Para Creso Franco Peixoto

Era uma tarde chuvosa e fria. Uma preguiça pesada, destas que deitam chumbo aos pés, fazia com que ele ficasse em casa lendo um livro, um jornal ou vendo televisão. Naquele dia sem tempero, sem gosto, sem desgosto, o telefone tocou. Era seu pai dando uma notícia triste de que alguém da família havia falecido. Ele apenas comunicou, como se não quisesse nada, apenas para informar, para que ele soubesse. No fundo o velho queria compartilhar e talvez que ele fosse acompanhá-lo ao velório. Foi um longo silêncio e ele percebeu que não poderia faltar ao velho e propôs, assim, de repente: “Você quer que eu o leve até lá?”. “Não, não é incomodo algum, não estou fazendo nada de importante”. E estava...

E lá foi ele se vestir. Qual é a forma adequada a um velório? Pensou na cor das calças, na cor da camisa. Não poderia ser muito casual, mas também não precisava se vestir dentro do rigor de antigamente com um terno preto, camisa branca e gravata escura.  Uma roupa discreta, um blazer e estava muito bom. O carro, um velho Escort de mais de vinte anos rateou um pouco, mas como eram velhos conhecidos, logo pegou. A mulher pensou em acompanhá-lo, mas ele mesmo descartou esta possibilidade. “Não é nada agradável. Vou porque papai precisa de companhia. Fique com as meninas”.

No velório o tradicional reencontro de pessoas da família. Cada um foi seguindo caminhos diferentes e estão cada vez mais distantes. Um primo próximo nos tempos de juventude se aproxima. O que dizer? Coisas triviais sobre o trabalho, sobre a família, os filhos, os velhos tempos. A bela prima, que foi Miss Brasil na juventude. Como ainda estava bonita a danada. Não perdeu a majestade, apesar de ter perdido o reino.  Enquanto isso, sobre a mesa, o esquife reinava silencioso. A morte é sempre silenciosa apesar da falação toda em seu redor. No fundo ninguém quer pensar na morte e somente o morto é obrigado a carregar todo o fardo da partida. Todos os outros morrerão um dia, mas cada um pensando com seus botões se exclui desta inevitabilidade.

O pai está pensativo, talvez pensando no seu futuro. Não há muito o que fazer neste fim de estrada. Os filhos cuidando de suas vidas. Nenhum grande problema para se preocupar, a não ser com o mundo que não sabe para onde vai caminhar. “Será a terra um bom lugar para meus netos viverem?” Não sabe, mas ninguém sabe. Talvez Deus saiba, mas será que diante da infinitude do universo ele estará se preocupando com nós, pobres e insignificantes seres que ele criou. Será que ele os criou ou surgiram a sua revelia e se tornaram autônomos e não mais lhe pedem satisfações sobre seus atos?

O padre faz as orações para encaminhar o falecido. Todos rezam o Pai Nosso e fazem mecanicamente o Sinal da Cruz. Todos tem pressa, afinal é um momento que todos querem esquecer. A urna é fechada e lá vai o pobre homem para a última morada. A chuva continua impiedosa, tornando ainda mais triste a viagem. Será uma viagem sem retorno... Para algumas religiões os mortos sempre voltam. Voltam em outros corpos humanos, em outras formas de vida. Para os católicos a viagem é mais difícil. A alma se liberta do corpo e vai para o purgatório a aguardar o julgamento final.

Ele e o pai seguem o cortejo pelo cemitério a uma certa distância, observando os guarda-chuvas pretos e coloridos que se movimentam lentamente. O pai pede que o acompanhe em direção a outros túmulos. Descem uma viela solitária para uma visita derradeira a velhos companheiros que moram numa cidade morta. O velho mostra as moradas de alguns parentes e conhecidos.  Os túmulos estão velhos, mal conservados, tristes. Os dois observam e sentem que a vida está passando e alguns apeiam da viagem enquanto outros seguem em frente para novas e desconhecidas estações. Enquanto isso a chuva continua castigando os velhos túmulos. Ninguém vê, mas antigos e novos mortos passeiam por entre os túmulos e acenam para os vivos como que aguardando novos companheiros.

O retorno para casa é silencioso, nenhum comentário, nenhuma dúvida. Somente a chuva insistente a cair no para brisa do carro. Ele sentiu pena do pai que parecia triste, sem um futuro para pensar, sem problemas a resolver. Ainda havia tempo para um cafezinho? Desceram e entraram no velho casarão onde os pais moravam. O cheiro gostoso do café passado na hora reanimou-os. Tinha gosto de vida, de passado e presente.