Dr.Wagner Paulon
1972

Um dos melhores processos de abordar a sexualidade humana tem lugar a partir de comparações que são possibilitadas pela história, pela etnologia, pela sociologia. Na vida social quotidiana, o ser-homem e ser-mulher revelam a sua relatividade, ao mesmo tempo que a profundidade do seu enraizamento pessoal.

Mas acontece que a uma reflexão erguida sobre tais premissas se criticará o fato de não haver procurado fundamentos suficientemente profundos nos húmus carnal, de não haver mergulhado no "mistério da origem". Mistério: a palavra é um refúgio cômodo para a ignorância e para a preguiça e, sobretudo, para o receio de todos aqueles, que vêem na sexualidade, antes de mais, um monstro interior que não devemos despertar. Origem: termo de um retrocesso ilusório, unidade sonhada e perdida derepente num ponto de partida imaginário. A origem não é uma floresta mística e povoada de arquétipos? É a criação, no passado, de uma solução para os conflitos de hoje. Como num eco, a mesma unidade pode ser encontrada num termo também fictício. E o Psicanalista, ao investigar a sombra através das malhas de uma rede lógica, desconfiará dessa estagnação ilusória das linhas do tempo e não procurará senão o homem de hoje.

Não existe outro ponto de partida que não seja o aqui e agora. Más existem fundamentos para o aqui e agora. Procurar esses fundamentos não é tentar uma explicação do presente a partir do passado, mas compreender o presente a partir das raízes ainda-visíveis que mergulham na história do homem e da vida.

A Sexualidade, modo de reprodução

O termo sexualidade é, decididamente, demasiado lato. O que é e o que não é sexual? A partir de Empédocles, e duma forma inexacta, e, possível falar de amor e de ódio a propósito da atra­ção e repulsas das partículas elementares; será talvez uma extrapolação frívola mas a imerícia tem uma intenção profunda: erguer, enfim, do átomo até o homem, uma energética unificada.

A palavra deveria estar reservada até ao momento em que com a evolução das espécies, vai adquirir um sentido preciso. A sexualidade manifesta-se a um nível já elevado de organização, com a inauguração de um mecanismo inverso da divisão celular. A sexualidade é um modo de reprodução por meio de uma união que diferencia. Enquanto a reprodução por cissiparidade - e a enxertia que lhe sucede - se efetua pela divisão de um indivíduo em dois indivíduos semelhantes ao primeiro, a sexualidade, pelo contrário, visa a união de dois gametas diferentes, duas células haplóides, num só indivíduo. A acumulação, a transmissão e a troca de genes aumentam a mobilidade volutiva. Não é a divisão, mas a uni­ão, que permite a maior gama de diferenciações da espécie; e essa união supõe a aquisição de diferenças individuais: os gametas são individualizados.

Nesta perspectiva, a sexualidade parece, a primeira vista, orientada para a reprodução; alargando as possibilidades duma evolução cada vez mais complexa.A partir daí, muitos moralistas falam do sentido "natural" da sexualidade, esquecendo que, na evolução animal, a lei mais


natural de todas, a que vai regular o progresso dessa ascensão cada vez mais complexa, é a luta ate a morte. Cometeríamos o mesmo erro se extrapolássemos para o domínio humano a diferenciação na união. O caminho é inverso: só depois de havermos demonstrado, a nível muito diferentes, que a união diferencia, é que podemos aceitá-la como lei e ordem geral.

O aparecimento das estruturas de parentesco

No grupo humano, as necessidades de reprodução continuam a ser primordial, mas a organização de linhagens, em que os indivíduos surgem com a consciência de uma pretensa ancestral, vem fornecer-nos novos dados. O problema que, desde muito cedo, parece levantar-se à espécie humana é o da filiação, primeira criaçãode uma ordem social.Daí, uma analogia também demasiada fácil: o ser-homem e o ser-mulher não seriam mais que a transposição do ser-macho e do ser-fêmea ao nível superior da espécie, humana.

A filiação assenta na realidade fisiológica da sexualidade. Mas a etnologia cedo veio demonstrar que a determinação dos genitores macho e fêmea é insuficiente para definir a filiação.Em toda a parte é necessária uma norma, uma estrutura da sociedade como lei do grupo, realidade, portanto, deordem cultural, para transformar os vínculos de sangue em filiação. É uma norma, aceita como tal e interiorizada, que define a família. A consangüinidade físi­ca é condição necessária, mas não suficiente, para a existência do parentesco. Entreos sangüíneos, opera-se uma escolha; um costume elevado a regra que acaba ser encarado como lei proveniente de uma espécie de natureza social, estabelece os casos em que a consangüinidade define o parentesco e determina ainda o rigor variável dos vínculos. A mesma regra introduz no parentesco membros que lhe trazem sangue novo. Por si só, o vínculo do sangue é incapaz de constituir um grupo familiar humano.

Mas o grupo animal organiza-se em verdadeira sociedade. Criam-se vínculos, estabelece-se uma hierarquia, vigorosa e estável as fêmeas agrupam-se à volta do macho segundo o seu lugar na hierarquia, social, surgem em alguns casos casais que podem permanecer fieis. Mas haverá linhagens no sentido que acabamos de referir? O vínculo que une o filho aos seus progenitores passará a ser de filiação? De fato, não existe nenhuma regra que permita uma ordem na confusão das consangüinidades, isto é, uma ordem que seja suficiente para se fazer a tradição, para valer como norma. Não existe permanência permanentemente particularizada para se poder falar de vínculo parental. E a regulação pode ter lugar mediante comportamentos extraordinariamente complexos, sem que as tradições se desen­volvam, antes, mesmo de desabrocharem em estruturas sociais. A tradição é flexível, ao passo que nós assistimos à radicação de condutas fixas e estereotipadas.Por vezes, o homem consegue traçar genealogias no grupo animal; mas essas genealogias não são, de forma alguma, "estruturas elementares do parentesco".

Falar de auto-regulação do instinto animal, substituída, no caso do homem, por um domínio voluntário, é extrapolar indevidamente a partir de verificações muitas limitadas. A evolução da sexualidade levanta os mesmos problemas que a evolução das espécies, onde tem o seu lugar e níveis próprios, neles surgindo para desempenhar um papel fundamental. No jogo dos grandes números, verificam-se coincidências felizes e estabelece-se um equilíbrio que equivale a uma regulação, mas ao nível da espécie. Longe de ocupar a posição de um equilíbrio específico, o domínio voluntário surge como resultado de uma descontinuidade radical, uma vez que, subindo na escala das espécies, caminhamos para o que nos sentimos tentados a designar como uma completa libertação sexual ao nível dos primatas. Depois das observações a que se dedicou Carpenter em 1942 sobre uma colônia de (observações a que se dedicou Carpenter) quatrocentos e nove macacos rhesus deixados em liberdade na ilha de Santiago, o largo de porto rico, numerosas pesquisas vieram por em relevo a versatilidade do comportamento sexual dos antropóides. Tudo se passa como, se as regras da filiação só tivessem surgido com o homem, a partir dum grupo animal que, pelo contrário, desembocava na promiscuidade. As regras humanizantes da filiação situam-se efetivamente, na linha de uma espécie de libertação biológica, que, porém, é de tal ordem que conduz um período pré-social, pré-cultural, pré-humano de promiscuidade, a uma atividade sexual sem regra no grupo do pré-hominianos.

É certo que podemos facilmente constatar o enfraquecimento do vínculo parental na família das sociedades industrializadas e urbanizadas. Mas essa evolução não permite qualquer comparação precisa com a "monogamia", tal como essa se manifesta em certas sociedades animais. A família "nuclear" está, nos nossos dias, reduzida ao casal e filhos menores e é o resultado de uma lenta evolução dos vínculos de parentesco. O casal animal, pelo contrário, precede este processo, é anterior ao desenrolar do movimento. Situa-se antes de qualquer regra que permita a filiação. Assim, a, perpetuidade animal e assegurada fora de qualquer linhagem, a não ser que o homem imponha de fora essa linhagem através de uma seleção artificial.

Mas onde descobrir os fundamentos do grupo humano? Será o grupo que a si próprio fornece uma regra para se estruturar?

Será a norma que constitui o grupo como humano? A interação desenrola-se em perfeita reciprocidade, de acordo com o jogo recíproco do individual e do social.

Para empregar a linguagem de Claude Lévi-Strauss, diremos que um universo de regras (o da cultura) sucede o universo das leis (o da natureza). Não temos necessidade de reproduzir, a gênese da regra, mas devemos reconhecer que ela não se impõe por si, que não pode ser deduzida de uma "lei natural", "o mundo cultural constitui-se, não fora ou acima, mas no seio da natureza, e o homem é um agente natural. Nessa qualidade, mais não faz que reorganizar os condicionamentos naturais, mas essa reorganização não é, por sua vez, condicionada, e, nesse sentido, mais não pode ser que uma organização, ou seja, um sistema de regras, no sentido, nomeadamente de o homem não poder iludir esse poder cultural. O sistema é vivido como necessário, a regra é sentida como Lei e-- origem do etnocentrismo -- a cultura é suportada como natureza".

A relação social deixa de ser uma relação biológica, ainda que permaneça condicionada por esta última. É preciso avaliar o alcance de tal ruptura. Existe a relação biológica entre o filho, humano ou não, e os seus progenitores; a união que originou o seu nascimento é uma relação biológica entre os progenitores. Mas a relação social de filiação em outra e esse fundamento não, lhe basta. Aqui, tudo decorre de uma norma. E os costumes, erigidos em regras invioláveis, eriçados de tabus protetores, desenvolvera-se em modos diversos de filiação. Os condicionamentos biológicos apenas nos permitem prever, a primeira vista, dois tipos gerais consoante a importância a um ou a outro dos progenitores: patrilinear e matrilinear.

As regras das descendências são condicionadas pelos bio lógicos, mas não nascem espontaneamente do biológico nem são os deuses desenvolvimentos humanos. O social tem outra origem e manifesta-se com o aparecimento de uma estrutura de parentesco. E a gama de estruturas de parentesco que vemos desenvolver-se a partir dos mesmos condicionamentos sexuais e extremamente amplas. Se o biológico não explica as estruturas sociais que condiciona, os vínculos sociais, por sua vez, não explicam os sentimentos pessoais que condicionam, quando os esquadram, desenvolvem ou recalcam.

Assim, a ternura espalhará a sua bruma protetora sobre os inpulsos eróticos, sem se dobrar às regras do clã; o amor poderá nascer dentro da instituição familiar, nas não a partir dela, e muitas, vezes nascerá contra ela. Pode-se até dizer que a instituição começa por proteger a sociedade da erupção irracional da paixão,

A curiosa espécie humana institui um jogo de interdependências que amplia a abertura das variações e das mobilidades.

Podemos já concluir que ser homem ou ser mulher são modos humanos de existir numa sociedade que não é regulada pela simples consangüinidade biológica, impondo, pelo contrario, as suas próprias regras a essa consangüinidade que a precede e se prote­ge dos sentimentos que a acompanham. Ser macho ou fêmea constitui condicionamento da condição de homem ou mulher, nas não a define.

A proibição do incesto

Eis-nos, pois, remetidos para a descoberta lê uma norma fundamental: o mínimo de regras que permite a filiação. Esta regra mínima, condicionadora da própria existência de uma sociedade, transforma-se em lei inabalável a que todo o ser humano, animal social, vai submeter-se. Eis-nos, fundamentalmente, remetido para a oposição entre o desejo e a lei; aparição de um limite no âmago do desejo, que, por isso mesmo é universal. O limite só aparece através de superação que universaliza o desejo; tudo é desejável na própria medida em que qualquer coisa é impossível ou interdita. No domínio sexual, a oposição tomará a forma heterossexual, porque a regra visa a filiação: nem toda a mulher desejável é acessível. A proibição fundamental pode, na sua forma mais simples, exprimir-se assim: não nos é permitida a união com uma, pessoa qualquer. Algumas fêmeas estão interditas ao macho--ou alguns machos à fêmea, não porque aquele receie enfrentar um possuidor mais forte nem, como é evidente, porque o homem conhece uma regulamentação biológica do desejo, mas porque de outra, forma a sociedade deixaria de ter bases, não existiria mais e o humano desapareceria com ela. As proibições respeitam, em primeiro lugar, a união do macho com a mãe ou da jovem com o pai (porque é ela a primeira a opor-se ao estabelecimento de uma filiação, de um laço parental, com uma importância que se assentuará mais ou menos, num sentido ou noutro, consoante as modalidades de descendência forem patrilineares ou matrilineares.

É neste sentido, o mais geral possível, que se pode ver na proibição do incesto o sinal da passagem ao humano. Esta interdição serve de fundamento ao vínculo parental, marca a passagem, do grupo animal ao grupo humano ou, se preferir, a passagem da natureza a cultura.

A partir do momento que existe o humano, o desejo é réfreado. E esta limitação resulta duma interdição que, por sua vez, deriva, não de uma impotência concreta, mas duma regra do grupo que é interiorizada a ponto de se fazer dela uma lei. Este poder social que refreia o desejo leva ao recalcamento. E a ordem, não pode ser invertida: sendo condição do recalcamento, a proibição não pode ser resultado dele. Dai, há que tirar algumas conseqüências psico-sociológicas. Se a união com a mãe é proibida, isso não e conseqüência de uma lei biológica que, nesse caso, suspenderia o desejo sexual. Também não resulta de uma sublimação psicológica: essa sublimação pressupõe o recalcamento, que por sua vez pressupõe a limitação de desejo. O papel essencial é desempenhado pela proibição, uma proibição que, no grupo humano, vale como lei porque faz valer esse grupo como humano. Também no vínculo irmão-irmã a sexualidade é obrigatoriamente superada, não porque a vida em comum, embotando o desejo sexual, basta para o explicar, mas em função da existência da regra, elevada à categoria de lei. A norma que estrutura o grupo familiar obriga à sublimação do desejo, ao mesmo tempo que dá origem ao recalcamento.

Estas observações encaminham-nos para una conseqüência capital no que respeita às relações do ser-homem e do ser-mulher com o ser-macho e o ser-fêmea. A passagem da animalidade à humanidade não pode ser individualizada, não pode haver passagem de um animal a um homem; a passagem efetua-se da esfera animal para a esfera humana, da humanidade à animalidade, ou, como diz Hegel, da vida ao espírito.

Como lei, do grupo, a proibição vai também, obrigar; os grupos a unirem-se. A proibição do incesto não tem sentido apenas dentro de uma linhagem; individualizando (individualizada), a linha de parentesco extingue-se. É preciso que a mesma proibição sé imponha a outro grupo onde surjam, também, vínculos de parentesco. É então que a interdição desvenda o seu sentido: não se trata de uma limitação de permuta sexual; é, pelo contrário, a lei que vai obrigar a alargar o campo da permuta, à escolha da esposa fora do grupo familiar. Ao elevar-se à categoria de lei, a regra muda de sinal, passa a ser lei de reciprocidade na permuta. A repressão do desejo vai permitir aos indivíduos que lentamente descubram, ao longo da história, que a limitação não passa de aparência e conduz, afinal, ao desabrochar da dádiva.

Porque fundamental esta oposição entre a lei e o desejo excede o campo sexual, no qual a vimos aplicada, e repercute-se nas zonas mais nítidas da consciência; os seus ecos ressoam a to dos os níveis do grande concerto humano. "É tão necessário que o pensamento se baseie num impulso vital e numa espécie de avidez-espiritual, quão indispensável é em nós que esse movimento de expressão seja, pelo menos parcialmente, detido, avaliado, forçado-a desdobrar-se em reações múltiplas e ativas". Desejo, refreado!

O desejo é humanizado pela lei que o limita. É graças, a essa limitação que a relação entre o homem e a natureza deixa de ser imediata. A relação homem-natureza resultará de uma ação, será mediatizada pelo trabalho.O desejo animal destrói o seuobjeto, o desejo humano é desejo refreado. No homem, a satisfação da necessidade e evanescencia do objeto são assim retardadas. O desejo animal é destruidor, mas o animal continua prisioneiro da relação desejo-objeto, da coisicidade. Retardamento e limitação são de natureza formativa e o homem nega realmente o objeto sem o de ir; a sua negação consiste em transformar o objeto para a si o submeter.

Uma análise mais geral do desejo conduz-no ao mundo humano do trabalho. O desejo sexual não é regulado de maneira diferente; e a sexualidade é assim introduzida no mundo humano, não diretamente através da sublimação, mas, mais uma vez, pela passagem dileta de tôda a animalidade a toda humanidade.

O fundamento assim reconhecido não é de forma alguma transponível em gênese, o que nos arrastaria indefinidamente para o passado, em busca de uma origem inatingível. Mais que de origem, trata-se de um fundamento perpetuamente presente. Tal como a transição, a oposição do desejo àlei manifesta a diferença entre a vida e o espírito, entre duas esferas diferentes, entre natureza e a cultura, a sua inserção -num mundo de comunicações é sempre referida a um desejo refreado. Mas, mais do que a interdição sexual, o exemplo dado por Maurice Blondel recorda o trabalho alienado do escravo, trabalho executado, já não satisfação dos seus desejos ou necessidades, mas em obediência à lei do mais forte, à lei do senhor. Na dialética complexa que está na origem deste ser-relacional que define o humano, a sexualidade desempenha em absoluto o papel de catalisador, antes de ela própria, se tornar sinal e linguagem. Ê em virtude de o homem ser um animal político que a sexualidade se torna sinal de austeridade radical, mas a relação não é, em si mesma, a origem da relação inter-pessoal. E se a sexualidade de hoje a mais elevada manifestação da inter-personalidade na intimidade conjugal, não o é como origem mas como linguagem, foi lentamente que, no decorrer da lenta história das culturas, a sexualidade pôde-se tornar humana. A tentativa de descrever uma gênese, harmoniosa e contínua da sexualidade animal até à sexualidade humana acha-se voltada ao fracasso, dada a parcialidade do seu ponto de vista; igualmente falacioso será o moralismo biológico que pretenda encontrar para a regra social ou para a regra moral uma base definitivamente celular ou genética. O espírito não é um osso, nem a organização celular que lhe acondiciona o aparecimento. Resta que é bem a oposição entre o desejo e a lei que faz passar a sexualidade do seu papel na reprodução animal para a esfera humana, onde o homem e a mulher já não podem descobrir-se como macho ou fêmea senão através de uma cultura e de estruturas sociais, a partir de uma organização particular.

Relatividade apaziguadora na qual é preciso insistir, de tal maneira é grande a tentação que leva certos espíritos a procurarem a explicação do presente numa re-criação do passado, ou numa ilusória representação das origens. A imagem do andrógino é um bom exemplo desta forma de solucionar os conflitos de hoje pela sua repressão pura e simples num passado mítico. E da mesma maneira que a oposição dos sexos aparece imaginariamente resultar de uma divisão, o ideal será a fusão e não a comunhão um só e não dois numa só carne. A ciência e a filosofia comprovam a existência dos mitos, mas o mito não contém mais que uma necessidade de ordenação, e de unificação. Enquanto revelador de uma sabedoria já totalitária à nascença, o mito deixa de ser portador de sentido; a história permite compreender os mitos, mas a recíproca não é verdadeira.

Não pensemos, porém, que, no final de contas, acabamos com os ecos que se repercutem no nosso presente, de descrever uma gênese, embora parcial, e que, descrevendo-a, lhe descobrimos uma explicação. Passamos de uma esfera animal onde não existia a interdição, que, para simplificar, chamamos proibição do incesto (ainda que o incesto nem seja sempre forçosamente interditada), para uma esfera humana onde o desejo, de por si universal, é limitado pela lei. Mas a oposição do desejo e da lei não explica, de forma alguma, uma transição de que é resultado. Uma fenomenologia mais completa deveria ainda indagar como é que o desejo se tornou universal e como é que esse desejo universalizado se vê impor um limite interior, ainda que intransponível ou pelo menos, de tal ordem que a sua transgressão implica necessariamente uma ruptura da ordem total do mundo. Mas como nasceu a lei? O que se nos apresenta é uma descontinuidade, cuja importância mais uma vez é preciso acentuar, pois há ainda muitos biólogos que se julgam autorizados a vulgarizar a idéia de que o homem provém, do macho e a mulher da fêmea, como a galinha do ovo chegando a ponto de procurar descobrir fundamentos biológicos para as leis morais, nesta harmonia imaginária.

Os indivíduos que não eram senão machos ou fêmeas descobrem-se homem e mulher, numa sociedade cuja regulamentação cultural se transforma em lei social. A luta até à morte, lei "natural" das espécies, é limitada pela obrigação de trocas, racionalização dessa, luta até a morte. Hegel mostrou que esta transição supõe um vínculo relacionai, conhecimento e reconhecimento, uma dialética senhor-escravo tão fundamental como a dialética homem-mulher. A relação do senhor com o escravo é, em si mesma,uma limitação da luta até a morte e também do desejo, na medida em que este é, no fundo, negação: limite interior a agressividade do desejo. Sem descrever de novo as etapas lógicas de tal transição, basta constatar que na dialética senhor-escravo, assim como na dialética homem-mulher, não se é homem enquanto, indivíduo mas enquanto relação. O homem não é homem senão enquanto conhecido e reconhecido, tanto na oposição como na conjunção.

Escrevendo noutras perspectivas, Lévi-Stauss demonstrou que o humano só se revela a um triplo nível de permuta: permuta de bens, mas como um desafio na dádiva, "prestação total de caráter agnóstico", para usar a expressão de Marcel Mauss; permuta de mulheres, com as suas normas particulares, tanto dentre como fora do clã; permutas de experiências, finalmente, por meio de linguagem. Em caso algum encontramos a oposição artificial do indivíduo a sociedade; o grupo interioriza as suas normas, as suas regras transformam-se em "substancias ética" e a eficácia de uma lei é muita mais terrível quando a sua transgressão abala o microcosmo constituído por todo o horizonte do coração e do pensamento. É com estas leis que a sociedade se defende, não só contra a liberdade de permuta sexual, que ameaçaria a vida e coesão do grupo, mas também contra uma econômica não encerrada no sistema de prestações totais. Nem a própria permuta verbal deixou de ser limitada por rígidas leis de segregação sexual, ao momento em que a sociedade inventou estruturas sólidas capazes de assegurar, por vias diferentes dos vínculos de parentesco, uma coerência igualmente sólida.

Ser-homem e ser-mulher

Ser-homem ou ser-mulher não consiste apenas em ser macho ou fêmea da espécie humana; consiste também em se descobrir como pessoa numa cultura, uma vez que a sexualidade lá não se revela ao homem e à mulher senão através da oposição (social) entre a lei e o desejo. A "natureza" biológica, por mais presente que esteja com toda a sua força, surge como um passado, passado por que a esfera biológica não é mais que um condicionamento da esfera humana, passado porque o humano não é uma rosa que desabrocha lentamente na extremidade do caule animal, mas um mundo que surge dum outro mundo. As gerações evolutivas do mundo animal não são mais que imagens e só um pattern estatístico nos dá um seu equivalente. A continuidade é, sem duvida, total na medida em que é possível encontrar um parâmetro no embrenhado da evolução mas também a ruptura dá-se ao nível de duas totalidades específicas e, na esfera humana, a natureza, física e biológica, não é mais que um dado, uma obra a se realizar, a fim de a conhecer, dominar, organizar e transformar.

É tempo de tirarmos daqui algumas conseqüências.

O macho e a fêmea definem-se por características biológicas individualizadas, por um lado, e por outro, comportamentos específicos. Para lá dos condicionamentos da geração, masculinidade e feminilidade devem definir-se por vínculos sociais? Alguns afirmam que devem definir-se também por meios de vínculos sociais, como se esses vínculos sociais fossem exteriores ao biológico e a ele acrescessem, quando o sistema de parentesco é uma reorganização dos condicionamentos naturais e o sistema de reorganização não é imposto por esses condicionamentos; a única necessidade é a própria existência de uma reorganização. Há interpretação e interação de duas esferas, sem que uma possa determinar a outra de uma vez para sempre, o vinculo não é casual; é para se achar uma permanência na diferenciação sexual ao nível do homem e da mulher, é preciso recuar até à proibição do incesto, a menos que confundamos o humano com os condicionamentos biológicos. O homem é um macho, mas o fato de se macho não tem um sentido já constituído, que se manifeste na masculinidade; a mulher é una fêmea, mas ser fêmea não é um sentido definitivo, transposto em feminidade. Na base da sexualidade de humana, encontramos a oposição desejo-lei. Mudamos de esfera quando as semelhanças entre as condutas complexas dos homens e as dos animais continuam a ser evidentes. A descontinuidade prossegue na esfera, humana, como discordância entre os vínculos de sangue, os vínculos de parentesco e os vínculos afetivos, cuja-trama se mistura sem se confundir. No entanto, o problema fundamental é o da descendência, tal como para a espécie animal era o da reprodução, e não o do amor e nem o da diretamente o da união do macho com a fêmea.

Numa perspectiva de pura continuidade passaríamos de um instinto auto-regulado da espécie, no animal, para, um instinto dominado pela vontade, no homem. No animal, a regra basear-se-ia num comportamento instintivo harmonioso que visasse o bem da espécie, ao passo que a vontade do homem visaria o bem comum da pessoa e da sociedade - isto sem mesmo indagarmos se existe verdadeiramente um instinto exterior aos comportamentos.

Ê a linhagem que, desde logo, importa. Mas toda e qualquer transposição do indivíduo animal para o indivíduo humano é muito pouco significativa. Não existe instinto maternal na fê­mea animal; há, sim, um comportamento complexo integrado num vasto sistema social que visa o bem da espécie e nela afêmea tem o seu papel a desempenhar. Mas, quando o observador intervem para confundir os dados fundamentais do sistema, o comportamento é alterado. O sistema de parentesco humano é semelhante, mas assenta num dado específico: a oposição desejo-lei e as suas repercussões a todos os níveis da organização social. Se considerarmos o exemplo da maternidade, ficamos surpreendidos quando a vemos ainda apresentada como um instinto, que se manifesta em vocação individual. O erro está quer em considerar a fêmea animal abstraído da sociedade animal, quer em encarar a mulher fora do contexto da sociedade humana. Mas acabaríamos por cair no mesmo simplismo se comparássemos as sociedades animal e humana para extrairmos da comparação diretivas ou normais.

A sexualidade não visa, imediatamente, o encontro inter-pessoal do homem e da mulher, mas o grupo e a sua, permanência. A tomada de consciência, de outro como o homem desabrochará sem dúvida, plenamente no amor recíproco do homem e da mulher, mas as relações inter-humanas não se situam imediatamente ao nível duma sublimação da sexualidade. O homem não se faz homem ao tomar consciência da alteridade radical que a sexualidade implica; pelo contrário, é a lenta historia das relações humanas, e a complexidade crescente dos vínculos respectivos que o fazem tomar consciência do novo sentido que a sexualidade pode adquirir. Só tardiamente a sexualidade se transformará num tranqüilo encontro interpessoal, não sem ter de triunfar de inexoráveis tabus e desuperar instituições que faziam fundamentalmente do casamento um encontro de famílias. Só então o erotismo, em lugar de ser um acesso do desejo exasperado pelos limites impostos pela lei, pode também tornar-se linguagem de amor

É a este nível de investigação que é preciso chegar para se saber como é que a sexualidade se fez lentamente linguagem É certo que, nas civilizações primitivas, a mulher era encarada como produtora de sinais e objetos de troca, antes de ser encarada como produtora de sinais e objetos de desejo. É preciso que o amor exceda as fronteiras da permuta sexual e se situe também no domínio da permuta econômica e verbal. Mas serão necessários milênios para que o erotismo concebido como significação simbólica dada ao ato fisiológico para o transpor para um nível daquele em que se realiza­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­----se transforme em linguagem de amor. Dizer que o erotismo desemboca hoje na linguagem não é romantismo, sonho ou tagarelice amorosa, nem esquecimento das pulsões sexuais que estão na origem do encontro das pessoas na sua qualidade de homem e de mulher; sendo o homem um animal político, corresponde a afirmar que a sexualidade é uma dimensão da sociedade humana e em toda a sua evolução, dimensão de uma totalidade por forma tal que em nenhum domínio é possível esquecer o sexual. A união realiza-se numa sociedade determinada e, realizando-se, obedece ou viola as leis, mas o amor não é um epifenômeno dessa união, nem uma aura que o prepare ou prolongue. Como toda a linguagem, o amor aprende-se, forma-se e aperfeiçoa, criando uma historia e uma cultura. Mas a passagem da sexualidade à linguagem e tão recente que não ultrapassamos ainda a fase do seu balbuciar. A sexualidade só se pode expandir como linguagem numa sociedade que tenha inventado estruturas bastante fortes para lhe permitir defender-se da paixão e até da família; isso supõe uma igualdade efetiva os níveis de educação. 0 amor conjugal, tal como ele hoje pode surgir ao nível da permuta verbal e da permuta econômica, desponta sobre séculos de história e de evolução cultural.

O amor enraíza numa vida social em que o homem se torna mais homem e que não resultou da relação sexual. Mas esta afirmação é muitas vezes mal compreendida como se fizéssemos do amor uma relação transcendente à relação sexual--quando o que pretendemos dizer é que a relação sexual não basta para explicá-lo. Os esquemas explicativos à maneira causal são insuficientes a menos que se faça do homem uma coisa, viva e sensível embora. Não é a relação sexual que explica o amor nem, inversamente, o amor que explica a relação sexual e o sentido assim conferido, verdadeiramente novo, não tem antecedentes, mas apenas condicionamentos múltiplos, aproximações sexuais, no sentido biológico do termo.

Masculinidade e feminilidade são pseudo-conceitos que só podem encontrar definições movediças numa sociedade determinada. Enquanto as sociedades se afiguravam fixas, enquanto os legisladores julgavam legislar para a eternidade (e os convencionais ainda persuadidos disso), foi possível encarar a masculinidade e a feminidade como categoria definíveis com um conteúdo sólido e permanente, sob uma superfície movediça folclórica. Hoje a sociedade evolui de forma demasiadamente rápida e a relatividade do passado é demasiado conhecido para podermos ceder as essas tranqüilizantes ilusões de estabilidade.

Masculinidade e feminidade não são características in dividuais, de ordem biológica ou psicológica. O papel que desempenham é variável. É em vão que o receio da história procura um refúgio no positivismo psicológico ou num biologismo que não faria mais do que renovar a simplicidade do vitalismo. A formação de estruturas de parentesco impede-nos de confundir os condicionamentos com os fundamentos do humano.

Mas não estamos por isso autorizados, como julgava Simone de Beauvoir, a ver na categoria do feminino---a única em questão, em virtude da tradicional inferioridade feminina---uma pura criação da história social. Isso levar-nos-ia a uma pura neutralidade sexual ao nível da pessoa, onde o valor do corpo sexuado proviria apenas das forças das imagens sociais. Mas o fato de não serem fundamento da esfera humana não impede os condicionamentos biológicos de lhe imporem limitações. O que acon­tece é que essas limitações não podem ser fixadas de uma vez para sempre ao nível do indivíduo.

Somos levados a tornar como objeto de análise a própria relação, a pessoa enquanto relação. A relação sexual aparece, a partir daí, como fundamental e constitui ligação com uma porção de outras relações que fazem do homem um animal social, o sexo interfere em tudo, na medida em que não existe uma malha da vasta rede social em que o não encontremos implicado. A sexualidade humana não é origem simples nem única atmosfera; é uma dialética fundamental, que interfere com outras dialéticas fundamentais.

Ligada à história, a sexualidade passa a ser, para nós, simultaneamente, linguagem e obra a realizar. A história, uma vez descoberta e entregue ao homem, não mais será abandonada. Muitos pensam que, uma vez passada a crise, surgirão outras normas, outros papeis a desempenhar, outras imagens em que será possível objetivar de novo o masculino e o feminino; uma vez reencontrada, por algum, tempo, a estabilidade, a comparação, torna-se-á de novo possível e poderemos efetuar então a decantação do que resta do passado e daquilo que foi rejeitado, modificado, acrescentado.Trata-se, porém, duma esperança vã, pois isso seria abandonar a história. Durante muito tempo, o próprio domínio político pareceu fundado em leis naturais, e a sociedade pode ser encarada como uma grande família tradicional, vivida ainda como "natural". Só muito recentemente nos desembaraçamos das leis naturais da economia e começamos a considerar normal a intervenção do homem no mercado. Política e economia passaram a ser obras humanas. Por sua vez, e em último lugar, a sexualidade passa também a ser linguagem e obra humana, obra a realizar, delicada, difícil e apaixonante. Cabe-nosa nós, a nós apenas, dar-lhe um sentido. Mas não ao acaso. A sexualidade não está mais sujeita a qualquer dos caprichos da nossa fantasia do que a economia ou a política, mas está entregue nas nossas mãos. A masculinidade e a feminidade serão, de hoje em diante, aquilo que o homem e a mulher fizerem delas. Não sem limites (uma vez mais) ou condicionamentos; a supressão da oposição entre o desejo e a lei seria, o fim do humano. Já não por adaptação do modo feminino de existir ao modo masculino,tido por mais eficaz ou mais capaz de expansão, o que seria una forma de acabar, de vez, com o problema e com a oposição. Trata-se-á, pelo contrário, de uma mútua diferenciação totalmente sujeita a desenvolver-se, mas de uma diferenciação ativa ao ní­vel da relação interpessoal.

"Se a dualidade dos sexos não podem ser reduzida a um fenômeno da natureza, e também não resulta apenas da historia­ das civilizações. Uma verdadeira antropologia só pode desvendar a natureza no âmbito duma sociedade concreta, onde a cultura só se torna hunana suscitando novos riscos de desnaturar o homem e a mulher". Seria ingênuo pretender congelar a relação homem-mulher, tal como a relação natureza-cultura. Tão ingênuo seria também pretender restringir a diferenciação sexual como pretender reduzir a uma só natureza e cultura.