A dificuldade de ser diferente do diferente

       “Conheço o meu filho. Ele não faia isso. Lá em casa a lei é dura...” Não é difícil justificar esse discurso; de fato cada pai procura, dentro de suas condições, dar o melhor para os seus filhos. A questão é mais simples d oque parece, para dar início a um comportamento que pode surpreender pais e filhos: “o meu sabe o que deve fazer. Mas o seu melhor amigo, de quem não se conhece o perfil de valores cultuados. Eles conversam, comparam, analisam comportamentos, discutem qual das duas famílias tem razão, que Valores seguem, que herança trazem... e vem o desfecho: que nada rapaz, seus pais podem até estar certos mas o mundo mudou. Agora é cada um por si....

      O seu filho, aquele filho que você garantiu que não procederia dessa ou daquela forma, percebe-se diante da máxima: “Não sabia que era impossível, não sabia que quem estavam certos, eram os meus pais... fui lá e fiz!” “Fui lá e fiz” Som de sentença, frase de efeito que precisa ser retomada do berço de formação da origem do que é certo ou errado, aos olhos de quem , em que tempo, em que sociedade, em que pauta de valores.

       Na linha das analogias, demos um salto até o banco de dados da linguagem usadas pelos pais, pelos filhos, no  individual  ou  quando precisam se entender no contexto maior,  pais e filhos, famílias e sociedades.  Um recorte muito comum entre os jovens em processo de “enturmamento”: o meu filho, aquele que eu consegui, cm muito esforço, mas com cautelosa responsabilidade, explicar que o uso de quaisquer  palavras, atitudes, elementos, equipamentos ou substâncias, destaque para SUBSTÂNCIAS, independente das intenções ou do momento, precisam ser entendidas, as hipóteses de resultados precisam ser levantadas, a análise dessas hipóteses deve leva-lo a um posicionamento a partir do qual, enquanto agente do seu ato, reforça justificativas e argumentos para tomar a decisão que lhe convém. Pois bem, o garoto sabe que não deve usar “drogas” de qualquer natureza, sem  esses procedimentos prévios. Ele sabe que há riscos. Existe histórico, existem  precedentes.

       Mas ele quer provar que está acima de qualquer medo. Ele é mais ele. Experimenta ,  por decisão própria ou por influência. Nada  demais. Começa a acreditar que tudo é mito para afastá-lo do novo, do moderno, porque é nocivo. Já que não senti nada, foi mais fundo, repito a dose, continuo. Senhor dos meus impulsos, nada demais. Que nada, e não é que é gostoso! Que gostoso? É o máximo! “Tou dentro”... Literalmente, “são estou sentindo nada”... E não é e para sentir mesmo, é para se lamentar: foi lá e fez! Está feito.

       Foi usada a palavra impulso. “-Senhor dos meus impulsos”.  Em que circunstâncias, os impulsos são controlados?  Como um adulto tenta justificar a atitude de uma criança, soba a alegação de que ele não conteve os seus impulsos? Impulsos, se controlá-los, deixam de existir. Só impulso se estiver além do comando. Em que momento da formação dos seus filhos, esse comportamento foi trabalhado, analisado, explicado e entendido? Diante desse raciocínio, não de discute que essa ou aquela família foi responsável u irresponsável. Mas elas foram permissivas. Qual é o crime? Nenhum, mas  pela lei natural da vida, a criança de hoje, homem do amanhã vai cunhar a máxima “Não sabia que era impossível, fui lá e fiz”, em outra produção linguística e comportamental”: “não sabia que daria errado, mas deu. Não sabia que nesse momento os meus pais já mais estariam aqui, para me defender ou me ensinar. Precisei fazer, fiz, eles não estão mais por aqui... Fim de linha, desespero, controlar impulsos, ou curvar-se diante do fracasso iminente: tristeza, medo, isolamento, fragilidade, depressão...  Onde estavam os pais do hoje?

        A dificuldade de estar em um mundo cheio de fronteiras, regras e compartimentos pode ter sido o motivo que         levou Jean Cocteau a expressar a sua dificuldade de ter um só corpo, sendo múltiplo. E esse corpo diversas vezes      autorretratado, por meio do desenho, da escrita ou do cinema, não teria sido o corpo escolhido, embora tivesse mãos prodigiosas. Coube, então, a essas mãos certo toque de Midas: transformar tudo não em ouro, mas em arte – uma conversa, a frivolidade, o riso, um sonho, a juventude, a beleza, a amizade, os costumes, a responsabilidade, o trabalho, a leitura, casas assombradas, a infância, a dor, a morte…Não sabia que era arriscado, fui lá e não posso terceirizar a minha atitude: errei ou erramos? “A dificuldade de ser” (Jean Cocteau por Wellington Costa e outros.)

     A difícil tarefa de ser, dos dias de hoje, nos remete a questionamentos semelhantes àqueles em que a presença de um pai, condutor, orientador, um guia, um norte, precisa ser referendado. É o exemplo de uma atitude que resultou em bons frutos que movem a sociedade. São os exemplos que,  muitas vezes seguidos espontaneamente, levam toda uma geração a definir o seu papel na história, por meio de comportamentos individuais que nos conduzem ao todo. De fato, dificuldade de ser, é um dado que precisa ser criticamente avaliado em todos os momentos.

     Ninguém nos garantiu que a vida seria fácil, que a felicidade é um horizonte, que os desafios serão sempre catracas ou margens. Quem faz da margem catraca não encontrou o prazer de ser direcionado; quem faz da catraca, margem, leva a vantagem de ter aprendido a driblar as dificuldades, como lição e fortalecimento. Nas duas hipóteses, entra em cena a sua capacidade de gestar o fato, gerir os passos e garantir o que fazer com os  resultados. Não há garantias de que “vai, que dá certo”, tampouco de que  “é melhor não arriscar”. A tarefa de ser é o princípio do querer aprender, para fazer sabendo o que faz, independente dos resultados, mas o que a vida nos dá é a oportunidade de ousar a fazer, confiante no que sabe fazer melhor, dando o melhor de si, ainda que tenha que abrir mão de determinados itens do seu repertório, desde que essa renúncia tenha como foco, respeitar ou favorecer o outro. Um desafio humano.

    Se há dificuldade em ser, dir-se-ia que para existir a esperança precisa existir a dúvida; para que o dia tenha seus recortes definidos, ele precisa da noite; para que o impulso exista ele precisa ser descontrolado? Estaria o descontrole posto como a base do impulso, assim como elemento motivacional para a reação inesperada, impulsiva? “Não seja impulsivo, controle-se!” De que depende esse fantástico controle? Se depender de quem o perdeu, nadasse pode cobrar, em termos de reflita, respire, repense, relaxe... depois aja. Hoje, mais do que nunca, é difícil se manter na singularidade que nos torna únicos, diferentes, distintos, diante da necessidade de sermos coletivos, sob pena de termos que ignorar o outro. Até porque, para ignorá-lo é preciso reconhecê-lo e, em se reconhecendo, não dá para se descartá-lo do processo interativo que nos fazem “nós” para proteger, unir, somar, fortalecer  como o nós da cana-de-açúcar, os nós do bambu que os garante em pé. Não se concebem filhos sem pais, que não estejam propensos ao abandono; não se reconhecem rios, sem suas respectivas margens, que não estejam propensos ao esvair-se de si mesmos; não nos cabe compreender que os degraus de uma escada, por se mesmos, representem o seu papel sem o “nós” juntos por um objetivo: chegar ao topo. Todos precisam de todos; tudo precisa de tudo. É um ciclo: ser um pai diferente dos seus iguais é fazê-lo formador do homem do sempre, sempre.

  • Sebastião Maciel Costa