A educação do negro e a implantação de cotas, universidade inclusiva ou esmola social

Por Adriano Moraes | 22/09/2014 | Educação

A educação do negro e a implantação de cotas, universidade inclusiva ou esmola social. * Adriano Moraes – Sociólogo, Pesquisador das Religiões de Matriz Africana e Cultura Afro-brasileira, Especialista em Educação e Juventude. http://lattes.cnpq.br/1506910163721246.

 A educação do negro no Brasil carrega consigo os resquícios de um período escravocrata, que não levou em consideração os saberes trazidos por este povo quando de sua inserção a titulo de trabalhador braçal, dentro de um sistema econômico que visava tão somente o lucro capital do branco escravizador. Em outras palavras, o conhecimento dos povos negros (uma vez que a diáspora negra abarcou diferentes povos da nação africana) foi apagado, como se antes de sua escravização não tivessem produzido arte, cultura, ciência e demais saberes. Apagou-se uma história com vistas a dificultar a reação destes frente ao holocausto a que foram submetidos.

Durante décadas, o individuo negro foi obrigado a aceitar como nova forma de vida, o conceito eurocêntrico. Contudo, esta nova forma de vida não concedia ao ator negro o direito a educação formal. Leitura, escrita e acompanhamento escolar não faziam parte da nova estrutura social, ou ainda, da nova forma de viver no qual este povo foi brutalmente inserido. E tal fenômeno não se encerrou quando da libertação destes povos, ao contrário, não seria absurdo declarar aqui, que o fenômeno só fez piorar quando da libertação dos negros.

Pois que a partir dali o destino do negro estava por sua conta e risco, sem qualquer tipo de apoio, sem destino certo para reinicio de vida. Ou seja, pós-libertação, não houve, por parte do Estado, a preocupação de estruturar ações pontuais para capacitar a população negra de modo a inseri-la na cadeia produtiva, assim não é de se estranhar o resultado deste abandono nos dias atuais, as sequelas foram transportadas de geração para geração até alcançar os indivíduos negros deste século. Apesar de inegáveis avanços, nosso país tem um débito social com a população negra. Dentre estes, findar com o vácuo educacional existente entre brancos e negros, um vácuo que é hoje, mais do que nunca, espaço de disputa não só politica , mas de ideias.

Dados estatísticos nos ajudam a compreender tal afirmação: em 2008 a taxa de analfabetismo entre jovens negros de 15 anos era de 19% enquanto para os brancos na mesma faixa etária o analfabetismo era de 6,2% (Laboratório de análises econômicas, históricas, sociais e estatísticas de relações raciais, Universidade Federal do Rio de Janeiro) . O recorte da pesquisa acima, nos leva a questionamentos os mais diversos : como é possível, dentro de um mesmo modelo educacional, encontrarmos tamanha diferença entre negros e brancos ? por que os negros encontram maior dificuldade para se manter na escola ? É justo a criação de cotas para negros nas universidades ? Para encontrarmos as respostas, obrigatoriamente precisamos conhecer a história do negro. Conhecer a origem destes e seu genocídio local.

Como nosso foco neste artigo é a educação, deixaremos a história do holocausto negro para trabalho futuro. Contudo, mesmo na área educacional, todo pesquisador precisa fundamentalmente conhecer a história de seu objeto de estudo, o que explica as linhas iniciais desta matéria.

 Nesse sentido, é preciso lembrar, que no país, desigualdades curriculares (desde o ensino fundamental), norteiam e limitam o desenvolvimento educacional, de brancos e negros. No entanto não podemos esquecer que a educação dos negros sempre foi orientada para a manutenção do bem-estar das classes dominantes lugar onde gestou-se uma ética conservadora. E isto ajuda a compreender o receio dos indivíduos brancos, quando questionam a implantação de um racismo as avessas, no que concerne a implantação de cotas no sistema universitário.

Freeman, colabora : “Com efeito, a sociedade liberal-capitalista ocidental tem como uma de suas ideias-chave a noção de neutralidade estatal, que se expressa de diversas maneiras: neutralidade em matéria econômica, no domínio espiritual e na esfera intima das pessoas. Na maioria das nações pluriétnicas e pluriconfessionais, o abstencionismo estatal se traduz na crença de que a mera introdução, nos respectivos textos constitucionais, de princípios e regras asseguradores de uma igualdade formal perante a lei, seria suficiente para garantir a existência de sociedades harmônicas, onde seria assegurada a todos, independentemente de raça, credo, gênero ou origem nacional, efetiva igualdade de acesso ao que comumente se tem como conducente ao bem-estar individual e coletivo... ( in Ações afirmativas e combate nas américas, Brasilia/DF, 2007, pg.53).

Tal reflexão nos leva a concluir que o debate hoje travado sobre ações afirmativas, ou, cotas nas universidades, traz em seu cerne a questão sobre quem é sujeito de direito no Brasil. Fato, inteiramente relacionado a dificuldade em debater as relações raciais brasileiras.

Dados recentes, de diferentes estudos, concluem que somente 2% dos jovens negros, chegam aos cursos superiores, o que pode ser explicado pela defasagem em anos de estudos entre alunos negros e não-negros, durante a escola primária e secundária e lógico, chegando a desigualdade social. Assim podemos concluir que, as ações afirmativas teriam como objetivo, eliminar os “efeitos persistentes” – psicológicos, culturais e comportamentais – da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar.

 Figura também como meta das cotas a implantação de uma certa diversidade e de uma maior representatividade dos grupos minoritários nos mais diferentes ambientes públicos e privados.

Importante salientar que o debate sobre ações afirmativas já se fazia presente no seio do movimento negro desde a década de 30, onde se denunciava a ineficácia do mito da democracia racial ainda que apoiada no argumento de que racismo e discriminação derivam apenas da estrutura de classe. A realidade racial brasileira, foi explicitada durante os anos 80 e 90, através de mobilizações como o centenário da falsa abolição e os trezentos anos da morte de Zumbi possibilitou-se a disseminação do debate racial e nesta situação o setor educacional sempre foi criticado pela inexistência de uma educação de qualidade que beneficiasse o ator negro. No Brasil, a exclusão social do qual, os negros são as principais vítimas, tem sua origem em distintos fatores, dentre estes o perverso esquema de distribuição de recursos públicos relacionados a educação e que comumente não é acompanhada por parcela da população, sobretudo esta população negra e periférica.

 A educação é a mais importante dentre as diversas prestações que o individuo recebe ou deveria receber por parte do Estado. O mesmo Estado que alega não poder fornece-la de maneira ideal, por questões de burocracia interna. No entanto quando o assunto é curso superior o Estado garante através de mecanismos sutis o acesso de populações abastadas ao interior de suas universidades, com efeito ele – o Estado – financia com recursos que deveriam ser canalizados a instituições públicas de acesso universal, a educação dos filhos das classes de maior poder aquisitivo, por meio de diferentes mecanismos. É como um contraponto a esta situação que o surgimento e implantação de ações afirmativas se coloca como ferramenta oportuna, pois buscam assegurar e restabelecer nos grupos socialmente marginalizados a autoestima, devolvendo-lhes as condições e as possibilidades de enfrentamento dos estigmas e estereótipos socialmente impostos, resgatando a identidade e reafirmando a igualdade tal como prevista na Carta Magna do país.

Sendo que o país não é exceção neste formato de intervenção como mecanismo de reparo social, tomando como referencia o que se acordou na III Conferencia Mundial Contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlatas, realizada em Durban, África do Sul em 2001, evento este que galvanizou as aspirações dos movimentos sociais globais e levou o Brasil a assinar uma plataforma de compromissos visando a adoção de politicas de igualdades. Ainda dentro do quesito Lei, o país também é signatário da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada em 27 de Março de 1968, que assim dispõe em seu artigo primeiro : “ Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitam da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, a manutenção de direitos separados pra diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sido alcançados os seus objetivos.”

Silva Jr (2003), também comenta : “ No contexto atual, as politicas de ações afirmativas sobe o sistema de reserva de vagas ganham reforço histórico e jurídico, sobretudo, considerando-se a aprovação das Leis 8.112/1990 e 8.666/1993 que estabelecem percentuais de reserva de vagas para pessoas com deficiências nos serviços públicos, privados e associações filantrópicas. Da mesma forma, a Lei 9.504/1997, que previa reserva de vagas para mulheres em candidaturas político-partidárias, e a Lei 10.678/2003, que criou a Secretaria Especial de Politicas de Promoção da Igualdade Racial consubstanciam o compromisso do Estado brasileiro para com as de promoção politicas de igualdade seguindo os princípios da constituição de 1988.” Evidenciando assim o aspecto legal da adoção de cotas, tanto em ambientes públicos quanto para ambientes privados e jogando por terra a justificativa de senso comum, que estas promovem um “racismo as avessas” , ao mesmo tempo em que obriga o aparato Estatal e rever o que chamamos de racismo institucional.

 O racismo institucional pode ser entendido como resultado de mecanismos discriminatórios inscritos na operação do sistema social e que funcionam, até certo ponto, a revelia dos indivíduos, orientando-se pelo funcionamento das forças sociais consagradas e respeitadas pela sociedade, o que dificulta sua identificação pela opinião pública como um ato de violência, embora o seja Com efeito é fundamental que o Estado reconheça oficialmente a existência da discriminação racial, dos efeitos e de suas vitimas, e tome a decisão politica de enfrenta-la, transformando esse combate em um apolítica de Estado. Uma atitude como esta teria o saudável efeito de subtrair o Estado brasileiro da ambiguidade que o caracteriza : admitir que existe um problema racial no país e ao mesmo tempo furtar-se a adotar ações que o eliminem.

 O fato de as ações afirmativas trazerem no seu bojo os aspectos de redistribuição e reconhecimento de pertença racial implica mudanças nos paradigmas de significado dos chamados movimentos identitários. Segundo uma pesquisa realizada na Universidade Estadual de Goiás (UEG) 43,86% dos alunos cotistas matriculados em seus cursos não possuem salário próprio, 30,94% declaram receber um salário mínimo e 10,1% tem rendimentos que variam entre dois e três salários mínimos, já os alunos que declaram possuir uma renda de quatro a cinco salários mínimos somam 21,29%, o que indica que a maioria não possuem emprego e vivem da renda familiar, ou seja, temos a questão da identidade bem resolvida, o que nos leva a compreender a diferença socioeconômica a que nos referimos em partes deste texto. O censo demográfico de 2000, indicava uma população de 5.004.197 habitantes, sendo que destes 50,72% se autodeclararam brancos e 48,01% negros, 0,25% se disseram amarelos e 0,29% indígenas, do percentual de negros, apenas 21,61% destes conquistaram uma diplomação universitária frente aos 77,03% de brancos na mesma situação.

Fica claro a sub-representação da população negra no sistema de ensino superior no Estado goiano, isto para ficarmos com um recorte da realidade em outras unidades da federação, ou seja, é incontestável que a equidade entre negros e brancos neste quesito, ainda demanda grandes esforços.

 Finalizando, ação afirmativa e democratização são conceitos que estão intimamente ligados e, nas práticas sociais concretas, se complementam. Ação afirmativa é um conceito de constituição do comum, a partir de ações especificas contra as desigualdades, ações que afirmam a igualdade contra o privilégio, a multiplicidade contra a uniformidade e a participação contra a partilha. É nesse sentido que as politicas de ação afirmativa aparecem como politicas de democratização, pois “ na democracia a politica consiste na criação daquilo a que, necessariamente, todos devem ter acesso, criando os meios que assegurem o acesso.” (Nascimento,2008).

Como politica pública as cotas devem ser entendidas como intervenções nas instituições com o objetivo de promover a diversidade sociocultural, a igualdade de oportunidades e o acesso material aos direitos para grupos sociais marginalizados, sobretudo entre os grupos étnicos-raciais. Nossa tese é a de que politicas de ação afirmativa podem ser pensadas como politicas de universalização de direitos, ou seja, são ações de inclusão e jamais esmolas sociais, como apregoam os radicais e aqueles que desconhecem o desenvolvimento histórico-conceitual deste objeto de estudo.

 Referencias :

 - ABONG; ANPED; Ação Educativa – Racismo no Brasil. São Paulo, 2002. - ASHOKA – Racismos Contemporâneos. Rio de Janeiro,

2003. - Cunha Jr., H – As estratégias de combate ao racismo : movimentos negros na escola, na universidade e no pensamento brasileiro. In Munnga, K. – estratégias e politicas de combate a discriminação racial, São Paulo,

1996. - Fernandes,F. – O significado do protesto negro. São Paulo,

1989. - Gomes, J.B. – Ação afirmativa e principio constitucional na igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro,

2001. - Nascimento, A. – As politicas de ação afirmativa como instrumentos de universalização de direitos. Rio de Janeiro,

 2003. - Pereira, A.M. – Um raio em céu azul. Reflexões sobre a politica de cotas e a identidade nacional brasileira. Rio de Janeiro,

2003. - Santos, R.E; Lobato, F. – Ações afirmativas: politicas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro, 2003,

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