FILHO, Antonio. Filosofia e história em Marx. Karl Marx, n. 01. p. 40-45. 2011.

RODRIGUES, Maysa. O legado de Marx. Karl Marx, São Paulo, n. 01. p. 14-23. 2011.